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Gabinete
Transnatural de Domingos Vandelli
ARTEZ
“Um museu é um livro sempre aberto, no qual o observador se instrui com prazer, e facilidade...” Domingos Vandelli
Gabinete
Transnatural de Domingos Vandelli
ARTEZ
paulo bernaschina
“viajar
é muito útil, faz trabalhar a imaginação. o resto, apenas decepções e fadigas.” CÉLINE, LOUIS-FERDINAND, IN “VIAGENS AO FIM DA NOITE”
O Gabinete Transnatural de Domingos Vandelli insere-se num projecto de pesquisa histórica, o qual visa sublinhar o papel desempenhado pelos Museus, bem como das respectivas colecções museológicas no intuito de ajudar à compreensão, por parte do público, do conceito de Ciência. Por outro lado, pretende-se, igualmente, redesenhar o itinerário pósbiográfico de Vandelli articulando peças museológicas provenientes de acervos universitários, parte constitutiva do seu trabalho enquanto naturalista, com intervenções / registos de arte contemporânea sob o signo da Viagem. Personagem multifacetada do séc. XVIII, figura central do pensamento Iluminista português, Domingos Vandelli foi um eminente médico naturalista italiano que, a convite do Marquês de Pombal, trabalhou em Portugal entre 1764 e 1816. Cedo se distinguiu na preparação e execução da Reforma Iluminista dos Estudos da Universidade de Coimbra, tendo leccionado Química e História Natural, ao mesmo tempo que fundava o Laboratório Químico e o Gabinete de História Natural, colaborando ainda, apaixonadamente, na criação dos Jardins Botânicos da Universidade de Coimbra e da Ajuda, em Lisboa. Vandelli envolveu-se de igual modo, na criação da Academia Real das Ciências de Lisboa, onde se destacou na Série de Memórias Económicas, (obra pioneira que viria a desenvolver em prol do conhecimento dos recursos naturais do território português e do seu vasto império ultramarino), sendo ainda o percursor das Viagens Philosophicas às colónias portuguesas de então, realizadas por naturalistas luso-brasileiros. As premissas deste trabalho inscrevem-se no universo pré-científico dos Gabinetes de Curiosidades do século XVII. A Memória sobre a Utilidade
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dos Jardins Botânicos e Museus de História Natural, a Consolidação da Museologia, as Viagens Philosophicas e a emergência de uma perspectiva económico/naturalista, enquanto génese do paradigma capitalista vigente, são parte integrante do legado vandelliano descrito nesta obra. Trata-se assim, de uma perspectiva geneticamente indissociável de uma recolha proto-museológica a qual é, na sua concepção, um processo orientado para a construção de um Imaginário que coliga conteúdos científicos, artísticos e literários, para uma tomada de consciência da importância da sua herança Transnatural. Apresentado no Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações do bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Brasil, conta com o alto patrocínio da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Palavras-chave: Colecção. Gabinete de Curiosidades. Museu. Jardim Botânico. Taxionomia. Vandellia diffusa. Herbário. Viagem Philosophica. Economia. Química. Pólvora. Louça de Vandelles. Aerostática. Transnatural. Patavina. Maçonaria. Invasões Francesas. Dragoeiro. Exílio. Memória.
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Ex.mo Sr. Vandelli: Seguimos a sua actividade e gostávamos de esclarecer alguns pontos para classificar e arquivar os seus pertences. Por favor responda em papel normalizado e inclua o carimbo branco da sua instituição.
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Que interesses militares se fecham num herbário? E o que traz um espólio de guerra ao museu universitário?
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Qual é o valor geológico da parede de um museu?
Qual é o valor científico de um passeio no jardim?
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Qual a extensão geográfica de um museu de mineralogia?
Qual o interesse etno-antropológico das madeiras exóticas de um armário?
Como mede a extensão de um jardim colonial? E para onde o ampliaria?
Onde se depositam os inertes e o entulho mineralógico? E como denominar essa nova sedimentação geológica?
Quais as fronteiras geopolíticas das minas do ouro do brasil? Qual o passaporte para a fronteira da descolonização? Qual o preço do visa e onde se carimba?
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Em que folhas se escreve sobre uma folha de vandellia? E sobre as memórias imaginárias de uma mina? Onde aponta os lucros da indústria química?
inês moreira
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Em que tabela classifica os bichinhos de prata e os fungos dos animais taxidermizados? Que informação inclui nas tabelas quando expõe?
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Como aborda a perspectiva educativa dos públicos? Que plantas e animais quer servir no seu catering?
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Onde está a cátedra que construiu, quem nela se senta e onde está posicionada? Com que instrumento definiu as suas rotas de viagem, que mapa usou e como tirou notas? Como se instala um convidado?
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Com que sonha?
Onde coloca os itálicos, as maiúsculas e como selecciona os étimos? Para que língua traduz quando cita?
Em que gaveta guarda a correspondência com carlos lineu? Em que prateleira ordenou as suas categorias?
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Onde se exila um estrangeiro?
Em que país se sente em casa?
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Considera-se colector ou metodista?
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Qual é a fórmula química de um prato artesanal?
Como ouvir os segredos académicos que ressoam nesse pote de faiança?
Como decora e pinta a sua porcelana?
"Vida, Domínio, Reino, Filo, Classe, Ordem, Família, Género, Espécie" Tribos inteiras, cidades, países. Concorda, está a favor?
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Caso esteja a par, pode esclarecer ao que se refere?
Não sabe, não responde?
Prato, Louça de Vandelles (pormenor). 1784/1800. Col. Museu Nacional de Machado de Castro.
carta ao dr. domingos vandelli
Caro Sr. Vandelli: Há muito que ando para escrever-lhe, mas não tem havido ocasião para tal. Quebrado de meus cuidados neste dia, tomo a liberdade de lhe escrever, nunca tendo sido apresentado a V. Ex.ia. Já sei que nasceu em Pádua, em 1736, e seu Pai era o Dr. Vandelli médico. Também sei que estudou na universidade da sua terra natal. Findo o seu curso, o venerado Marquês de Angeja, reconstruindo a sua quinta no Lumiar, mandou-o vir para organizar o seu jardim e parque, pôr em ordem o seu gabinete de curiosidades. O Senhor veio e deu-se bem com os ares! No Portugal de então notaram que o senhor não era estúpido, apesar de ter um diploma universitário, nomearam-no para dar aulas no real Colégio dos Nobres. Por Lisboa se manteve até 1773, ano em que o 1º Ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, pediu-lhe que viesse a Coimbra reformar a universidade. E V.Ex.ia veio com o seu colega Dalla Bella. Porém a turma estava bem organizada e recusou-lhe o diploma. Era Italiano e não valia. Desconheciam o Tratado de Bolonha e só havia tratados com Deus. Que o Senhor é queixinhas também o sei pois não tardou a escrever ao futuro Marquês de Pombal, que desconhecia por completo as regras do humor. Sebastião José veio a Coimbra, reuniu o pessoal na Sala dos Capelos e obrigou-os a fazer novo exame do qual era V.Ex. ia o examinador. Os métodos foram quase socráticos!!! Assim lhe depôs a árdua tarefa de reformar a única universidade do país. E V.Ex.ia fê-lo. Fê-lo e bem! Não se limitou a reformar os estudos, como aproveitou o Ministro ter decretado a morte do Bispo-Conde (D. Miguel da Anunciação) para se travar de amizades com o novo Bispo e este não exercer censura sobre os livros que vinham para cá. E não ficou só pela Reforma injustamente camada Pombalina: mandou construir a nova Faculdade de Ciências, fundando nele um Museu Zoológico de animais empalhados e outras curiosidades. E mandou construir o Laboratório Chymico, o primeiro da Europa. E agarrou na cerca dos frades bentos e delineou o Jardim Botânico. Foi um não parar até morrer! E como só faltava conhecer Portugal, uma vez que o povo português ficou
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cansado após as Descobertas de tanto descobrir, mandou expedições ao Gerez, a Trás-os-Montes, à serra da Estrela, ao Alentejo, e demais locais sertanejos do Portugal de então. O Bispo-Conde D. Francisco de Lemos era brasileiro e falava sem cessar do seu Brasil, das aves, da fauna, da flora, de tudo. O Senhor foi anotando o que o homem dizia e não descansou enquanto não enviou uns alunos por si formados às margens do Amazonas, para saberem o que havia, quem habitava essas margens, o que havia. Em mais de dois séculos de colonização, apenas os bandeirantes haviam trazido algo de novo. Por fim, sendo o Senhor conhecedor do que havia, fundou uma fábrica de louça em Santa Clara que inundou o mercado até 1811. Depois de várias peripécias ao fim da vida, lá morreu em Lisboa, em 1815, rabiscando uma carta para o Rei, no Brasil, dizendo que a capital estava imunda. Deixe lá que ainda hoje aquilo é uma lixeira! O que lhe gostaria de perguntar é o que o Senhor tem para nos dizer hoje?...Após mais de dois séculos de silêncio, de esquecimento revoltante que o votaram, diga-nos por favor e em carta o que pensa disto tudo. Fico à espera da resposta. Até lá, sou de V.Ex.ia Atento, Venerador e Admirador.
Eduardo Proença-Mamede
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Col. Museu de Anatomia Patológica. Fac. Medicina da UC
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carta do dr. vandelli a eduardo mamede
Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Eduardo Proença-Mamede: Sei que V. Senhoria me dedicou algum do seu tempo com uma exposição que aí organizaram à minha pessoa. Venho agradecer-lhe penhoradamente esse gesto do qual não sou digno. Em vida fiz-me odiar por muitos. Todos os professores da universidade que reprovei em 1773 tinham família e, se bem que muitos tinham morrido até 1777, o certo é que o meu protector morreu com o Rei D. José I e eu fiquei desvalido. Filhos, sobrinhos, irmãos dos que reprovei caíram sobre mim como cães e, se não morri em algumas ciladas, foi porque também tinha amigos nesse Portugal. Reconduzido D. Miguel da Anunciação à cátedra episcopal, este uniu‑se aos meus inimigos e a idade já não permitia que tivesse vontade própria. A Rainha D. Maria estendeu sobre mim o seu manto protector, mas estava longe e para mais longe foi em 1807, quando chegaram os franceses. Desde 1789 que estava senil, mas conseguiu incutir no filho um certo respeito por mim e o Príncipe-Regente tinha-me em grande estima. Mas o problema maior veio com os falsos amigos que tinha. Félix do Avelar Brotero, que tão bem aderiu aos ideais da Revolução Francesa, cobiçou-me o lugar no Jardim Botânico e não descansou enquanto não ocupou o meu assento. Vários professores da universidade lembram-se do despeito que eu fizera a seus pais e tios e toca a incentivar os meus alunos a fazerem pateadas nas aulas, faltando-me ao respeito. Minha mulher era da família Le Bon, prima do Marquês de Saint-Hilaire, titular francês que foi grande naturalista e com quem eu tinha trocado inúmeras cartas sobre todos os temas que se possam imaginar. Quando os franceses entraram no Reino, o Padre Tomé Sobral transformou o meu laboratório em fábrica de pólvora e eu travei-me de razões com ele. Aquilo era para o estudo, para a paz, não para a guerra e para a morte! Logo começou a correr que estava feito com os franceses. Quando estes entraram em Coimbra traziam ordens para levar certos animais empalhados que me trouxeram das colónias.
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Eu deixei-os ir para o meu primo e logo disseram que eu estava feito com eles, que roubavam tanto quanto as 14 carroças de alfaias das igrejas que saíram de Coimbra como saque. Quando o Batalhão Académico foi correr os franceses do forte de Santa Catarina da Figueira da Foz do Mondego, já eu estava desgraçado. O Brotero acusavame de tudo e o Sobral, com a sua piedade cristã, mordia na populaça para que fizessem um auto de fé com a minha família. Partiram-me as vidraças da casa à pedrada, arrombaram as portas e armários e vasculharam os meus papéis. Entreguei-me para que minha mulher e filhas não sofressem maiores males. A soldadesca inglesa, aboletada à Guarda Inglesa, foi à minha fábrica e lançaramlhe o fogo. Perdi parte substancial do que tinha! Levaram-me para Lisboa a ferros. Conheci os aljubes. Mandaram-me para os Açores, sem tempo para me julgarem verdadeiramente dos meus actos. Aí os juízes ficaram sem saber o que fazer comigo. Eu era um revolucionário cultural e mundial no meio de uma guerra de homens e povos mesquinhos e baixos. Permitiram-me fosse para Inglaterra, mas aquela maldita terra só me deu nevoeiros e frios, enfraqueceram meus ossos e senti-me a morrer. Condescenderam então em deixar-me ir para a casa de Lisboa e fui. Cheguei a uma terra porca e pus-me a escrever ao Rei-Regente. Mas a Rainha morria no Rio de Janeiro, em 1815, e eu achei melhor descansar também. Foi uma vida de trabalho e o descanso era merecido. E morri, Senhor Mamede, descansando em paz nos etéreos lugares que os humanos não concebem. Por aqui tenho estado em Paz e Sossego, no meu transnaturalismo. Deixe-me em paz e fique bem. Passeie no Jardim Botânico pensando em mim. Atenciosamente
Domingos Vandelli
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João Armando Ribeiro. S/ título. 2008.
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eduardo proença-mamede
domingos vandelli
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uma biografia transnatural
Pádua é uma cidade de dimensões medianas para Itália. Conhecida por ser “a cidade dos três sem: Um santo sem nome (pois todas as ruas vão dar á Basílica do Santo – Santo António, bem entendido), um prado sem erva (Piato del Vale é uma enorme praça do século XVIII, com braços do rio e completamente empedrada) e um café sem portas (referindo-se ao Café Petrochi, aberto dia e noite durante toda a semana), Pádua possui também uma secular universidade, fundada em 1222 (uma das mais antigas de Itália) e que já estava munida de um teatro anatómico no século XVI. Temos que ter presente este meio para entendermos o personagem que foi Domingos Vandelli. Filho do doutor Gerolano Vandelli, de uma ilustre família de Modena e professor de Medicina, e de Francesca Stringa, nasce Domenico Agostino Vandelli a 8 de Julho de 1736 e cedo conclui o curso de Filosofia. Em 1760 já teria o seu curso concluído e uma certa reputação granjeada, graças ao estudo da flora. Corresponde-se com o naturalista sueco Lineu e este dá o seu nome a uma planta em sua honra: a Vandellia. Sabe-se também que em 1762 Vandelli é convidado para leccionar na universidade de S. Petersburgo, na Rússia. De 1760 até essa data percorre o norte de Itália recolhendo objectos arqueológicos e de História Natural com que organiza o seu gabinete de curiosidades. É então que recebe o convite do Marquês de Angeja, D. Caetano Gaspar de Almeida de Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa, para vir organizar o seu parque e jardim no Lumiar. Lisboa erguia-se então, saída que estava do terramoto do dia 1 de Novembro de 1755. São nebulosos os primeiros anos de sua vida em Portugal. Com um tão alto mecenas como protector, não podemos admirarmo-nos que, pouco tempo passado, Domingos Vandelli fosse nomeado para delinear e dirigir o Real Jardim Botânico da Ajuda, anexo da “Barraca Real” em que teve início o Palácio do mesmo nome em Lisboa. É ao Marquês de Angeja e a D. Vandelli que se deve a criação do Real Jardim Botânico da Ajuda, obra tão estimada dos dois, que levou a que o Marquês de Pombal se queixasse já haver gasto mais 100.000 cruzados na sua feitura, em 1772.
Col. Museu de Anatomia Patológica. Fac. Medicina da UC
Até á chegada de Vandelli a Portugal, tudo quanto se sabia sobre a flora e botânica do nosso país resumia-se aos trabalhos do alemão Gabriel Grisley que, após a Restauração, em 1640, havia estudado o tema e impresso várias obras. Também o francês Jean Vigier se debruçou sobre o estudo de algumas plantas quando, ainda no reinado de D. Pedro II, se estabeleceu em Lisboa com uma loja de drogas medicinais. Este publicou uma obra de dois volumes sobre o tema em Lyon (França) no ano de 1718. Diz-nos Jácome Ratton, o grande homem de negócios do Portugal pombalino, no seu livro de memórias “Recordações” que, partindo o professor Falier para Génova, em Maio de 1765, abriu portas o Real Colégio dos Nobres, com “os professores Doutor Miguel Franzini, para as Sciências mathemáticas, o abade Tallier para a Physica experimental, o Doutor Vandelli para a História natural, e chymica, escolhidos todos pelo Abbade Faciolati”(sic). As universidades de Pádua e Pisa forneciam os cérebros da Europa do Iluminismo! Interessante será dizer que há uma carta, datada de 16 de Maio de 1764 e escrita por Nicolao Piaggio, recomendando ao então Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, Domingos Vandelli como uma boa aquisição para leccionar no Colégio dos Nobres. Curioso será dizer que quando este chega a Coimbra, em 1772, já havia adoptado o escrever o seu nome em português, assinando todos os seus documentos como Domingos Vandelli. a reforma universitária
Quando o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, decide reformar a universidade de Coimbra, para ela começa enviando o doutor em Filosofia Giovanni António Dalla Bella, natural de Pádua, a 4 de Maio de 1772. Face à péssima recepção que este italiano teve em Coimbra da parte da Igreja e dos poderes instituídos, decide o próprio primeiro ministro cá vir e trazer com ele os homens certos para os lugares que entendia serem os correctos, empossando-os ele mesmo com os graus académicos desejados. É assim que, a 9 de Outubro de 1772, recebem as insígnias doutorais o dito dr. Dalla Bella em Filosofia, bem como Domingos Vandelli em Medicina e, logo a 12 de Outubro, em Filosofia. Como professores de Matemática recebem insígnias doutorais o dr. Michéle António Ciera, piemontês, e o dito dr. Michéle Franzini, veneziano de nação. Para Medicina, já havia sido requerido o inglês Simon Gold ou Goold a 3 de Outubro, recebendo o seu grau académico a 9 de Outubro também, bem como Luigi Cichi, que leccionava Anatomia no Porto transitou para Coimbra. Em 1776, Simon Gold falece e é substituído, em 1788, por Ricardo Teixeira
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Maconelli, um irlandês com origens italianas. Serão estes os homens que trarão toda uma revolução no ensino em Portugal, não fosse Coimbra a única universidade do Império Português de então. Seria impossível uma revolução no ensino e, sobretudo, na universidade de Coimbra sem ir beliscar os poderes que a Igreja tinha então. O bispo de Coimbra e o abade do mosteiro de Santa Cruz exercem as funções de censores sobre os livros universitários. D. Miguel da Anunciação, da nobre família dos Cunhas, senhores de Tábua, sentava-se na cátedra episcopal conimbricense e, como religioso de então, mantinha longe todos os livros que preconizassem novos saberes e pensares dos sistemas teológicos da época. Tendo exercido censura sobre muitas obras que os italianos quiseram trazer para Coimbra, sabendo da visita do primeiro ministro do Rei D. José I, sai de Coimbra em visita pastoral a conventos e mosteiros das redondezas. È deste modo que é detido e preso no mosteiro de Santa Maria de Semide. Considerada “sede vacante” o bispado de Coimbra, dobram os sinos das igrejas a bispo defunto enquanto D. Miguel da Anunciação é encerrado no forte da Junqueira em Lisboa, junto a muitos dos opositores de Sebastião José de Carvalho e Mello. Para o bispado de Coimbra é nomeado o novo bispo D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho. Filho de Manuel Pereira de Lemos e Faria, natural do Rio de Janeiro, e de D. Helena de Andrade Sottomayor Coutinho, era seu pai senhor dos engenhos e terras de Marapicu, Cabussu, Itaúna e dos pauis e pantanais de Guandu. D. Francisco de Lemos vinha a ser quarto neto de Amador Bueno que, tendo sido escolhido pelo povo do Brasil para o elegerem rei, recusou essa honra, aclamando D. João IV,em 1640. A estreita amizade entre o bispo de Coimbra e Domingos Vandelli será um elemento crucial para as mudanças que tiveram lugar na universidade de Coimbra. D. Francisco viera estudar para Coimbra muito jovem e doutorarase na faculdade de Cânones com 19 anos. A 31 de Julho de 1761 foi feito reitor do Colégio das Ordens Militares. Tendo vagado o lugar de deão da Sé do Rio de Janeiro, pediu para ser nomeado para esta dignidade, mas o marquês de Pombal terá despachado assim:”Não lhe convém tal emprego, não limite tanto as suas vistas”(sic). Sucessivamente, é nomeado juiz geral das Três Ordens Militares (29 de Agosto de 1767), desembargador da Casa da Suplicação (18 de Janeiro de 1768) e deputado supranumerário da Inquisição de Lisboa (29 de Janeiro do mesmo ano). Foi escolhido para reitor da universidade a 14 de Maio de 1770, com 35 anos de idade, e tomou posse a 29 do dito mês. Foi bispo de Coimbra e reitor da universidade até 1779, mas para exercer o primeiro cargo foi eleito bispo de Zenópolis “in partibus infidelium”.
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A 9 de Outubro de 1772, Domingos Vandelli está em Coimbra com a família. Compra uma casa na rua da Calçada (actual rua Ferreira Borges) com cómodos para todos alojar, casa de dois andares e com oratório, onde serão baptizadas algumas das suas filhas que cá nascem. Com ele vêm várias carroças com a sua colecção de fósseis, os seus herbários, o seu gabinete de curiosidades, os seus animais exóticos empalhados. A partir de então toda a instituição de ensino vai conhecer as mudanças necessárias para uma nova era! Proscrita a Companhia de Jesus em 1759, ficou devoluto o vastíssimo Colégio das Onze Mil Virgens, entrando para o património da coroa. D. José I, por carta de 11 de Outubro de 1772, autorizou o marquês, como visitador da universidade, a dar-lhe destino. A 14 do mesmo mês este concede ao cabido da cidade a igreja, a sacristia e a ala sudoeste do edifício. O resto do edifício ficou à universidade, que tomou posse a 19 do mesmo mês. Lá se instalaram os museus de Zoologia, de Mineralogia e Geologia, o Laboratório de Física graças á tenacidade e querer de Domingos Vandelli. Frente ao edifício que foi a faculdade de Ciências ergue-se o Laboratório Químico, cuja traça deve ter ficado a dever ao general Guilherme Elsden. O corpo central tem quatro colunas dóricas que formam corpo avançado, correspondendo a porta ao vão central e dois nichos vazios aos outros. Pilastras dóricas formam quatro espaços aonde se rasgam amplas janelas em arco. Em 1773, tendo vindo a Coimbra este tenente-coronel alemão Elsden escolheu, juntamente com os doutores Vandelli e Dalla Bella, o terreno para o Jardim Botânico da universidade, o qual pertencia quase todo á cerca do colégio de S. Bento. Nesse mesmo ano o primeiro ministro rejeitará esse projecto por ser enorme e dispendioso. No ano seguinte o marquês autorizará a compra de um terreno da cerca do convento de S. José dos Marianos (actual Hospital Militar e antigo Colégio das Ursulinas). Levaram entulho do castelo e das obras do antigo colégio dos Jesuítas para o lugar e só em 1790 se dará por concluído parte do jardim, da parte do Seminário Maior. Só no reitorado de D. Francisco Rafael de Castro, em 1794, foram terminados os lanços da escadaria, portões e parapeitos do quadrado inferior. Retomando o bispo-conde D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho o reitorado em 1799, mandou em 1801 construir as escadas do segundo plano; em 1805, encarregou o desenhador Gregóriode Queirós de delinearas obras que projectava fazer; em 1807 comprou parte da cerca dos religiosos Marianos. Só com a extinção das Ordens Religiosas, em 1834, a cerca dos frades de S. Bento até junto ao rio fará parte integrante do Jardim Botânico, não sendo portanto do tempo de Domingos Vandelli. Em Novembro de 1774, o Horto
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Botânico recebeu as primeiras plantas vindas por mar, ficando encarregado da sua plantação Júlio Mattiazzi, jardineiro do Real Jardim Botânico da Ajuda, formado por Vandelli e devendo regressar ao Jardim Botânico da Ajuda finda a tarefa. Assim aconteceu, ficando como o primeiro jardineiro do Jardim Botânico de Coimbra para tal fim nomeado João Luís Rodrigues. Em 1791, atendendo ao muito que Domingos Vandelli fazia nos outros departamentos da universidade, o Jardim Botânico foi entregue a Félix do Avelar Brotero, que passou a ser o seu director. Vários planos de estufas foram gizadas nesses primeiros anos, mas só em meados do século XIX, mais propriamente em 1856, se ergueram as duas estufas existentes em ferro fundido e vidro, parte no Instituto Industrial de Lisboa e parte na fundição de Massarelos no Porto. a louça de vandelles
Domingos Vandelli tinha 37 anos quando encetou todas estas tarefas e é inacreditável como conseguiu tanto fazer em pouco mais de trinta anos. Porém, o seu trabalho não ficou por aqui: ciente da importância da louça e conhecedor dos barros e argilas da região de Coimbra, funda a Fábrica de Louça Vandelli ao Rossio da ponte de Santa Clara, precisamente nos terrenos entre o mosteiro velho de Santa Clara e a Real Fiação de Cordas, Amarras e Linho Cânhamo, fundada no século XVII, erguendo-se hoje no seu lugar o “Portugal dos Pequenitos”, jardim recreativo e cultural dos mais novos, fundado pelo dr. Bissaya Barreto na década de 1940. Vandelli passou pouco mais de uma década em Lisboa, uma cidade que renascia das cinzas, e privou com os homens que fundaram a fábrica de louça do Rato. Com o seu saber, tê-los-á ajudado na escolha das argilas e barros, na obtenção dos elementos que compunham a pigmentação das cores. Já em 1772, um ano antes do fabrico em Portugal da “primeira peça de porcelana”, Vandelli escrevia a Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso no Brasil, pedindo-lhe para examinar “todas as espécies de terras as quaes podem servir para fazer e pintar louça”. Com a reforma da universidade e a necessidade de se fundar uma fábrica de Telha Vidrada para as obras que se efectuaram, Vandelli seguiu de perto a sua fundação e o fabrico, fábrica que se manteve em funcionamento na rua João Cabreira até 1780. Ele ainda tenta, junto de Azevedo Morato, administrador da mesma arrendar o lugar, mas uma decisão judicial leva a que as chaves da mesma fossem entregues ao senhorio em 1781. Assim, em 1784, Domingos Vandelli funda a Fábrica do Rossio de Santa Clara que se manteve a laborar até 1810, ano em que um fogo, ao que parece ateado
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por soldados ingleses aboletados à Guarda Inglesa terão ateado. Como homem de saberes práticos o fundar uma fábrica nesses tempos era para ele um misto de fonte de rendimento extra e uma experiência cativante. O certo é que o uso revolucionário do verde e do sépia na sua louça foi uma inovação muito estimada e nada tardou que estas cores viessem repor o monocórdico azul e branco da olaria coimbrã. Em breve não eram só os estabelecimentos universitários renovados que ostentavam painéis de azulejos da sua fábrica; o mosteiro de Santa Maria de Semide e muito outros não desdenhavam exibir painéis de azulejos encomendados no Rossio de Santa Clara. Dois trabalhadores da sua fábrica deixam o seu nome gravado na ouro na produção e evolução da azulejaria: trata-se de Salvador de Sousa Carvalho e Manuel da Costa Brioso. Para lá de tudo isto e á semelhança da fábrica do Rato, em Lisboa, Vandelli produzia louça de carácter utilitário, como jarras, pratos, travessas, canecas e areeiros. Portanto, a sua fábrica não só produziu louça em barro vidrado, que o povo apelidou de “Louça de Vandelles”, como peças em porcelana branca e fina, á semelhança da fábrica lisboeta do Rato. A ideia do prático impunha-se sempre a qualquer conceito de estética, mantendo os seus padrões de pintura características muito próprias e formatos de louça bem singulares. Tal facto leva a que hoje seja difícil distinguir a louça do Rato da “louça de Vandelles” e ém justo que ambas tenham um valor elevado no mercado de antiguidades. expedições e viagens filosóficas
Tendo encontrado um país onde quase tudo estava por fazer, Vandelli não pára e resolve, no lugar privilegiado de professor da única universidade do Império, encetar esses trabalhos. Lecciona de 1772 até 1789 mas, no final de cada curso, encarrega um ex-estudante capaz para dirigir uma expedição ou viagem filosófica ás suas terras de origem em busca de recursos naturais que fossem uma mais valia para a região. Deste modo vai compilando elementos preciosos da fauna, flora, mineralogia e hidrologia de todo o reino. Lugares tão díspares como a serra do Marão e da Estrela vão divulgando as suas riquezas a par das planícies alentejanas e das lezírias do Tejo e Sado. Deste modo, mesmo depois da sua morte, Jacinto da Costa, na sua obra “Pharmacopea Naval e Castrense”, impressa em 1819, menciona na página 198 em nota de rodapé mencionando as águas medicinais de Carcavelos: “Conforme huma analyse, que me foi confiada, do Dr. Domingos Vandelli, huma libra mercantil ou dezeseis onças destas águas contém:
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Gás hepático Ácido aéreo Sal fontano ou marino
grãos
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grãos
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grãos
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A base de alcali Sal fontano A base térrea Terra solvente ou Magnesia Salenite
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N. B.: São úteis nas parelesias e estupores espúrios, nos theumatismos, nas convulsões, na gota arthritica, nas hydropesias, diarrhéas, fluxos menstruaes immoderados, na irritabilidade do conducto intestinal, e nas enfremidades cutâneas, etc.”. Em 1779 encarrega José António de Sá a uma expedição na serra de Montezinho (Aldeias de Montezinho e Cova da Lua, França e Chacim); em 1782 Baltazar da Silva Lisboa fica encarregue de liderar uma expedição na região de Coja e, no mesmo ano, Joaquim Vicente Pereira e Manoel Joaquim da Maia lideram outra á serra do Gerez. José Álvares Maciel lidera uma outra expedição á serra da Estrela em 1785 e, no ano seguinte, é Mateus Bissignandi que lidera outra em Trás-os-Montes. Em 1786 cabe a vez a José Maria Arnaud e filhos de fazer uma viagem filosófica a Chaves, Mirandela e Bragança, na província de Trás-os-Montes. Em 1789 é Constantino Botelho Lacerda Lobo que explora várias partes da região do Douro Litoral, Minho e Trás-os-Montes (de 22 de Setembro a 24 de Novembro), enquanto em 1790 lidera uma expedição na Primavera ás ribanceiras do rio Tejo Estêvão Dias Cabral. Nesse mesmo ano, o já citado Lacerda Lobo enceta uma viagem filosófica que parte de Lisboa e percorre Setúbal, Sines, Albufeira, Faro, Olhão, Monte Gordo, Vila Real de Santo António, Castro Marim e Lagos (de Setembro a fins de Dezembro). No ano seguinte, Lacerda Lobo ainda lidera outra expedição á Figueira da Foz. Em 1792 José Manuel Carvalho Negreiros, na Primavera, explora as lezírias do Tejo e nesse mesmo ano Lacerda Lobo explora a costa de toda a Beira Litoral até Lisboa, indo no ano seguinte para o Algarve. Em 1796 José Inácio Pais Pinto explora a região de Sesimbra. Em 1801, José Bonifácio de Andrada e Nepeon, um naturalista piemontês, fazem ainda uma expedição mineralógica às costas da Estremadura e Beira. Mas de todas estas viagens expedicionárias a mais transcendental e mirabolante foi a da Amazónia, liderada por Alexandre Rodrigues Ferreira e chamada de
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“Viagem Philosophica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Matto Grosso e Cuyabá”.Ela durou 9 anos, pois começou em 1782 e terminou em 1791, tendo percorrido milhares de quilómetros inóspitos e desconhecidos, recolhendo todo o género de materiais para enviar para Lisboa. Transcrevo mesmo palavras escritas por Alexandre Rodrigues Ferreira nessas memórias: “…Agora acabo de receber hum dos bixinhos que lá no Gabinete estão preparados porq. como eu não figuro a este tempo se não de Missionário da História N. todos me mandam hum bixo, outro huma pedra, porque no Real Gabinete de S. Mag. a todos digo q. terão os seus Nomes.”… Alexandre R. Ferreira era natural da Baía e ingressou na faculdade de Filosofia de Coimbra a 26 de Novembro de 1774, obtendo o grau de doutor a 10 de Janeiro de 1779 das mãos do próprio Domingos Vandelli. Parece que tendo sido a viagem organizada por Vandelli e Ferreira, a tudo não esteve alheio o Secretário de Estado Martinho de Mello e Castro. Faziam parte desta expedição um jardineiro botânico, Agostinho Joaquim do Cabo, e dois riscadores, Joaquim José Codina e José Joaquim Freire. Para Portugal vieram enormes colecções de objectos nunca antes vistos, quer para o gabinete de História Natural de Lisboa, no Palácio da Ajuda, quer para a universidade de Coimbra. De notar que, logo em 1808, parte do espólio no Palácio da Ajuda levou destino para França, sendo hoje parte integrante do Museu de História Natural de Paris. É que um dos que acompanhava o General Junot, na 1ª Invasão Francesa, era Geoffroy Saint-Hilaire, Marquês do mesmo nome, célebre naturalista francês e ainda parente da mulher de Domingos Vandelli, que ordena que “76 exemplares de 65 espécies de Mamíferos, 387 exemplares de 239 espécies de Aves, 32 exemplares de 25 espécies de Répteis e Anfíbios, 100 exemplares de 89 espécies de Peixes, 508 exemplares de 209 espécies de Insectos, 12 exemplares de 5 espécies de Crustáceos, 468 exemplares de 272 espécies de Moluscos e Cirrípedes, 42 amostras de fósseis, 10 herbários incluindo 2855 plantas” fossem tiradas das colecções régias como saque. Tirando tudo isto, encarrega Joaquim José da Silva, natural do Rio de Janeiro, a uma expedição a Angola, que teve lugar de 1785 a 1787. Outra ainda a Cabo Verde liderada por João da Silva Feijó que se iniciou em 1783 e findou em 1797, e ainda Manoel Galvão Telles, natural da Baía, liderou outra que partiu de Lisboa em 1783 com destino a Goa (Índia), chegando a Moçambique em 1784. Ainda tornou-se comerciante e legou-nos alguns escritos sobre a costa oriental de África. Pena é que os documentários dessas viagens se tenham perdido, porém nada obsta que Domingos Vandelli tenha compilado saberes e informações
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preciosas para o tempo. Aqui deixo apenas um breve registo dos vastíssimos conhecimentos que Vandelli conseguiu reunir em Portugal. vandelli, os reitores da universidade, os alunos e a família
Durante a década de 1770, Domingos Vandelli terá vivido em Coimbra uma época dourada, época de grande enriquecimento e de grande prestígio pessoal. Porém, a morte do Rei D. José I e a queda do marquês de Pombal, em 1779, será o princípio do declínio deste estado de coisas. Ao Reitor D. Francisco de Lemos sucedeu D. José Francisco Miguel António de Mendonça (1779 – 1785), filho de D. Nuno de Mendonça, 4º Conde de Vale dos Reis, Senhor da Azambuja, da Póvoa e de Meadas, e do Morgado da Quarteira (no Algarve), e de D. Leonor Maria Antónia de Noronha, filha do 1º Marquês de Angeja. A este sucedeu o Reitor D. Francisco Rafael António de Castro (1786 – 1799), filho de D. António José de Castro, 1º Conde de Resende, Almirante de Portugal e Deputado da Junta dos Três Estados, e de D. Teresa da Cunha de Távora, filha dos 4º Condes de S. Vicente. Pela genealogia dos dois se pode antever, unindo ao que se sabe da História, como estes reitores eram um pouco adversos ás modernidades que Domingos Vandelli poderia trazer á sociedade. Só quando D. Francisco de Lemos Pereira Coutinho é reeleito Reitor da Universidade, desta vez de 1799 a 1821, é que Vandelli poderá ter reatado com maior ânimo as suas iniciativas, tendo o beneplácito do Reitor. Quis o destino que esta sorte pouco durasse! Se bem que se note que houve um incremento no Jardim Botânico e no seu alargamento, apesar de ser seu director Félix do Avelar Brotero, o certo é que a evolução do mesmo só teve lugar quando Vandelli não era mais o seu director. A Família Real refugia-se no Brasil e parte de Lisboa em Novembro de 1807. Vandelli fica quem o protegia, uma vez que não era só o Príncipe Regente que partia, mas os Marqueses de Angeja e toda a alta nobreza do reino. Os seus inimigos podiam agora tirar desforras velhas! Em relação aos seus discípulos, Vandelli granjeou fama pelo seu espírito comunicativo e dom de palavra arrebatador. E também uma expressão dentro do meio académico: “-Não entendo patavina!”. É que Pádua diz-se em latim Patavii e como muitos dos livros de Vandelli foram impressos na sua pátria, atribui-se o mal de não saber ao latim de Pádua, como se fora diferente do demais e, portanto, culpa do sotaque do Mestre. Como seus discípulos destacarei os nomes de alguns: Luiz António de Mendonça Furtado, Visconde de Barbacena; José da Silva Lisboa, mais tarde Visconde de Cauru;
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José Bonifácio de Andrade e Silva e José de Sá Bettencourt e Achioly, natural de Minas Gerais. Deixei dito que o seu primogénito nasceu em Lisboa em 1784. Também em Coimbra nascer-lhe-ão umas filhas no final dessa década, princípios da década de 1790.Estas foram baptizadas no “Oratório da casa de Seu Pai”, como o padre da freguesia de S. Bartolomeu registou no livro de baptismos. Tudo isto revela o esplendor que ele terá vivido nesta cidade. o fim inglório de domingos vandelli
Já deixei dito que a Família Real e a Corte embarcam para o Brasil em Novembro de 1807. Vandelli é dos que ficam. Com 60 anos de idade era para a época um velho, um sábio e julgava-se que nenhum mal lhe adviria. Dirigia o Laboratório Chymico em 1807, o Padre Thomé Rodrigues Sobral (1760 – 1829), ex-aluno de Vandelli, patriota exaltado que vive ao rubro as manobras do exército napoleónico e o perigo que Portugal vivia. Mal chega a nova que Junot havia entrado no país por Almeida, logo o doutor Sobral exalta os ânimos, preconiza que se use o Laboratório para fabricar explosivos que combatam os franceses. Vandelli opõe-se; fundara essa instituição para o ensino, não para a guerra. Desconfianças surgem de todo o lado! O professor paduano mostrava pouco patriotismo, era “afrancesado”. Escrevia em francês; sua mulher era parente do Marquês de Saint-Hilaire, naturalista que acompanhava Junot para pilhar os bens nacionais; tudo levava a crer que ele estava mais com o invasor do que com a Nação. Nos meandros ultra-católicos consta-se mesmo que o homem sempre foi enciclopedista! A populaça vai-lhe apedrejar as vidraças da casa na rua da Calçada e partemlhe umas carroças de louça que vinham para a cidade. Vandelli queria pôr a salvo as filhas solteiras que junto dele passaram a viver o medo dos tempos. Na capital já não tinha ninguém que lhe valesse e restava-lhe o Bispo de Coimbra. Este protegeu-o até não poder mais. Na noite de 10 para 11 de Setembro de 1810 tem lugar a Setembrada, uma sedição militar que tem lugar no Recife e que levou aos mais atrozes crimes. Em Lisboa é movido um processo contra Domingos Vandelli, acusado de “afrancesado”, ficando sujeito á justiça inglesa que se vem impor mais tirânica e brutal que a justiça do saque e dos invasores. O processo arrasta-se e resolvem transitar o “criminoso” para as prisões da ilha Terceira, nos Açores, longe da cena dos acontecimentos. Vandelli embarca com seu filho Alexandre António na fragata Amazona no dia 18, deixando o forte de S. Julião da Barra. Após um julgamento sumário, enviam os prisioneiros para Inglaterra, tendo os seus passaportes a
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data de 20 de Fevereiro de 1811. Parece que nenhuma acusação caía em concreto sobre o sábio! Só que Vandelli não tem mais trinta ou quarenta anos para aguentar essas viagens, em condições pouco cómodas. Vale-lhe a protecção de Sir Joseph Banks, personagem influente na Royal Society of London. Em Inglaterra, ressente-se do clima pouco saudável. Os frios dos Invernos de 1813 e 1814 trazem-lhe graves crises de reumático que ele aguenta estoicamente. Tenta sempre responder às judiciosas cartas que vai recebendo desde 1808 sobre a fundação de um Jardim Botânico no Rio de Janeiro ( o Real Horto ) e o seu saber esclarece muitos pontos, tanto mais que este estava a ser fundado sobre um terreno que antes da chegada da Família Real servira como fábrica da pólvora. Seria o triunfo da ciência sobre a força bruta! Em 1815 é-lhe consentido regressar a Portugal. Ele regressa para asua casa de Lisboa, mas regressa um Vandelli cheio de achaques, com 70 anos. Quando chega a Lisboa encontra a cidade em grande desalinho, as ruas num enorme desleixo. Começa logo a trabalhar e começa a redigir para o Príncipe Regente: “Limpeza da Cidade – Domingos Vandelli Conselhos de Vandelli para o Princípe Regente”. Mal sabia que a Rainha D. Maria I expirava no Rio de Janeiro e o Príncipe era coroado Rei. A morte encontra Domingos Vandelli em Lisboa, dia 27 de Junho de 1816. Apressaram-lhe o enterro e esqueceu-se o Homem. Mais tarde, seu filho, Alexandre António Vandelli, guarda mór dos Estabelecimentos da Academia Real das Ciências, nascido em Lisboa em 1784 e falecido no Rio de Janeiro em 1859, agarra nos manuscritos e anexa-os á demais papelada na Academia. E durante toda a primeira metade do século XIX, quando se queria saber algo sobre a flora, a mineralogia, as águas deste país recorria-se ás notas de Vandelli, única fonte de saber em Portugal. Só em 1911, numa outra reforma universitária, se funda o Laboratório de Antropologia e se vão buscar os despojos da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. O nome de Vandelli é por instantes lembrado e dão o seu nome a uma rua escusa e pouco conhecida que perfilava face ao antigo Colégio das Ursulinas, transformado em Hospital Militar. E de cai no esquecimento o nome de Domingos Vandelli. E assim tem sido!!!
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André Cepeda. Sequência. Movimento#9. 2000. Col. Centro Português de Fotografia.
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João Fonte Santa. Un de ces longs Bras se par L’ouvertoure. 2006. Col. Victor Pinto da Fonseca.
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João Fonte Santa. Le Canot Lancé au Millieu du Turbillon. 2006/2007. Col. particular.
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Inez Teixeira. O Exílio e o Reino IV. 2008. Col. de autor.
Welwitschia mirabilis. 1927. Col. Dep. Botânica da UC.
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Cunha Moraes. África Occidental - Feitiço. C. 1880. Col. António e Alexandre Ramires.
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Cunha Moraes. África Occidental - Caçada ao Hypopótamo. C. 1880. 20 de Novembro 1920. Col. António e Alexandre Ramires
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Cunha Moraes. África Occidental - Mondombes. C. 1880. Col. António e Alexandre Ramires.
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Herbário de Angola. C. 1930. Col. Dep. Botânica da UC.
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Ana Maria Carrisso. 1929. Col. Dep. Botânica da UC.
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alexandre ramires
curiosidades da fotografia no paço da boa vista
as
albuminas
de
angola
de
chancela
moraes,
os
primeiros
daguerreótipos no rio de janeiro e o physionotypo
É no paço da Boa Vista que agora se expõem fotografias, desta feita de Angola, de autoria de Moraes, Loanda. São 29 albuminas, de um total de 48 que foram distribuídas a acompanhar os fascículos de uma obra, em dois volumes, com o título “Africa Occidental”, com a autoria fotográfica de C. Moraes e textos de Ferreira Sales, com data de 1882 para o primeiro volume e 1883 para o segundo volume. Em Portugal sairá, entre 1885 e 1888, uma série de quatro álbuns com imagem fotográfica sobre Angola, da autoria de C.Moraes, com o título “Africa Occidental, Álbum Photographico e Descriptivo”, só que desta vez a técnica utilizada para reproduzir as imagens é a fototipia. A história desta autoria fotográfica, C. Moraes, que nos leva até estas albuminas, começa em Coimbra em Agosto de 1852, quando Abílio Simões da Cunha Moraes (1825-1871), professor particular de meninos que vivia na rua da moeda em Coimbra, a cerca de uma centena e meia de metros da casa onde tinha vivido Domingos Vandelli, é preso por crime de moeda falsa e depois de ter ficado detido e julgado, é finalmente libertado com grande escândalo, porque permanecia a suspeita de que alguns dos jurados eram cúmplices, facto que veio a ser confirmado posteriormente. De novo preso pelo mesmo tipo crime, em Junho de 1856, Abílio da Cunha Moraes é mantido preso e, só em 1860, condenado a Degredo Perpétuo com Trabalhos Públicos; não obstante, mantinha um estabelecimento de relojoaria e de latoaria de amarelo na rua de Coruche, cujo funcionamento era provavelmente assegurado pelo seu irmão Clemente da Cunha Moraes, que em 1859 mudará para a rua da Sofia. Quando do casamento do Rei D. Luis com Dª Maria Pia, em 1862, foi decretada uma amnistia que concedia
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aos presos que as suas penas fossem aliviadas para as penas imediatamente abaixo. Este facto teve como consequência que a pena de Abílio da Cunha Moraes fosse transformada na pena de degredo por 15 anos para Angola. Partirá de Coimbra para Luanda a 29 de Maio de 1863, seguido de seu irmão Clemente, e da sua mulher e filhos. Em Luanda vai abrir a casa fotográfica Moraes. Abílio morre em 1871 e os filhos Augusto César, e José Augusto vão continuar a actividade do Pai. A chancela vai mudar para Viúva Moraes e Filhos. José Augusto da Cunha Moraes (1855-1933) vai tornar-se um dos nomes maiores da actividade fotográfica em Angola durante o século XIX. É para estas viagens, no tempo intervaladas de quarenta anos, que remeto o leitor, a da prioridade dos primeiros daguerreótipos no Brasil e da apresentação do Physionotypo no Rio de Janeiro. O Paço da Boa Vista, é o local onde foi apresentado, demonstrado, produzido e oferecido a D. Pedro II o daguerreótipo no Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro foi a segunda cidade da América do Sul a ser palco de produção de daguerreótipos, a seguir à Bahia e imediatamente antes de Montevideo, como adiante daremos a entender. Em alguns textos de história da fotografia no Brasil refere-se que o primeiro daguerreótipo feito na América do Sul é uma vista do Paço da Cidade, obtida conjuntamente com outras duas do Chafariz do largo do Paço e da praça do Peixe. Se consultarmos as fontes documentais da época, podemos chegar à conclusão de que esta afirmação pode não estar correcta. Os autores dos primeiros daguerreótipos feitos na América do Sul são, sem dúvida, os manipuladores do daguerreótipo que viajavam no navio escola L’Oriental, que zarpou de Nantes a 1 de Outubro de 1839, passou por Lisboa na semana de 7 a 15 de Outubro, esteve em Pernambuco de 30 de Novembro a 4 de Dezembro, e na Bahia de 7 a 17 de Dezembro e chegou ao Rio de Janeiro a 24 de Dezembro de 1840. Os demonstradores foram o abade Louis Compte e, provavelmente, também o capitão do barco Augustin Lucas. O jornal do Comércio do Rio de Janeiro publica, a 17 de Janeiro de 1840, uma notícia que dá conhecimento de um ensaio fotográfico feito pelo abade Compte, na hospedaria Pharoux. O mesmo jornal publica, três dias depois, o relato da apresentação no Paço da Boavista, onde o abade Compte teve a honra de se apresentar, para explicar, na presença do Imperador: “para ver por em uso o aparelho de Daguerre”…”posto este em prática formou-se em nove minutos a
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vista da fachada do paço” (da Boa Vista)…”cujo processo mereceu-lhe toda a attenção, e cujos productos S.M. o Imperador se dignou aceitar”. Deste relato esperaríamos que os daguerreótipos oferecidos ao Imperador fossem do paço da Boavista, o que não impede que também lhe tenham oferecido outros de outros locais feitos dias antes. Por esta altura, D. Pedro II tinha acabado de fazer 14 anos e falava e escrevia correctamente o francês. Esta notícia foi reproduzida no jornal “O Recreio”, de Lisboa, em Setembro de 1840, sendo explicito que o local de apresentação a D. Pedro II é o Paço da Boa Vista. Na rota do Oriental, foram ficando pelo caminho alguns dos passageiros e tripulantes. Foi o caso do abade Compte, que ficou em Montevideo, onde, a 29 de Fevereiro de 1840, fez uma demonstração na Sala de Sessões do Corpo Legislativo, a que assistiu o jornalista Teodore Vilardebó, que a relata no jornal El Nacional, Montevideo, de 6 de Março de1840. Nesta apresentação Louis Compte executa o processo e diz quais os locais que, na América do Sul, já conhecem a técnica do daguerreótipo, aplicada pelos operadores que viajavam no Oriental. Escreve Vilardebó “Montevideo, depois da Bahia e do Rio de Janeiro, foi um dos três locais em que aplicaram o daguerreótipo”. Se compararmos com a rota da fragata Oriental, verificamos que a sequência de passagem é Baía, Rio de Janeiro e Montevideo, sendo a prioridade cronológica de feitura de daguerreótipo a mesma. Apontamos, assim, para a Bahia como sendo o local de obtenção do primeiro daguerreótipo feito na América do Sul. O Oriental também trazia consigo uma outra inovação, o “Physionotypo”, inventada por Frédérick Sauvage, publicitada no jornal da Bahia, o Correio Mercantil, a 13 de Dezembro de 1839, com o título” Novo modo de suprir a sculptura”, e continuava, “O capitão da corveta Oriental, que se dirige a fazer a viagem de instrução à roda do mundo. A fim de obter tudo o que pode interessar às Sciencias, ao commércio, e à industria de França, trás em sua companhia um artista para estampar os povos mais remotos, e menos conhecidos com o intuito de enriquecer os museos francezes. Este artista que antes da sua partida de Paris fez por seu particular methodo os bustos de toda a família real, previne os habitantes desta cidade, que elle se aproveita da sua demora neste porto, para modellar as pessoas que desejarem ter a sua perfeita effige. A operação he executada no espaço de 2 a 3 minutos, e quem pretender se pode dirigir a Mr. Sauvage, a bordo da dita corveta que pouca demora terá.” Ao chegar ao Rio de Janeiro é publicado no Jornal do Comércio, a 28 de Dezembro
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de 1839 e a 4 de Janeiro de 1840, o seguinte anúncio: ”O Physionotypo, Hotel da Europa, rua do Carmo, canto da do Ouvidor”, e prossegue: “O Sr Frederico Sauvage, inventor de novo instrumento chamado physionotypo, e hum dos sábios empregados na expedição didáctica e scientifica do navio escola oriental, encarregado de fornecer aos museus francezes os typos de todos os povos que deve visitar a expedição, tem a honra de participar ao publico que as pessoas que desejarem ter a perfeita semelhança de seu rosto, seja de face, seja de perfil, quer em busto, quer em medalha, poderão aproveitar-se da sua estada nesta corte. A operação tão simples quanto fácil, não dura mais que hum segundo. Caso não satisfaça a semelhança, o retrato será quebrado immediatamente, e nenhuma retribuição se deverá ao artista. Nota – O Sr.Sauvage deseja achar um artista que o ajude nos seus trabalhos, somente para moldar. A 17 de Janeiro de 1840, o mesmo jornal regista a feitura, pelo physionotypo, dos bustos do Imperador e do Regente Araújo Lima, futuro marquês de Olinda, que ficaram expostos até 23 de Janeiro de 1840. Sauvage fica no Rio de Janeiro após a partida do Oriental, continuando a aplicar a sua arte; adoece em Fevereiro e, em Abril de 1840, anuncia o seu regresso. O Physionotypo consistia num aparelho que permitia fazer escultura em muito pouco tempo (mais rápido do que o daguerreótipo), com recurso a um dispositivo que dispunha de umas agulhas que ajustavam ao rosto da pessoa a esculpir e a partir dai construir um molde, com o qual se obtinha a escultura. Não confundir este aparelho com o Fisionotraço, aparelho com o qual se desenhava uma silhueta, inventado em 1788 por Quenedey e Chrétien. O physionotypo foi apresentado à Rainha de Portugal, Dª Maria II, quando o Oriental aportou a Lisboa na semana de 7 a 15 de Outubro de 1839. Frédérick Sauvage (1785-1857) foi autor de inúmeras invenções, entre as quais a hélice aplicada aos barcos a vapor, invenção da qual não beneficiará, morrendo louco e na miséria. O navio escola Oriental acabará por naufragar em Valparaiso, no Chile, a 23 de Junho de 1840. A Portugal, a notícia chega através do jornal L’Abeille, de 24 de Outubro de 1840, que aproveita para relembrar a passagem por Lisboa do Oriental. Este jornal era editado em Lisboa, em língua francesa. Alguns investigadores consideram com base no registo de tripulantes, que este Frédérick Sauvage, que faz Physionotypos no Rio de Janeiro, pode não ser o próprio inventor, mas um familiar seu do mesmo nome que viajava a bordo como aluno.
Fréderick Sauvage. C. 1850. Col. António Ramires
Miguel54Palma. Arca de Noé. 2007.
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João Fonte Santa. Ces Indigénes Rôdèrnt Près Du Nautilus. 2006. Col. de autor.
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Esclave Maron. 1847. Col. Alexandre Ramires.
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Albuquerque Mendes. Êxtase de S.Sebastião. 1983. Col. de autor. 58 Albuquerque Mendes. No Coração das Trevas. 2002. Col. particular.
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Tucano. Col. Secção de Zoologia (MHN) FCTUC. Susana Paiva. A Domenico Vandelli 1735-1816. Breviário para uma história natural. 2003.
carta do bispo-conde d. francisco de lemos para vandelli
Caro Doutor Domingos Vandelli: Paz em Deus e com Deus. Fui o quarto neto de Amador Bueno, aquele que após a expulsão dos franceses e holandeses de solo brasileiro os povos do Brasil queriam que cingisse a coroa de Rei dessa colónia. Meu antepassado declinou o convite a favor de D. João de Bragança, o Senhor D. João IV de saudosa memória. Ele declinou, mas eu não teria declinado. Sabeis Domingos Vandelli como a ambição sempre me norteou! Meu pai era Senhor dos engenhos e terras de Marapicu, Cabussu, Itaúna e dos pauis e pantanais de Guandu. Mas deixara bem claro que tudo isso era para meu irmão mais velho e a mim e meus outros irmãos restava-nos lutar pela vida e nada mais. Vim cedo para Coimbra estudar, para o Colégio dos Militares, onde um irmão meu já granjeara fama e um alto posto. Doutorei-me com 19 anos. Não descansei enquanto não o suplantei e tendo chegado a Cónego da Sé de Lisboa o Marquês notou em mim e estendeu-me o seu benévolo manto protector. Tornei-me seu apaziguado! Quando o Ministro declarou o Bispo-Conde D. Miguel da Anunciação morto e o fechou nas masmorras da Junqueira, não pude recusar o convite de ser Bispo de Coimbra, com todos os títulos inerentes ao cargo. Como podia eu recusar tanta honra?... Como podia eu recusar ser parte integrante da Reforma universitária ?... E lá abracei a cátedra episcopal dando-me a mesma Igreja o epíteto de “episcopus in partibus infidelium”. Disse a tudo que sim; bastava que o Senhor Marquês estivesse de acordo. Fui Reitor da universidade de 1772 a 1779. Era o homem certo no local certo! Depois da morte do Senhor D. José I mantive-me nos bastidores do poder e, em 1799, voltei a ser Reitor da universidade. Fui duas vezes teu Reitor, Domingos Vandelli! Fui eu que, em 1775, te concedi as primeiras verbas para comprares umas leiras de terra pegadas á cerca do convento de S. José dos Marianos e começares o Jardim Botânico. Depois, concedi mais verbas a Avelar Brotero para comprar mais terras aos beneditinos. E a obra fez-se! O Jardim Botânico devia chamar-
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se Jardim D. Francisco de Lemos, mas todos foram ingratos para mim. Também foi muito do meu agrado que tenhas mandado expedições ao Brasil e sei que foram as nossas conversas que te motivaram para tal. Eu nunca esqueci aqueles bens que meu pai era Senhor! Ter sabido haver tanta terra no Brasil e ficar sem nenhuma foi coisa que nunca suportei. Mas já tudo passou. Quero dar-Vos é a notícia que não sei se sabeis: resisti ás invasões dos franceses e ao despotismo dos ingleses protestantes. Assisti ao regresso da Família Real do Brasil e soube da independência do meu país. O Senhor D. João VI morreu em 1826 e ainda vivi os dois anos de Regência da Senhora D. Isabel Maria. Morri em 1829 reinando já o Senhor D. Miguel I, aclamado pelo povo português em Côrtes. Não sei se Deus me concedeu tantos anos para assistir a tanta coisa, se para expiar as minhas faltas. Foi uma maior vida que a tua que eu vivi. Lá entreguei a alma ao Criador, como é regra do bom mortal. Soube que te recordam e não posso deixar passar desapercebida a ocasião para Vos dizer estas palavras. Fostes sempre um bom elemento da universidade e por tudo mereceis que eu rogue a Deus pela Vossa alma e pela a de Vossa Família. Que Deus Vos guarde e bendiga. Vosso em Cristo
D. Francisco de Lemos Pereira Coutinho
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Col. Secção de Antroplogia (MHN) FCTUC.
maria arminda miranda maria do rosário martins manuel laranjeira r. de areia
porque antes de se saber o uso e préstimo das coisas é necessário conhecê-las
terá o lente grande cuidado e atenção em formar os seus discípulos
Em Portugal, a corrente de ideias iluministas vigente nos finais do século XVIII fomentava a criação de uma nova mentalidade, em parte traduzida pela Reforma da Universidade de Coimbra de 17721. Estipulavam os Novos Estatutos que o Professor da cadeira de História Natural Principiará as Lições, dando aos seus Discípulos huma idéa da Natureza e constituição do Mundo em geral, e do Globo terrestre em particular. E ainda que a Historia Natural comprehende todo o Universo; limitando-se com tudo aos objectos mais vizinhos ao Homem, e mais necessários ao uso da vida; dividirá as suas Lições em três Partes, segundo a divisão dos três Reinos da Natureza, que são o Animal, o Vegetal, e o Mineral (Estatutos, 1972: 240). Nesta conjuntura se acham os primeiros vínculos de Vandelli à Universidade, chamado por Pombal a participar na criação da Faculdade de Filosofia como lente de duas das seis disciplinas principais, Química e História Natural, cabendo-lhe, por inerência deste cargo, a organização e a direcção do Gabinete de História Natural, organismo indispensável para a investigação e o ensino das Ciências Naturais, a que a Reforma concedia particular importância, na qualidade de instrumento de progresso técnico e económico2. Sob a mesma óptica se empenhou Vandelli, em parceria com o físico italiano J. A. Dalla Bella e o Tenente-Coronel Elsden, na planificação e estabelecimento do Jardim Botânico perspectivado ao serviço das Faculdades de Filosofia e de Medicina3. Desenhavam-se as regras e princípios remodeladores dos estudos superiores em Portugal, enquanto se promovia um novo conceito de ciência: pragmático, associado ao uso prático e racional do saber, conducente ao melhoramento da sociedade e do Estado. Neste tempo de profundas transformações teve início o percurso académico de Alexandre Rodrigues Ferreira, matriculado a 1 de Outubro de 1770 em
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Instituta4, inscrito a 20 de Outubro de 1773 na Faculdade de Leis, ingressando, definitivamente, a 26 de Novembro de 1774 na Faculdade de Filosofia onde obteve o grau de doutor das mãos de Domenico Vandelli a 10 de Janeiro de 1779 (Areia et al., 2005: 9). Para o Museu Antropológico Vandelli representa o ponto de partida, tanto ao nível da génese do Museu de História Natural, quanto à soma das responsabilidades científica e metodológica subjacentes às expedições efectuadas pelos seus discípulos. Primeiro as preparatórias, em Portugal, a que se seguiram as grandes viagens em territórios coloniais: Joaquim José da Silva em Angola (1783-1808), Manuel Galvão da Silva em Moçambique (1783-1793), João da Silva Feijó em Cabo Verde (1783-1797?) e Alexandre Rodrigues Ferreira ao Brasil (1783-1792). antes de saber
O acompanhamento das expedições fazia-se à distância através de instruções características de uma perspectiva omnipresente da ciência, entendidas como instrumentos de controlo essenciais para a produção do conhecimento: determinavam o que levar na bagagem; forneciam indicações básicas que norteavam a maneira de produzir as observações etnográficas e elaborar Memórias, Participações e Relações; incluíam orientações minuciosas quanto à forma de desenhar com objectividade os modelos humanos e os exemplares dos três reinos da natureza, até então desconhecidos; quais os produtos naturais e industriais a serem recolhidos e como deviam ser preparados; os locais a serem percorridos. Em suma, abordavam todo o instrumental teórico e prático das viagens. No caso da Viagem Philosophica à Amazónia é inequívoco tratar-se de um empreendimento amplamente estruturado desde 1778 que previa, inicialmente, o esforço conjugado de naturalistas e matemáticos tecnicamente apetrechados, planeado até ao limite para a colónia brasileira tornada primordial território de pesquisa e auspiciosa fonte de desejadas riquezas (Areia et al., 2005: 9). Ferreira partiu com orientações expressas de Vandelli (registo do mapeamento natural e cultural) e de Martinho de Mello e Castro (Lima, 1953: 109-111) acompanhado pelos riscadores José Joaquim Freire e Joaquim José Codina e pelo jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo5. As viagens científicas do século XVIII, ao redefinirem a visão europeia do mundo, configuraram uma era de descoberta dos interiores visando metas de afirmação de posse territorial e controlo de longínquos recursos naturais. Ferreira actuou no cumprimento de missões geoestratégicas, burocráticas, economicistas mas,
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também, numa perspectiva que registava a descrição exacta das espécies em nome de uma visão centralizadora da ciência. Rodrigues Ferreira seria o sucessor de Frei Cristóvão de Lisboa (1624-1632), missionário e pioneiro da História Natural do Brasil, embora este com maiores limitações de tempo, preparação, estado de conhecimento, âmbito geográfico e sem a qualidade dos riscadores de Ferreira. Os desenhos de Frei Cristóvão reconhecem inúmeras espécies contribuindo para o progresso de conhecimentos da flora e fauna brasileira (Antunes, 2007: 40). Alexandre Rodrigues Ferreira representa para o Museu Antropológico um ponto de chegada traduzida no ingresso de cerca de 350 artefactos, reduzida representação do gigantesco labor e imensa recolha empreendida no decurso da Viagem iniciada a 31 de Agosto de 1783 e concluída em Janeiro de 1792, desenrolando-se num assombroso périplo de mais de 39.000 mil quilómetros (Lima, 1953: 15) que o levaria a percorrer as Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (Areia et al., 2005: 13). Mercê da moda do coleccionismo que atravessava a letrada Europa setecentista, Portugal ocupou um lugar privilegiado tornando-se um repositório de colheitas provenientes das colónias, destinadas a avolumar os espólios dos Gabinetes e Jardins Botânicos. E, consequentemente, o conhecimento desta elite culta oscilou entre o saber científico das universidades, das academias, dos museus, das sociedades de sábios que se fundaram na Europa, não se podendo estabelecer uma separação estanque entre «conhecimento científico» e «deslumbramento pelo exótico» (Domingues, 1992 b: 184). A preocupação recaía, sobretudo, na intenção de uma recolha profícua dirigida à metrópole, incorporando no ocidente o conhecimento científico adquirido. Os riscadores produziram um vasto material iconográfico, estampas que representavam tanto o ambiente geográfico, animais, plantas, como exemplares da cultura material. Porém, a representação do índio, enquanto ser humano, não ficou para além de escassos apontamentos, retratados com breves descrições textuais referentes às comunidades identitárias a que pertenciam. A este propósito, Ângela Domingues (1992 b: 186-192) aborda o Conceito utilitário do Índio no Portugal Setecentista: segundo o legislador visava-se impor aos Índios princípios europeus que entravam em completa contradição com a natureza e a cultura ameríndia; a visão do estratega encarava o índio como meio e objecto, meio como elemento que tornou possível as viagens e objecto, favorecendo o conhecimento de novas etnias e costumes; segundo a visão do viajante, patente nas memórias ou relatos de viagem, o forasteiro, o descobridor, o intérprete e o interpretado que observava o comportamento
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das sociedades indígenas segundo a visão e formação do observador/relator. Culturas bizarras para uns, culturas cientificamente identificadas por outros, assim eram os índios avaliados e distinguidos etnicamente consoante a sua aparência, vestuário, atavios, adereços, armas, tatuagens ou outras alterações de carácter intencional. Uns, vistos por outras culturas, são reconhecidos pelas suas capacidades técnicas e estado civilizacional (caso de relatos efectuados por Alexandre R. Ferreira em várias Memórias); outros, são analisados pela falta de aptidões, relacionamento com o meio e com as diversas etnias que os rodeavam. No Século das Luzes as variadas formas de descrever a História Natural não se interessavam propriamente pelo indivíduo excepcional, mas pelo exemplar, pela espécie (Raminelli, 2001: 5). Catalogava-se por semelhanças e dissemelhanças de caracteres, agrupando-se os seres por categorias sistemáticas ou grupos taxionómicos – tipo, classe, ordem, família, género, espécie. É certo e justo acentuar o esforço, o pormenor e o rigor que Rodrigues Ferreira dedicou às inúmeras Memórias que redigiu, possibilitando aos futuros investigadores de gabinete perceber o funcionamento e o enquadramento de alguns dos artefactos recolhidos. Por exemplo, entre muitas narrativas, na Memória sobre A louça que fazem as índias do Estado [Barcelos], descreve minuciosamente todo o processo de fabrico artesanal, o barro mais limpo de areia é o que elas mais preferem: sem rodas, nem máquinas empreendem à mão a tal fábrica de panelas, pratos, etc. (Fig.1) (Soares e Ferrão, 2005: 75). T. Hartmann (1991: 128) ao referir as características formais e ornamentais deste tipo de artefactos aponta as formas estranhas ao estilo indígena realçando que na época já existia um consolidado comércio que tinha como propósito final os requisitos estéticos do europeu colonizador. Na Memória sobre os instrumentos, de que usa o gentio para tomar o tabaco “paricá” (Fig.2), Ferreira alude ao modo como todo o aparelho funciona para tomar o narcótico “paricá”, à decoração e ao cerimonial de flagelação que envolve o ritual (Soares e Ferrão, 2005: 78-79).
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As relações entre colonizadores e índios também lhe mereceram diversas abordagens do ponto de vista geopolítico, privilegiando nos seus escritos algumas comunidades indígenas como os Cambebas, Jurupixunas, Parintintins, Maués, Mura, entre outros, quer por questões territoriais, quer pelas actividades de produção ou mesmo pelo tempo de permanência e interesse em determinados povoados. Os espécimes que pudessem ser transportados eram embalados e acondicionados em “caixões” e remetidos para o Real Museu da Ajuda; outros eram documentados em desenhos e aguarelas pela mão dos riscadores no decurso das viagens ou finalizados, posteriormente, na Casa do Risco de Lisboa. É notório o interesse manifestado pela representação da fauna e da flora, sendo este o reino mais documentado, provavelmente por orientações de Vandelli, o qual tinha fundado e trabalhado no Jardim Botânico do Palácio da Ajuda (Domingues, 1992 c: 80). Na Relação dos produtos naturais e industriaes que deste Real Museu se remetterão para a Universidade de Coimbra em 1806 (Ferreira, 1806)6 constam vários capítulos como o das Farças e mascaras para os Bayles merecendo este especial atenção, já que se refere a um dos mais notáveis da recolha. No Museu Antropológico existem treze dessas máscaras (Fig.3, 3a), embora a Relação não especifique o quantitativo transferido. Somos levados a crer, pelo breve apontamento que se lhes refere, que este conjunto terá vindo para Coimbra antes de 1806: Foram as que ja se remetterão, feitas de entrecascas das Arvores; as quaes lhes servem de papellão, para o pintarem, e fazerem delle as Figuras de varios Animáes (Areia et al., 2005: 17, 47). Outro capítulo é dedicado às Figuras de Ornato e devertimento (…) de Resina elástica pelos Indios do Pará, duas: h~ua de Anta; e outra de Pôrco bravo. Este tipo de artesanato confeccionado em resina (Hevea brasiliensis), donde é extraída a borracha natural, foi preservado ao longo dos tempos, facto que possibilitou ao Museu Antropológico, aquando da realização da exposição Memória da Amazónia: Expressão de Identidade e Afirmação Étnica (Manaus, 1997) adquirir um conjunto de figuras do mesmo material, representativas da fauna brasileira o que serviu de pretexto para repensar a evolução de técnicas, modelos,
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decorações e fins a que se destinam (Fig.4, 5). Memórias, Participações e Relações detalham as observações e registos escritos do acervo científico e cultural colectado que, a par do legado iconográfico, constituem o mais sólido suporte orientador da obra imensa de Alexandre Rodrigues Ferreira. Apesar das rigorosas instruções do Reino a que Ferreira esteve sujeito, tal como outros naturalistas da época, vinculadoras do espírito das expedições aos interesses coloniais, o facto é que esse notável acervo permite, hoje, repensar diversas vertentes sociais, culturais, rituais e económicas ao nível das alterações ou permanências operadas no seio das sociedades indígenas da Amazónia. Os diálogos, a moda pelo fascínio dos objectos centrados nas “curiosidades”, o raro e o exótico patentes nas colecções dos Museus de História Natural de há dois séculos atrás não podem, nem devem, ser analisados à luz do discurso científico actual. Ao fechar a primeira carta enviada para o reino (27.4.1783), Ferreira apressadamente comunica o envio de uma cabeça humana de que nos Gabinetes da Europa não há exemplo (Areia et al., 2005: 13). Apesar de na obra publicada por Ferreira (1971), citada por Hartmann (1991), os Munduruku da área Tapajoz-Madeira merecerem pouco destaque, foi conseguida uma recolha etnográfica significativa e representativa em artefactos, nomeadamente no tocante a ornamentos de plumas que os celebrizaram. Toucados, coifas e diademas fazem, hoje, parte do espólio do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra. Sabe-se, também, que a mesma embarcação que levara a equipa de Portugal para o Brasil, regressara a Lisboa com uma cabeça do Tapuya7 para ser oferecida ao Real Gabinete, conforme atesta a carta supracitada. Desta cabeça troféu não se conhecem mais informações nem qual o seu destino (Sousa e Martins, 2003/2004: 159). Com semelhante discurso sobre a recolha de «curiosidades» enviadas para os Gabinetes da Europa, foi doada por José Coelho da Gama e Abreu, ao Museu, em 1855, um interessante conjunto de artefactos dos quais destacamos uma das três túnicas de entrecasca (Fig.6) semelhantes à recolhida por Alexandre Rodrigues Ferreira e uma cabeça mumificada (Fig.7), provavelmente “semelhante e incógnita” à remetida por Ferreira, fazendo-se acompanhar de um documento
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manuscrito, existente no acervo documental do Museu, sem indicação de autor. Desconhece-se a razão de tal oferta mas, sabemos que J. da Gama e Abreu, também conhecido como o Barão de Marajó, nasceu no Pará em 1832, filho de um oficial de marinha portuguesa tendo sido, também, bacharel em Filosofia pela Universidade de Coimbra entre 1848 e 1853 (Sousa e Martins, 2003/2004: 157).
o uso e préstimo das coisas
Enquanto homem de ciência, Ferreira contribuiu para a construção do conhecimento. O seu legado museográfico, iconográfico e documental tem promovido diversas iniciativas com diferentes visões e abordagens críticas perpetuando, sem esgotar, sucessivas plataformas de investigação. Muitos foram os estudos pluridisciplinares que se debruçaram sobre a obra de Ferreira: França, 1922; Lima, 1953; Simon, 1983; Areia et al., 1991; Hartmann, 1991; Domingues a, b e c, 1992; Matos, 1993, e tantos outros, mas muito resta por estudar sobre a obra deste cientista em termos de botânica, medicina, zoologia, dos grupos indígenas que há muito desapareceram ou modificaram os seus costumes por influência da “civilização”, assim como descrições das suas práticas agrícolas, estatísticas sobre escravidão, o papel da Igreja em regiões remotas8 e a consciência antecipada da necessidade do desenvolvimento planeado da Amazónia (Simon, 1992: 57). Os objectos transcendem a sua forma física ao mostrar os símbolos culturais inerentes a vários grupos, ao estádio de desenvolvimento tecnológico, conceitos ou funções rituais e de comunicação de ideias. Ilustram, também, dinâmicas de múltiplas interpretações estéticas, funcionais ou socioculturais enquanto agentes de determinadas comunidades. Cumpriram a sua função enquanto artefactos integrados num circuito de actividades diversas, hoje conservados segundo os vários critérios museais. Os valores de uso trocaram-se por outros
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valores, por outros significados e interpretações construídas ao longo da história e das histórias que eles contam. A propósito das Colecções Científicas e Predação Cultural relativa à política generalizada de recolha de colecções para fins científicos no séc. XVIII, Areia (2001:195) diz-nos que «o reconhecimento prático da diversidade cultural implica um olhar novo sobre essas colecções que permitirá a sua reaproximação aos povos e locais que as produziram. À semelhança dos movimentos em defesa da biodiversidade também a defesa da diversidade cultural ganha adeptos em torno de patrimónios culturais esquecidos e do conceito de propriedade cultural» e acrescenta que as colecções científicas (mais do que depósitos culturais em museus) deveriam contribuir para o conhecimento dos povos que as produziram, nomeadamente quando esses povos integram grupos que lutam pela sua afirmação ou simplesmente pela sobrevivência da sua cultura como é o caso de muitas nações indígenas no Brasil (Areia, 2001: 205). é necessário conhecê-las
O Museu Antropológico ao realizar, em 1991, a exposição Memória da Amazónia. Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem Philosophica pelas capitanias do GrãoPará. Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá, 1783-1792 9 reuniu, pela primeira vez após duzentos anos, grande parte do espólio conservado no país10. Teve e continua a ter o privilégio de participar na sua divulgação através de saberes multidisciplinares, contribuindo para a transversalidade e o confronto de olhares perspectivados por análises críticas, expositivas e interpretativas, em tempos e espaços diferentes. A dificuldade de, no presente, se entenderem as grandezas do passado passa por acrescentar algo ao espólio recolhido por Rodrigues Ferreira. A par dos artefactos produzidos no séc. XVIII, as colecções do Museu Antropológico foram valorizadas com a aquisição de materiais de concepção recente (Fig.8, 9), aquando da exposição Memória da Amazónia realizada em Manaus em 1997 (Areia et al., 2005), produções oriundas das mesmas áreas culturais da Amazónia percorrida por Ferreira. Revelam um conhecimento empírico minucioso e complexo do meio ambiente, potenciado por um não menos complexo pensamento filosófico específico das sociedades
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em questão (Dias, 1994: 45). Ao partilhar o conceito de que a etnografia dos índios da Amazónia é notável porque está viva, destacamos as semelhanças entre muitos dos artefactos produzidos por sociedades de caçadores, pescadores e recolectoras que vivem e se organizam de igual forma. Por outro lado, existe uma notável variedade, mesmo nos objectos mais comuns como arcos, flechas, redes para dormir, ornamentos de cabeça, cestos, utensílios de cozinha e cerâmicas marcadamente distintos entre os vários grupos étnicos11. É, no dizer de McEwan (2001: 13), o resultado da criatividade e ingenuidade que contribui para a beleza e fascínio da “Amazónia Desconhecida”. A contemporaneidade e representatividade destes artefactos, descendentes dos recolhidos por Ferreira, reforçam a investigação antropológica, são exemplos de continuidades e descontinuidades entre quase cinco séculos de interacções indígenas e europeias. Os artefactos adquiridos em Manaus revelam aspectos da vida quotidiana e ritual, assim como um vasto reportório extraído da sabedoria tradicional. Matérias-primas, estruturas, aspectos estéticos ou simbólicos repetem-se na singularidade ou complexidade das formas e técnicas dos artefactos. Exemplos como as redes obtidas através da torção de cordas preparadas em longas tiras de várias espécies vegetais, utilizadas para descansar, dormir ou brincar perpetuam os sonhos dos seus utilizadores através dos séculos. Os tipiti, raladores e peneiras para processamento, redução e preparação da mandioca brava, raízes, tubérculos ou sementes constantes da dieta básica dos índios, são modelos expressivos de uma produção de continuidade de técnicas e formas. Será que as viagens científicas actuais encontram nas viagens filosóficas, por exemplo na de Alexandre Rodrigues Ferreira, a sua antecessora? A. L. Janeira (1999: 111-112) perspectiva esta visão analisando a distância que separa naturalistas e biólogos: «O naturalista constrói a sua razão de ser no meio da intimidade cósmica recebendo a Natureza pelo exterior e na íntegra, sem estar preocupado pelo dentro e não sabendo o que significa parti-la; interessam-lhe diversas formas e conteúdos, independentemente de pertencerem ao homem ou ao animal, à terra ou à cultura; olha, regista, nomeia, desenha, conta, selecciona e faz pacotes. Já durante a viagem e depois do regresso mantém preocupações de coleccionador. Acrescidas, agora, de preocupações museológicas. Desde a origem, move-se em contextos dotados de uma mundividência sincrética ou sintética e de uma apetência globalizante, quanto ao saber. Tudo o que pertence à realidade envolvente nunca lhe é estranho: do riacho ao animal, da planta à casa, da máscara à cerimónia religiosa. Sente-os e abeira-se deles, na medida
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mesma dos gestos de aproximação. Gestos de quem procura o desvelamento de espantos e mistérios, acreditando num sentido de totalidade, mais importante do que todas as partes juntas. Assim, sentimo-lo passar da cosmologia espontânea à botânica empírica e à antropologia pré-científica… O biólogo, esse, viaja pelo interior da vida: aproxima-se dela apetrechado por métodos (comparativo e experimental, nomeadamente) técnicas e aparelhos, por vezes sofisticados; aposta, cada vez mais, em profundidade e latitude (do organismo ao tecido, do tecido à célula, da célula à molécula) no contexto de um desmultiplicar sucessivo de disciplinas; trabalha no laboratório e gabinete, entre livros e revistas». A cultura material associada a outras problemáticas do conhecimento encontra inúmeros itens de reflexão nos museus, nomeadamente o da importância dos artefactos constituídos, de um ponto de vista identitário, em instrumentos de afirmação, diferenciação ou preservação. As colecções dos museus constroem-se sobre a sedimentação da recolha das peças reflectindo as ideias, as sensibilidades e o gosto dos colectores. A escolha de objectos de outras culturas balança entre o conhecido e o desconhecido, o quotidiano e o singular. Artefactos que hoje são apreciados como objectos de arte pertenceram outrora à cultura material de determinados grupos e etnias. Aquilo que nos parece hoje de menor interesse questiona a relatividade dos olhares entre épocas distantes e os nossos dias (Le Fur, 2006: 233). As ambições científicas, as ideologias religiosas, as circunstâncias ou o gosto determinaram a escolha e a colecta dos objectos. Aparentemente estranhos ou inclassificáveis, a visão é alterada de acordo com as perspectivas em que são observados (Kaeppler, 2006: 130). Neste sentido, consideramos ser verdadeiramente essencial a compreensão da contemporaneidade do legado de Alexandre Rodrigues Ferreira. Em tempo de globalização, o estudo, preservação e divulgação de todo o património mundial12, antigo ou contemporâneo, material ou imaterial, só poderá ser valorizado se for preservado e inventariado. Este é o primeiro procedimento, incontornável, e aquele que permitirá no futuro a partilha dos muitos saberes. Em síntese, o que dizer sobre os laços que uniram Domenico Vandelli a Alexandre Rodrigues Ferreira que não tenha sido já perscrutado em análises documentais, aventurado em interpretações repassadas de rasgados encómios ou redutoras críticas? A uma distância confortavelmente propícia à ponderação de significados, os conceitos traduzidos na procura do conhecimento sobre a natureza das coisas, de rerum natura, constitui, porventura, a feição dominante da vida e obra de Domenico Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira: porque
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antes de se saber o uso, e préstimo das cousas, he necessário conhecellas13. De alguma forma, em jeito de tributo, damos corpo às intenções de Alexandre Rodrigues Ferreira quando, em 1792, escrevia, Porem nem assim se acabarão as minhas viagens (Areia et al., 2005: 49)
A Reforma da Universidade, em 1772, foi servida por um notável documento orientado pela acção de Frei Manuel de Cenáculo, Ribeiro Sanches, o Reitor D. Francisco de Lemos mas, sobretudo, por Luís António Verney através do seu Verdadeiro Método de Estudar (Correia, 1954: 6). O teor dos Estatutos da Universidade de Coimbra que em Carta de Roboração assinada por D. José em 28 de Agosto desse mesmo ano, estabelece a nova criação da Universidade de Coimbra (Estatutos, 1972: 5-11) ultrapassou a barreira do tempo sobrevivendo ao declínio da era pombalina, ao período conturbado da invasão bonapartista e deslocação da Corte, bem como ao ciclo das lutas liberais, mantendo-se nas suas premissas substanciais até às reformas do Ensino Superior introduzidas durante a 1ª República. 2 Sendo manifesto, que nenhuma cousa póde contribuir mais para o adiantamento da Historia Natural do que a vista contínua dos objecto…devendo o Gabinete da Universidade ser o Thesouro público da História Natural para Instrução da Mocidade (Estatutos, 1972: 264-265). 3 Ainda que no Gabinete de Historia Natural se incluem as Producções do Reino Vegetal; como porém não podem ver-se nelle as Plantas, senão nos seus Cadáveres, seccos, macerados, e embalsamados; será necessário para complemento da mesma Historia o Estabelecimento de hum Jardim Botânico, no qual se mostrem as Plantas vivas (Estatutos, 1972: 266). 4 Instituta era a designação da cadeira do 1º ano jurídico antes da Reforma Pombalina (Lima, 1954: 78). 5 Para além da colaboração dos desenhadores e do jardineiro-botânico, Ferreira contou nas paragens pelo Pará com a ajuda de dois índios, Cipriano de Sousa e José da Silva, sendo estes recompensados com a patente de alferes das povoações de que eram originários (Domingues, 1992 a: 91). Na Memória datada de 17 de Setembro de 1787, Ferreira afirma que a Prensa feita de fasquias de taquara e fio para deformar cabeças de jovens Omagua foi por si solicitada ao índio Dionísio da Cruz, feita na sua presença para melhor compreender o mecanismo (Abreu, 2000: 85). 6 Afortunadamente, el archivo documental del Museo Bocage no fue consumido totalmente por las llamas (18.03.1978) y en esta forma se salvaran las preciosas copias (Areia e Miranda, 1992: 256). 7 Rodrigues Ferreira recorrentemente designava por “Tapuya” todos os índios da Amazónia, referindo-se aos mesmos de uma forma abrangente e generalista, com base nas características anatómicas mais relevantes (Raminelli, 2001). 8 Sublinhe-se que em Portugal, quer no Oriente quer no Brasil, a expansão territorial e a missão evangelizadora estiveram sempre a par, misturando-se sempre Estado e Igreja (Pinto, 1992: 66). 9 Em 1982 a investigadora T. Hartmann, na sequência dos estudos que vinha a desenvolver, publica o artigo Artefactos indígenas brasileiros em Portugal. Em 1985, aquando da comemoração da criação da cadeira de Antropologia em Coimbra foi publicado um artigo fazendo referência ao conjunto de treze máscaras brasileiras recolhidas por A. R. Ferreira no séc. XVIII (Martins e Miranda, 1985: 195-205). No mesmo ano, H. Gouveia ao analisar O Museu da Universidade de Coimbra e as Viagens Científicas (1985: 489) refere o acordo entre o Real Museu da Ajuda e o Museu de História Natural de Coimbra que determina a transferência, para esta instituição, de parte do espólio recolhido por Alexandre Rodrigues Ferreira. 10 As colecções de Alexandre Rodrigues Ferreira conheceram vários destinos, Museu Bocage, Museu de História Natural de Paris, Madrid e Brasil. «When the Court moved to Brazil (1808) Dom João, the prince regent, took important collections with him. When he became king he ordered that items should be sent to the museum in Rio de Janeiro, which he had founded» (Areia e Miranda, 1995: 69). 11 Existe o perigo das sociedades tribais desaparecerem na tendência para uma global uniformidade. 1
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Mas muitos grupos não o desejam. Continuam apegados à sua única herança cultural. Desta forma continuam a fazer os belíssimos objectos visíveis para uso quotidiano e não apenas para a exibição em museus (McEwan et al., 2001). 12 Em 2007 o ICOM elegeu para o dia Internacional dos Museus o tema Museus e Património Universal, na sequência de um plano estratégico proposto para o período de 2008-2010, destinado a promover a diversidade cultural em resposta à questão do papel essencial que esta desempenha no desenvolvimento social e económico: um mundo onde a importância do património natural e cultural seja universalmente reconhecido (Nouvelles, 2007: 6). 13 Estatutos 1972, Liv. III: 240.
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carta do abade correia da serra para vandelli
Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Domingos Vandelli: Após tantas cartas que trocámos, soube que andam a falar muito de Vossa Senhoria lá por baixo. Graças a Deus Nosso Senhor que houve alguém que Lhe reconheceu os méritos e presta-Lhe a devida reverência. Minha graça era Jozé Francisco e nasci em Serpa, a 6 de Junho de 1750, filho de Luiz Dias Corrêa, cirurgião da vila, e de D. Francisca Luíza Serra. Ganhava meu Pai 30.000 reis por ano e vivemos sempre remediados graças ao dote de minha Mãe. Infelizmente a sua origem era judia e tal nos trouxe muitos dissabores, tendo meu Pai que ir á Inquisição de Évora várias vezes e a sair do país em 1756. Tinha 6 anos quando chegámos a Nápoles, no Reino das DuasSicílias, tendo ali feito a minha instrução primária e os preparatórios, tomando a ordem de presbítero em 1775 e rezando a minha primeira missa na Basílica de S. Pedro de Roma. Pela universidade de Roma recebi o grau de Doutor no ano de 1777. Porém, nunca descorei o estudo e como Vossa Senhoria sabe falava fluentemente o grego e o latim, bem como francês, inglês, castelhano, italiano, alemão e árabe. Só regressei a Portugal a rogo de meu Pai, moribundo, e cheguei cá em 1777. Desde 1771 que Ele regressou, mas mal aportei, em Lagos, logo me preveniram que o ataúde de meu Progenitor já tinha descido á terra. Resolvi dirigir-me a Lisboa, colhendo os benefícios do Senhor Duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança, que já tanto havia ajudado meu Pai e me havia conhecido na Itália. Como este nobre Senhor me incumbiu de redigir os estatutos da Academia Real das Ciências, eu fi-los e esta foi criada por despacho régio de 24 de Dezembro de 1779. Mas o nosso grande protector, o Senhor Marquês de Pombal, faleceu e tudo se voltou contra nós, seus antigos validos. Haviam-me prometido o cargo de secretário da Academia, mas acabei como vice-secretário e como secretário
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o Senhor Visconde de Barbacena. Ninguém me perdoou ter dado guarida ao nosso colega francês Pedro Broussonet, chegado de França com a acusação de ser girondino. Foi um rol imenso de falsidades e calúnias que me fizeram, enquanto Vossa Senhoria estava em Coimbra fundando o Jardim Botânico e tantas outras Reformas na universidade. Parti para Londres em 1795 e por lá me mantive até 1802, como sabe. Em Inglaterra publiquei muitos trabalhos sobre Botânica, aqueles de que enviei alguns a Vossa Senhoria e, em 1802 passei a Paris, cansado de colaborar no Jardim Botânico de Londres. Em Paris fiz o mesmo, mas a situação política e a invasão dos franceses ao meu país mexeu comigo. Foi então que passei a Filadélfia, nos Estados Unidos e lá me fixei. Quantas vezes consultei os seus papéis e notas para melhor exercício da boa Botânica!... Quantas vezes me recordei de Vossa Senhoria!... Como era membro da Sociedade Real de Londres, bem como era do Instituto de França, soube sempre o que Lhe acontecia. Soube que o nosso comum Amigo Sir Joseph Banks Lhe valeu quando da Sua prisão nos Açores, contou-me o Senhor Marquês de Saint-Hilaire, primo de Sua Senhora. Em tempo de guerra poucos se importaram com o Saber. Como se diz na Itália: “Brutti tempi, Excellenza!” As saudades da minha Pátria apertaram comigo e regressei em 1821 e fiz o discurso de reentrada na secretaria da Academia das Ciências em 1822. Os meus diabetes travavam comigo uma grande batalha e instalei-me nas Caldas da Rainha, na esperança que as águas me curassem. E aqui devo um agradecimento a Vossa Senhoria: é que li a” Analyse Chimica da agoa das Caldas da Rainha”, publicada em 1795 por Guilherme Withering, sob os auspícios de Vossa Senhoria, que tanto fez nessa matéria. Mas como sabe, fechei os olhos a 11 de Setembro de 1823 e lá terminaram as minhas dores e dissabores. Na minha terra já me ergueram um monumento e têm falado de mim. Por isso me regozijo que agora falem de Si e dos seus trabalhos. Para todos os efeitos, estamos em calma e sossego e longe daquele mundo dos humanos que, tanto quanto sei, continuam em guerras e quezílias todo o tempo. Apenas estas palavras, Illustríssimo Senhor e Colega, do seu velho Colega e Amigo
Abade Corrêa da Serra
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Homo mineralis. Col. Secção de Mineralogia e Geologia (MHN) FCTUC.
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catarina pires
homo mineralis
Memória.
Permanência.
(indelével
Recolha.
Selecção.
presença)
Representação.
Exposição.
Classificação. Inventariação. Catalogação. Conservação. Espaço demarcado. Lugar simbólico. Limite geográfico. Fronteira. Viagem. História. História Natural. Ciência. Técnica. Conhecimento. Travessia. Passado e Futuro. Colecção. Estas poderiam ser [algumas d’] as palavras - chave que abrem as portas para um espaço peculiar: o Museu. É este o lugar acerca do qual iremos aqui falar. Na realidade, trata-se do Gabinete de Domingos Vandelli. De Curiosidades. Gabinete de Curiosidades. O que, no fundo, só vem confundir. Iremos, se me permitem, por camadas. Estratigrafias quase minerais. Domingos Vandelli é um homo mineralis: um fóssil mouseiologicus. A TafoMouseiologia1 [do Gr taphós, enterramento, sepultura + mouseîon, museu + lógos, estudo] é a ciência que estuda a fossilização destas espécies biológicas, ou seja, analisa e interpreta os processos de inclusão dos restos destes seres nos contextos museológicos. A primeira camada estratigráfica da espécie remonta, provavelmente, a uma Antiguidade muito remota, há cerca de vinte e três séculos atrás, nesse longínquo tempo em que Ptolomeu Sóter, rei do Egipto, criou o MOUSEION de Alexandria e o consagrou à divina criatividade do intelecto humano. Estrabão, geógrafo - historiador grego, é quem o afirma e regista. Conta também que este, diríamos, protótipo da casa do Saber, com os seus vastos e luxuriantes edifícios e jardins, bibliotecas e galerias, serviu durante cinco séculos de lugar de estudo das artes e das ciências. Mais que um museu, o grande Mouseion foi um percursor da Universidade. A imbricação entre o Museu e a Universidade parece ter, afinal, um longo passado de raízes comuns. Domingos Vandelli, sabemo-lo bem, foi professor da Universidade de Coimbra e Director do seu Museu de História Natural, do Jardim Botânico e do Laboratório Químico
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da Universidade de Coimbra e do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Foi também membro impulsionador e fundador da Academia das Ciências. Para além de outras menos conhecidas facetas, foi intelectual teórico-prático interessado nas coisas da Natureza. Maçónico, talvez. Transnatural. Naturalia e Artificialia. A vida em contínua exposição. A rota do seu percurso parece bem traçada. A memória da sua passagem afigura-se, portanto, inquestionável. simbioses
N’ As Floras do Novo Mundo2, fica desde logo sintetizado o ambiente intelectual de onde iria germinar o espécime em estudo: A curiosidade questionante investiu na realidade material.... Em suma, tudo mudou, para sempre. Detenhamo-nos neste momento, em que tudo mudou para sempre. Quantas camadas narrativas se acumulam nesta crisálida de tempo? Quantas memórias e recordações se sobrepõem? Quantas portas se abrem e fecham? Quantas léguas marítimas são percorridas? Quantas recolhas são feitas? E por quem? Como é transformada [transportada] a Natureza em coisa singular, tafomouseo-lizável? Em objecto desejável, experimental e, simultaneamente, útil e rentável? E que fazer destes testemunhos? Como acrescentar futuro a esse passado? O método científico tem metodologias rigorosas, circunscritas, vive de paradigmas, dizem. Mas aqui, no Gabinete de Domingos Vandelli, as coordenadas são outras: nada se repete pois re-pensar é incluir temporalidade histórica, o rigor científico não equivale ao único rigor possível, o real são imagens – ficções reais. Olhar, ver e observar não são equivalentes. Espécimes vegetais, animais e minerais, pratos e potes, terrinas e jarras, curiosidades, monstruosidades e anomalias. Testemunhos ambivalentes de um livro sempre aberto3, onde a natureza não está reduzida a um ponto, onde, também por isso, é possível instruir com prazer e facilidade. Pois aqui a memoria vem ajudada pelos olhos, e se conserva atenção pelo prazer da vista. Eis - nos no Gabinete de Curiosidades de Domingos Vandelli. Trata-se, sobretudo, de uma questão de arrumação. Simbiose, num pretéritomais-que-perfeito, entre o Gabinete e o Museu. Dispor por prateleiras ao sabor de um raciocínio que evoluiu a partir da própria necessidade de Existir. Pressupostos ideológicos sintetizados pelo seu autor, em numerosas lucubrações registadas como memórias. Objectivo imutável: fomentar a aprendizagem, a aquisição de conhecimentos, a investigação. Não parar por aí, que especulações
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sem utilidade não fazem um país evoluir. Sair para o campo, para o mato, para a floresta. Saber o que de si é refractado na estranheza de uma natureza até então inviolada. Mudar de cenário: Viajar para além das Luzes: Levar bagagem: Registar: Deposição de camadas. A diferença marca o percurso entre o barco, espaço flutuante, e o Museu, espaço estável, porto de chegada. Espaços irredutíveis onde é possível sentir a erosão da vida, da história. Construir utopias realizáveis em abstractos espaços de acumulação: no jardim, no museu encerrar a totalidade do mundo. Entre o Brasil e África adensa-se o sertão nas memórias desérticas de Moçamedes. A utopia do desconhecido é resgatada na travessia do Atlântico. A viagem é o espaço de representação. Entre Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira, o infinito sonho tropical. Mais tarde pressentido, perseguido por Luiz Wittnich Carrisso. O percurso, materialização conceptual: o objecto trans-figurado em palavras. Trans-mousealizado. Sistemática necessidade de perscrutar o indizível. o gabinete entra no museu
Analisar o processo de cristalização do tempo num Espaço de Tempo infinito, onde não é possível negligenciar essa fatal intersecção, é questionar temporalidades descontínuas, prováveis realidades incompatíveis. Galerias de objectos em confronto que reflectem e resumem o Universo na ordem do exemplar. Na bifurcação, o passeio diletante dos amantes da História Natural. Recuar ao tempo das amizades que evoluem na exigência dos objectivos: não se tratava já, somente, de mera curiosidade mas de autêntica procura de aconselhamento cientifico, o que terá levado D. Pedro José de Noronha, 3º Marquês de Angeja, a contratar Domingos Vandelli para instalar e organizar o seu Gabinete e Jardim Botânico na Junqueira. Dai para a frente, a história é já bem conhecida. A observação controlada e a experiência regrada do naturalista persiste em condensar as vistas largas dos jogos da Natureza no espaço delimitado pelo rigor científico: comparar, seleccionar, descrever, classificar, inventariar sistemática e rigorosamente. E, no final, já em Coimbra (ou entre esta, Lisboa e o resto do Mundo Novo), no universo não circunscrito aos espaços académicos, proporcionar informação metodicamente organizada e pragmaticamente útil. Abrir as portas do Museu para romper o cerco do Conhecimento, arejar o país como quem afirma a necessidade de fazê-lo crescer, económica e ideologicamente falando. Pensamento pós-moderno, diríamos.
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A impossibilidade de poder se ver todas as produções naturais espalhadas em países tão remotos supre o museu; no qual como em um anfiteatro em uma vista de olhos aparece, o que contém o nosso globo…4. Espaço de representação ambígua e ambivalente, onde o homo mineralis, escapando ao fluxo temporal e á dispersão espacial, se transforma em testemunho da pós - modernidade inscrita nos objectos – documentos que evocam a sua passagem e, simultaneamente, interrogam o devir histórico inscrito nas sucessivas re - interpretações e reorganizações dos objectos que definem a simbiose semântica entre o Gabinete de Curiosidades e o Museu Universitário. Lugar por excelência onde convergem tensões e pressões geradas pela evolução vertiginosa de ideais e expectativas. Do ideal do Saber e da necessidade de transmiti-lo ás gerações vindouras. Porque, em última instância, conservaremos exclusivamente aquilo de que gostamos. Mas gostamos apenas daquilo que entendemos. E só entendemos o que nos ensinam5. Ainda que só possamos conhecer verdadeiramente aquilo que criamos.
De Tafonomia, disciplina paleontológica Ana Luísa Janeira & Mário Fortes. FLORAS DO NOVO MUNDO: CURIOSIDADES E RECURSOS. http://www.triplov.com/ana_luisa/floras_novo_mundo/pages/ajuda_cascata.htm 3 Domingos Vandelli, (s/d). Memória sobre a utilidade dos museus de História Natural. Ms. vermelho, Academia das Ciências de Lisboa. 4 Domingos Vandelli, (s/d). Memória sobre a utilidade dos museus de História Natural. Ms. vermelho, Academia das Ciências de Lisboa. 5 Do discurso pronunciado em 1969 em Nova Deli, na Assembleia Geral da União Internacional para a Conservação da Natureza e seus Recursos, por Baba Dium, Coordenador Geral da Conferência de Ministros da África Ocidental e Central e membro do Conselho do Instituto Internacional de Investigação sobre Politicas Alimentares de Washington. 1 2
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Homo mineralis. Col. Secção de Mineralogia e Geologia (MHN) FCTUC.
102 S/ título. 2007. Miguel Branco.
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“Memória sobre a decadência das pescarias de Portugal”
carta do dr. constantino botelho ao dr. vandelli
Ilustre Mestre e Amigo: Como bem sabeis, nasci em Murça, comarca de Moncorvo, em 1754 e era filho de Manoel António Botelho. Matriculei-me no 1º ano de Filosofia em 1772 e fui um dos primeiros frutos da Reforma universitária, tendo sido aluno daquela geração de italianos que frutificou o seu saber em Coimbra. Fui graduado gratuitamente em 6 de Maio de 1781 na universidade e tinha toda a confiança do Doutor Domingos Vandelli. Só assim se compreende que me tenha escolhido para liderar a viagem filosófica ao Douro Litoral, Minho e Trás-os-Montes, de 22 de Setembro a 24 de Novembro de 1789, bem como outra expedição ao sul do Tejo e Algarve, de Setembro a fins de Dezembro de 1790. Em 1791 limitei-me a fazer outra viagem pelas margens ribeirinhas da Beira Litoral. Sei que fui incansável nos relatos que escrevi destas mesmas viagens ou expedições e delas deixei inúmeros relatos em forma de memórias. Mas o que nunca consegui esquecer foi a descoberta que fiz de um novo modo de aplicar ao movimento das máquinas a força do vapor. A memória deste invento foi lida na sessão pública da Academia Real das Ciências a 18 de Janeiro de 1805 e deixei registado o meu repúdio por Monsieur Verzy me ter roubado a ideia, registando-a como dele. Tudo porque recebeu do ministro do Interior de França a verba para fazer as experiências em ponto grande. Desgraçado país este com os inventores! Miseráveis governantes! Sobrevivi-Vos apenas mais uma meia dúzia de anos, estimado Doutor Vandelli. Vosso eterno aluno e muito Grato
Constantino António Botelho de Lacerda Lobo
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a.m.amorim da costa
o apelo da fantasia das «utopias» nas práticas da ciência moderna
introdução
No século XVI, o Humanismo Científico afirmou-se paradoxalmente revoltado e apaixonado pelo mundo Antigo. Por um lado, Paracelso, Copérnico, Kepler, Ticho Brahe e Galileu e uns tantos outros, rejeitaram o mundo da sabedoria de Aristóteles. Paracelso queimou em público os livros deste filósofo da Grécia Antiga que a longa Idade Média glosara vezes sem fim e das mais diversas formas, construindo à sua volta o seu próprio mundo. Na sua revolta anti-aristotélica, afirmava peremptório, junto dos seus inúmeros e apaixonados sequazes, que havia mais sabedoria nos atacadores dos seus sapatos, que em todos os livros do filósofo antigo. O frenesim anti-Aristóteles, arrastava no mesmo enxurro, Galeno, Ptolomeu, Aristarco e tantos outros nomes da medicina, da geometria e da astronomia da Antiguidade e dos muitos discípulos que as haviam cultivado e desenvolvido ao longo da Idade Medieval. Entretanto, a seu lado, toda uma plêiade de talentosos escritores e artistas plásticos bebiam com sofreguidão e até à última gota, os valores dos grandes poemas de Homero e de Virgílio e do esplendor das grandes obras de arte da escultura greco-romana. Da Revolução científica dos séculos XVI –XVII associada ao Humanismo Científico da época resultaria a ciência Moderna, fortemente alicerçada no método apregoado por Francis Bacon e nas inovadoras doutrinas de carismáticas figuras de grandes físicos e matemáticos da craveira de Newton, Descartes, Locke, Fermat, Pascal, Leibniz, e outros muitos, na senda dos acima mencionados, Copérnico, Kepler e Galileu, todos eles apregoando a necessidade duma nova ciência para substituir a escolástica reinante nas grandes Instituições de ensino que tinham por estéril e falha de bons frutos que servissem com eficácia as necessidades de maior bem-estar social. Uma nova ciência servida por uma nova filosofia. As utopias científicas que nessa altura correram mundo são uma das fontes mais preciosas em que melhor podemos beber os grandes princípios desta nova filosofia.
Joan Fontcuberta. Serps. 1986. Col. CAV/Encontros de Fotografia
Feitas de mitos e fantasias, todas elas são metáforas do conhecimento que a nova ciência deveria perseguir como valor inestimável. À cabeça duma lista daquelas que mais famosas se tornaram, deverá ser colocada a Utopia de Thomas More (1478-1535), que pode e deve ser referenciada como a matriz de todas as demais. Nela o autor descreve uma ilha localizada no novo mundo, a América, que Rafael Hitlodeu, um viajante idoso, mas muito sábio, encontrou nas viagens que aí fez, tendo observado e estudado cuidadosamente os seus usos, costumes e governo. Só por si, a localização no Novo Mundo está ligada à ideia da esperança de um novo tempo, de uma nova era para o Homem. Nessa Ilha, toda a sociedade estava organizada e enraizada na base de duas ideias básicas: a não existência da propriedade privada e o alcance dos interesses individuais, entendido como apenas viável, se feito através do preenchimento prévio das necessidades colectivas. Nela, todos os interesses individuais estavam subordinados ao colectivo, como requisito absolutamente indispensável ao alcance da prosperidade e progresso. Nela, o trabalho, assim como a riqueza, estavam distribuídos igualmente por todos; a sua apropriação por apenas alguns seria o maior entrave à consecução da felicidade comum e obstáculo intransponível na consecução de um bom governo. Nela, os cidadãos com mais capacidade de decidir o que é melhor para todos seriam sempre os mais velhos e mais sábios. A todos assistia o direito de escolherem a sua profissão baseados no seu talento e gosto, porém, sempre de acordo com as necessidades da sociedade, posto que os interesses de cada um só poderiam ser alcançados na relação com os interesses de todos. E haveria serviços essenciais, como por exemplo, os da agricultura, que devem ser desempenhados por todos. Nessa Ilha, a educação é oferecida a todos, e cultivada com esmero, fundada e orientada pelo princípio de que as necessidades colectivas têm por base o bem-estar social de que decorre o prazer e a felicidade de viver. De facto, sem o prazer e a felicidade como bens colectivos, a sociedade perde toda a razão da sua existência. É vã e estéril toda a ciência que fique fechada em princípios genéricos e abstractos, não traduzíveis em bens concretos de prazer e felicidade. Cabe aos Sábios o Governo da Ilha porque é pela ciência orientada para a produção do bem-estar de todos e cada um que a sociedade tem razão de existir1. Esta sociedade que só Rafael Hitlodeu teve o privilégio e a dita de encontrar e ver o que lá se passava, não existe em lugar algum; por isso mesmo se chama “Utopia”, nome que etimologicamente, significa “em lugar nenhum”. Nem por isso é menos fascinante e apelativa. Tomasso Campanella (15681639) no seu combate ao Aristotelismo que via reinar à sua volta, deixou-se seduzir por ela e descreveu-a como a Cidade do Sol, em obra publicada em
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1602, registando a narração de um almirante genovês a um grão-mestre que lhe dera hospedagem. Nesta narração, ela é uma cidade formada por sete círculos concêntricos, representação dos sete planetas então conhecidos, com um templo de grandes proporções e beleza, no seu centro; quatro grandes avenidas cortam os círculos, conforme os pontos cardeais, e entre os círculos ficam as casas dos seus habitantes. Governa-a um chefe supremo, um sábio que conhece todas as artes e ciências, a quem cabe a última palavra sobre qualquer assunto. No exercício do seu poder, este sábio é auxiliado por três príncipes: o Poder, que vela pela paz, pela guerra e pela arte militar; a Sabedoria, responsável por tudo o que se refere à ciência, às artes liberais, mecânicas e a seus cultores; e o Amor, que tem como função zelar pela geração, alimentação, vestuário, e todas as actividades afins a estes misteres. Todas as artes e ciências que o chefe supremo conhece bem, estão impressas ao longo das sete muralhas que formam os círculos concêntricos da cidade, para que todos, em especial as crianças, as possam estudar e conhecer, em total interligação dos saberes. O fundamento básico da sociedade em que todos vivem está nas descobertas e avanços científicos e tecnológicos. A ciência busca o conhecimento e a razão das coisas para a correcta manipulação e o domínio adequado da natureza na realização plena dos cidadãos que a praticam2. Ela é a ciência praticada no Reino de Macaria da autoria de Samuel Hartlib (16001662), um reino servido por um excelente Governo, em que os habitantes gozam de grande prosperidade, saúde e felicidade3; e também, numa narração de J. Hall (1574-1656), em 1605, a ciência “praticada em diversas terras do Hemisfério Sul, nomeadamente em Fooliana, onde existiria uma Universidade com uma linguagem especial, a «supermonicall», perceptível por todos, muito simples, onde mestres e alunos se dedicavam às mais espectaculares e inomináveis invenções, jogos, construções, adornos e processos de governação”4. Ela é, igualmente a ciência almejada, apregoada e postulada pela Fama Fraternitatis (1614) dos Rosacrucianos5, pela Idade de Ouro Restaurada (1616) de Bem Jonson ( 1572-1637)6, pela Atlanta Fugiens (1617) de Michael Maier (1568-1622)7, pela Cidade Cristã (1619) de J. Valentim Andreae (1586-1640)8 e pela Nova Atlântida (1626) de Francis Bacon (1561-1626)9. Sem espaço para nos referirmos aqui a cada uma destas obras em particular, limitemo-nos a uma palavra mais desenvolvida sobre esta última, já pelo facto do seu autor ser o grande precursor do empirismo racional da ciência moderna assente na necessidade, possibilidade e legitimidade da investigação experimental cujo método definiu no seu Novum Organum de 162010, já pelo facto de ela nos remeter para o grande Filósofo da Antiguidade, Platão.
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De facto, a Nova Atlântida de F. Bacon reaviva o mito da Atlântida referido por Platão nos seus diálogos com Timeu e Crítias. Supremo cultor duma ciência ao serviço da regeneração da Humanidade, Platão descrevera-a como uma terra grande, avançada em diversos campos como a agricultura, a astronomia, a arquitectura e a fusão dos metais; nela, as montanhas eram ricas em ouro, prata, cobre, estanho e muitos outros metais cujo aproveitamento cabia à ciência descobrir; a terra seria muito fértil e as colheitas abundantes, posto que as planícies tinham um conjunto de canais grandes e pequenos, engenho da ciência que ali se praticava para aproveitar ao máximo as muitas fontes naturais, quentes e frias. Nela o homem gozava de um bem-estar que muito se aproximava do bem-estar dum paraíso na Terra que durou por tanto tempo quanto os Reis e seus súbditos se mantiveram justos e bons. Quando começaram a perder as suas virtudes e se tornaram ávidos de bens e prazeres, os deuses afundaram-na. Reavivando a Atlântida de Platão, a Nova Atlântida de F. Bacon apresenta-nos “um modelo ou descrição de um colégio para a interpretação da natureza e a produção de obras grandes e maravilhosas para o benefício dos homens”. Esse colégio é “A Casa de Salomão”, situada numa terra chamada Bensalem, até então desconhecida na Europa, terra essa que um grupo de viajantes encontrou quando fazia uma viagem do Perú para o Japão. Os habitantes desta terra estavam muito bem informados acerca da Natureza e acerca de todos os aspectos do mundo exterior. A sua preocupação principal era a procura do conhecimento do Céu através do estudo do mundo em seu redor. Este era feito na “Casa de Salomão”, uma Fundação totalmente devotada ao conhecimento das causas e dos movimentos secretos das coisas e o alargamento dos limites do Império Humano à realização de todas as coisas possíveis. Nela existiam os meios necessários para todos os géneros de observações e também cavernas profundas em que os processos de mineração podiam ser imitados e onde se podiam realizar experiências acerca da produção de novos e preciosos metais. Nela estavam em curso estudos profundos sobre a cura de doenças e sobre o prolongamento da vida e o enriquecimento geral da terra; nela existiam torres de grande altura destinadas a experiências sobre refrigeração, bem como lagos artificiais, fundações, poços e parques com todo o género de animais, pássaros e plantas; nela existiam também inúmeras fornalhas, equipamentos, máquinas e instrumentos ópticos para todo o tipo de observações em química, em astronomia e invenções mecânicas. Nela, os eruditos, estavam organizados em grupos nomeados para extrair conclusões e fazer sugestões para estudos complementares, com grupos especialmente encarregados de organizarem
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as descobertas experimentais em novas observações, axiomas e aforismos maiores9. O mundo da ciência que nela encontramos é o mundo que Johan Valentim Andreae descrevera anos antes, na Cidade Cristã, um mundo em que toda a actividade científica se centrava num conjunto de instituições devidamente apetrechadas para bem formar os cidadãos para um mundo novo de bem-estar e felicidade: a Biblioteca, a Imprensa, os Arquivos, os Laboratórios Químicos e Farmacêuticos, o Teatro Anatómico, os Museus de História Natural, os Observatórios e Museus Astronómicos, os Estúdios de Pintura, a Medicina e a Jurisprudência. O viajante que as visitou descreve-as cheio de admiração, como descreve e aponta o conteúdo das Lições dos Mestres que nelas ensinavam. o espírito científico das
«utopias»
em portugal
A nova filosofia cientifica, tão claramente apregoada pelas «utopias» que acabámos de referir, cultivada, na prática, por Francis Bacon, Descartes, Kepler, Galileu e muitos outros dos grandes cultores duma nova física antiaristotélica, mecanicista e heliocêntrica, teve como promotores fervorosos os elementos do chamado “círculo de Hartlib”, cuja figura central foi o já referido Samuel Hartlib, tendo como figuras proeminentes, entre outros, o escocês J.Dury (1596-1680), o húngaro J.A. Coménius (1592- 1670) e o francês P. Ramus (1515-1572); e também, com não menos fervor e influência, a citada Fama Fraternitatis, primeiro manifesto dos Rosacruzes, publicado em 1614 por um círculo de estudantes de Tübingen apelando a um novo conhecimento que substituísse o das universidades. Em vez de se encontrarem nas universidades, os estudiosos verdadeiramente interessados num conhecimento útil para o bem-estar da sociedade deveriam juntar-se à irmandade fundada por um certo Christian RosenKreuz, um peregrino que viajara pelo Próximo Oriente, onde se familiarizara com práticas científicas do tipo das apregoadas por T. Campanella e por Valentim Andreae. No imediato, e ao longo de todo o século XVII, nem “hartlibianos”, nem “rosacrucianos” parecem ter tido influência significativa na prática da ciência em Portugal, toda ela informada e dominada pelo ensino escolástico dos Jesuítas, nos diferentes Colégios que possuíam em várias cidades do País, e também nas Universidades de Coimbra e Évora. Embora, estudos recentes questionem a visão historiográfica segundo a qual o período anterior às reformas pombalinas, iniciadas em 1750 e culminadas com a Reforma da Universidade de Coimbra em 1772, nada regista de verdadeiramente significativo para a adesão de Portugal à nova filosofia científica, o certo é que
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tal filosofia só se tornou significativa com elas. Foi com estas reformas que a História Natural e as Ciências Exactas, a Física e a Química, registaram notável avanço no sentido do preconizado e apregoado pela nova-ciência, com a instituição da Faculdade de Filosofia Natural onde foram criados cursos com novos programas e metodologias científicas integrando, em particular, um Museu de História Natural, um Jardim Botânico e os Laboratórios de Química e de Física. Para a Historia Natural pediam os Estatutos da Universidade reformada que ela, embora compreendendo todo o Universo, se limitasse ao estudo dos objectos mais vizinhos do Homem, e mais necessários ao uso da vida11. Dividindo as suas Lições segundo a divisão dos três Reinos da Natureza, deveria o Lente reduzir o seu cuidado e atenção a dois pontos capitais: primeiro, fazer uma descrição exacta de cada um dos produtos da Natureza; segundo, recolher a substância de todas as observações que sobre eles se têm feito. Para bem conseguir este objectivo, deveria o Professor ter como cuidado primeiro “acostumar os olhos dos seus discípulos com os bens em estudo” para o que se impunha que a Universidade fosse devidamente dotada de uma boa Colecção dos Produtos pertencentes aos três Reinos da mesma Natureza: um bom Gabinete de História Natural para os animais e os minerais, e um bom Jardim Botânico, para as espécies vegetais12. Eram idênticos os objectivos definidos para o ensino e a prática da ciência Física e da ciência Química13 À Física caberia estudar e explicar as verdades àcerca das propriedades gerais dos corpos e explicar a natureza, propriedades e fenómenos particulares dos corpos fluidos (os gases, os líquidos, e, em particular, o Ar, a Água, o Fogo e a Luz), e ainda as propriedades particulares dos Corpos eléctricos e magnéticos, num estudo encaminhado, não por meros caprichos da Fantasia, mas pelos factos seguros de experiências bem discutidas e combinadas, para o que as Lições se deveriam fazer na Casa das Máquinas – O Gabinete de Física Natural – todas as vezes que fosse necessário, em que os discípulos não fossem meros Espectadores, mas trabalhassem as experiências por si mesmos para adquirirem o hábito e a sagacidade que elas requerem14. À Química caberia indagar as Leis e propriedades gerais dos corpos considerados como móveis, graves, resistentes, etc., descobrindo a razão dos factos conhecidos tanto pela observação como pela experiência; e caberia também indagar as propriedades particulares dos mesmos, analisando os seus princípios, examinando os elementos de que se compõem e descobrindo os efeitos e propriedades relativas que resultam da mistura de umas e outros.
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Neste seu objectivo, a teoria nunca poderia ser bem entendida sem a prática. Por isso, ao Professor de Química se prescrevia que deveria mostrar aos seus Discípulos todos os Processos Químicos conhecidos na Arte, tratando da análise e das operações sobre os diferentes produtos dos três reinos da natureza, não se limitando à escolha dos processos relativos ao uso de alguma arte em particular. Era sua obrigação “dar as Lições competentes de Práctica no Laboratório, obrigando os seus Discípulos a trabalhar nas mesmas Experiências, para se formarem no gosto de observar a Natureza; e contribuírem por si mesmos ao adiantamento e progresso desta Sciencia, a qual não se enriquece com Sistemas vãos e especulações ociosas, mas com descobrimentos reais, que não se acham de outro modo, senão observando, e trabalhando”15. Servida por homens verdadeiramente irmanados com o espírito científico que informava os Estatutos da Reforma, a cultura e a prática científicas registaram então um período verdadeiramente áureo da sua história que perdurou por alguns anos. Domingos Vandelli (1770 -1816) foi um desses homens. Expressamente convidado pelo Marquês de Pombal para reger as cadeiras de História Natural e de Química, ele não poupou esforços nas suas muitas tentativas de levar à prática os princípios consagrados pela Reforma. Muito interessado pela História Natural na sequência da actividade principal a que se dedicara na Universidade de Pádua, donde provinha, começou por constituir o Museu de História Natural que os Estatutos consagravam, a partir de um bom Museu que possuía, resultado de longos anos de coleccionador que doou à Universidade de Coimbra, ainda que com algumas contrapartidas. Com Dalla Bella, o Professor da Universidade de Pádua que o Marquês convidou para reger a cadeira de Física, planeou e executou o Jardim Botânico da Universidade, na cerca do Colégio de S. Bento, pronto para receber as primeiras plantas, em 1774. Ele próprio superintendeu directamente as obras de encanamento de água e acompanhou cuidadosamente a cultura das plantas, muitas delas trazidas, por diligências directas suas e oferta da Família Real, do Jardim Botânico da Ajuda, Jardim este de que viria a ser o Director, a partir de 1787, o ano em que deu por concluídas as obras do Jardim Botânico de Coimbra. No ensino teórico da Química não foi particularmente inovador. Lenteproprietário da cadeira até se jubilar em 1791, ele conviveu com as novas doutrinas de Lavoisier, sem a elas aderir, mantendo-se, até finais da sua actividade lectiva, fiel às teorias do Flogisto. Nem o facto de haver dentro da Faculdade grandes insistências no sentido de se abandonar tais teorias o conseguiram demover delas a favor das teorias de Lavoisier. E conviveu bem com os seus colaboradores Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829), que o viria
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a substituir na cadeira aquando da sua jubilação, e Vicente Coelho da Silva Seabra Telles (1764-1804), como Demonstrador de Química no Laboratório, ambos já então confessadamente seguidores entusiastas das novas teorias. Mas foi notável o seu empenho nas práticas químicas orientadas para o desenvolvimento e bem-estar da sociedade; as práticas químicas ao serviço dum desenvolvimento tecnológico cientificamente sustentado. Dirigiu as obras do Laboratório Chimico que os Estatutos exigiam, um edifício traçado segundo uma planta trazida da Corte Viena de Austria, por se ter concluído que a Alemanha era “o paiz em que a referida Arte tinha chegado ao grao de maior perfeição”16. Edifício notável, um dos primeiros em toda a Europa a ser construido expressamente para nele o Professor mostrar aos alunos todos os processos químicos conhecidos, este Laboratório achava-se concluído em 1777, ano em que estava já a ser usado para as Demonstrações e Processos Chimicos. Na convicção profunda de que os “estudos filosóficos da Universidade deveriam ter por fim a indagação das couzas naturaes, não para ficar na ociosa especulação dellas, mas deduzir conhecimentos practicos úteis ao commercio e uso dos homens”17 que de outro modo “ficarião perdidas todas as experiências e descubertas feitas a este respeito em pequenas provas executadas no Laboratório”, nele procedeu Vandelli a várias experiências sobre a arte de fabricar a louça, das quais se deduziu tanta vantagem sobre a louça branca, a de pó de pedra, a porcelana, e cadinhos, que seria para desejar que outras fábricas procurassem para seu aumento o imitar das ditas experiências18. Nele, também sob sua orientação, se procedeu, em 1784, pouco mais de um ano depois das primeiras experiências dos irmãos Montgolfier com balões aerostáticos, em França, ao lançamento de balões a hidrogénio encomendados aos alunos José Alvares Maciel, Vicente Coelho de Seabra, Tomás José de Miranda e Almeida, e Salvador Caetano de Carvalho, envolvendo o estudo do verniz de gutapercha, invenção de Vandelli, usado no fabrico do balão, e o estudo do gás hidrogénio utilizado no seu enchimento19. Foi animado por este princípio que considerava dever ser o princípio orientador de toda a indagação das coisas naturais, que se empenhou a fundo no desenvolvimento de uma grande actividade no domínio da produção cerâmica, tendo começado por propor à Faculdade de Filosofia que adquirisse as instalações onde funcionara a Fábrica de telha vidrada usada na restauração dos edifícios da Universidade para ali se instalar, por conta da mesma Faculdade, uma Fábrica de louça20. Não tendo conseguido que este projecto fosse por diante, montou ele próprio a sua Fábrica de Louça, em Coimbra, no Rocio de Santa
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Clara, actividade que mais tarde estendeu à fundação de outra Fábrica de louça, em Vila Nova de Gaia, junto ao rio, no sítio denominado do Cavaco, que viria a ficar conhecida por Fábrica do Cavaquinho. Este interesse pela indústria cerâmica estava naturalmente associado ao interesse pela exploração e reserva de direitos sobre a exploração de jazidas de argila, caulinos e feldspatos, nas mais variadas zonas do país, a que o próprio se refere numa “Memória sobre algumas produções naturaes deste Reino das quaes se poderia tirar utilidade: «o espato fusível ou Feldspat”» que misturado com argila branca permitia preparar amostras de porcelana bem transparentes, semelhantes às da Saxónia; um feldspato que se acha em abundância em varias partes da Serra da Estrela, e argilas encontradas em Soure, para fazer cadinhos e outros vasos químicos e louça latamente resistente ao fogo21. Com o mesmo interesse, se debruçou sobre vários dos problemas económicos que Portugal enfrentava e se haviam agravado com o declínio da mineração no Brasil, centrada no ouro e nos diamantes. Contra aqueles que consideravam que a actividade mineira era prejudicial para Portugal, Domingos Vandelli avançou com propostas de recuperação apoiadas na ciência que cultivava, aceitando coordenar um projecto para a recuperação. O projecto desenvolveu-se com muitas cartas, avisos, e ordens régias enviadas do reino para várias partes do Brasil, a pedir informações concretas sobre esta ou aquela mina que se havia descoberto. Foi no âmbito deste projecto que D. Vandelli propôs, planeou e dirigiu as viagens filosóficas realizadas nos finais do século XVIII por vários naturalistas ligados à Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, no Reino e nos domínios ultramarinos22, de que ficaram especialmente célebres as viagens científicas de Alexandre Rodrigues Ferreira, à Amazónia brasileira, e a de João da Silva Feijó às ilhas de Cabo Verde e posteriormente à Capitania do Ceará, também no Brasil. Outro sentido não tiveram as dezenas de Memórias que escreveu dedicadas a problemas muito concretos da economia nacional, por exemplo: o sal-gema das ilhas de Cabo-Verde, o carvão de pedra e os paus betuminosos do reino, a turfa, a ferrugem das oliveiras, as amoreiras de Alfeite, as matérias vegetais na manufactura dos chapéus, as carnes, o tabaco, o regimento para a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, etc.23. Toda esta sua actividade de utilização da ciência para o progresso e bem-estar da sociedade traduziuse ainda na sua forte ligação ao projecto da criação da Academia das Ciências de Lisboa, com o Visconde de Barbacena e o abade Correia da Serra, depois de falhada a criação, em Portugal, de uma «Sociedade Económica»24. Talvez mais do que nenhuma outra, é particularmente elucidativa desta
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vertente da sua actividade científica, a sua Memória sobre a Faculdade Filosófica da Universidade de Coimbra25, escrita possivelmente em 1791, o ano da sua jubilação, em que defende a revitalização da Faculdade, dando toda a ênfase à necessidade de cultivar os estudos científicos e técnicos de nível universitário, como instrumento indispensável ao progresso económico. A sua tese é muito clara e taxativa: “Quase todas as nações da Europa se sabem aproveitar destas ciências (a História Natural e a Química), e somente Portugal até agora não tirou alguma utilidade das mesmas. A causa disso será: 1. Não se considerar que estas ciências influam na base donde emana a verdadeira riqueza? 2. Tomarem-se estes estudos como uma simples curiosidade? 3. Supondo-se a verdadeira felicidade e riqueza depender somente de outros estudos? 4. Que nenhuma destas ciências influa na economia política? “Mas já ninguém pensa deste modo, e somente o antigo costume, e a falta que houve de pessoas hábeis nestes estudos fez entregar à inspecção das províncias, as intendências da agricultura, do ouro, dos diamantes, das casas de moeda, das fábricas, dos caminhos, dos rios, dos portos, das pescarias, a pessoas que ordinariamente não têm outra instrução, que a do Direito, às quais os tribunais costumam pedir informações de agricultura, hidrostática, de minas, fábricas, etc, o que redunda muitas vezes, por falta dos necessários conhecimentos, em grave prejuízo da Real Fazenda ou do público. (…) Se Portugal não se aproveitar das ciências filosóficas (nota: as da Faculdade de Filosofia Natural), será sempre mais sujeito às outras nações, e tão dispendiosos estabelecimentos (nota: os da referida Faculdade) de nada mais servirão que de entreter a curiosidade, e de divertir a ociosidade, em ver uma maravilhosa experiência, em saber o nome de uma bonita concha ou de um raro animal, e em admirar as Formosas cores das borboletas e de outros bichinhos. “O ensino público não deverá servir para manter e conservar esta curiosidade pela qual somente se terão gasto somas muito avultadas de dinheiro para divertimento da nação; podendo ao contrário estas curiosidades transmutaremse na base da sua verdadeira riqueza” conclusão
Domingos Vandelli não foi o único, em Portugal, quem à época e no tempo imediato à Reforma Pombalina da Universidade, se empenhou no estreito alinhamento da prática científica pela filosofia e pelos padrões da nova-ciência por que haviam lutado os autores dessas grandes «Utopias» dos séculos XVI
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e XVII que acima referimos. Ao tempo, serviram na Faculdade de Filosofia e na Academia Real das Ciências de Lisboa muitos outros cultores da ciência a quem animava igual espírito e que entusiasticamente abraçaram a mesma causa. Dalla Bella, Constantino Botelho de Lacerda, Thomé Rodrigues Sobral, Paulino Nolla de Oliveira e Souza, Sebastião Navarro de Andrade, Vicente Coelho de Seabra e, em particular, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 –1838), lente de Metalurgia, cadeira especialmente criada para ele depois da sua elevada especialização em mineralogia, em várias instituições europeias e Intendente-geral das Minas e Metais do Reino, e Director das Casas da Moeda, Minas e Bosques de todos os domínios portugueses, são apenas alguns dos muitos nomes que importa não esquecer. Todos eles assumiam como lema da sua prática científica aquele que se tornou o lema da Academia das Ciências de Lisboa: Nisi utile est quod facimus stulta est gloria - se o que fazemos não for útil, é estulta a glória. Mas, ao tempo a que nos referimos, o empenho de Domingos Vandelli foi certamente aquele que mais se evidenciou na multifacetada relação entre as “ciências filosóficas” e a economia política. *
Departamento de Química, Universidade de Coimbra, Portugal
Thomas More, Utopia, De Optimo Republicae Statu deque Nova Insula Utopia, Louvain, 1517. Tommaso Campanella, Politicae civitas, solis idea reipublicae philosophocae.(La citá del sole). Frankfurt, 1623. 3 Samuel Hartlib, A Description of the Famous Kingdom of Macaria, 1641. 4 Joseph Hall, Mundus Alter Et Idem: A Satirical Utopia in The La Trobe Library, Frankfort, 1605. 5 Fama Fraternitatis, manifesto dos Rosacruzes, Tübingen, 1614. 6 Bem Jonson, A Idade de Ouro Restaurada (1616) in The Works of Bem Jonson, Philips, Sampson & Co, Boston, 1853 7 Michael Maier, Atlanta Fugiens, Oppenheim, 1617. 8 Johann Valentim Andreae,. Christianopolis - Reipublicae christianopolitanae descriptio, Strasburg, Zetzner Ed., 1619. 9 Francis. Bacon, New Atlantis, 1626 in Sylva Sylvarium, a Natural History in Ten Centuries, London, J. H. W. Lee, 1638 10 Francis Bacon, Novum Organum, 1620, in Basil Montague, ed. and trad. ingl., The Works of F. Bacon,, 3 vols., Philadelphia, Parry & MacMillan, 1854. 11 Estatutos Pombalinos, Liv.III, Pt.III, Tit.III, cp.II 12 Idem, Liv.III, Pt.III, Tit.VI,Cpp I-II. 13 Idem, Liv.III, Pt.III, Tit.III, Cpp.III-IV. 14 Idem, Liv.III, Pt.III, Tit.III, Cpp.III; Liv.III, Pt.III, Tit.VI, Cpp.III. 15 Idem, Liv.III, Pt.III, Tit.III, Cpp.IV; Liv.III, Pt.III, Tit.VI, Cpp.IV. 16 Carta de 12 de Fevereiro de 1773 do Marquês de Pombal ao Reitor-Reformador in Colecção Geral das Ordens, fl. 92. 17 Actas das Congregações da Faculdade de Filosofia,1772-1820, (Edição da Universidade de Coimbra, 1978), Acta da reunião de 12. Jan. 1781. 18 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias, Tomo I, 1879, p.293. 1 2
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Gazeta de Lisboa, nº 28 (1784), 17.Julho,p.4 Actas das Congregações da Faculdade de Filosofia,1772-1820, (Edição da Universidade de Coimbra, 1978), pp.21-25. 21 Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias, Tomo I, 1879, pp.179 e 182; A. M. Amorim da Costa, Domingos Vandelli ( 1730-1816 ) e a cerâmica portuguesa. in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal ( Publ. II Centenário da Academia de Ciências de Lisboa, Vol.I, Lisboa 1986), pp.353-371; A. M. Amorim da Costa, Domingos Vandelli (1730-1816) e a filosofia Natural na Universidade de Coimbra in Memórias e Notícias (Publ. Museu Laboratório Min. Geol., Universidade Coimbra), 106, 33 (1988);.A.M.Amorim da Costa, O Professor Domingos Vandelli e o desenvolvimento da cerâmica coimbrã nos finais do século XVIII. in Actas Col. Universidade e a Arte (Coimbra, Fac. de Letras,1993) pp. 277-294. 22 Muito se tem escrito sobre estas Viagens Científicas: objectivo, preparação e execução. Deixamos aqui uma simples referência: W.J.Simon, Scientific expeditions in the portuguese overseas territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the intellectual-scientific community of the late eighteenth century C.E.H.C.A./Inst. De Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983. 23 Domingos Vandelli in Aritmética Política, Economia e Finanças, José Vicente Serrão Ed., Banco de Portugal, Lisboa, 1994. 24 Cristóvão Ayres, Para a História da Academia das Sciencias de Lisboa, Coimbra, 1927, pp.46-49; 482-542. 25 Biblioteca da Ajuda, ms. 54-V-14-10 reproduzido em Domingos Vandelli in Aritmética Política, Economia e Finanças, José Vicente Serrão Ed., Banco de Portugal, Lisboa, 1994, pp.101-106. 19
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carta do dr. dalla bella ao dr. vandelli
Caríssimo Domingos Vandelli: Siamo de la stessa cittá. Siamo de la stessa universitá. Parliamo. Nasci também em Pádua e estabelecemos a nossa Amizade na universidade. Decidimos partir juntos para Portugal, com base no convite que o Sr. Conde de Oeiras nos fez de leccionarmos no Real Colégio dos Nobres, fundado em 1764. Porém, a nobreza que apanhámos (salvo raras excepções!) era muito estúpida e só sabiam rezar o terço e as ladainhas dos Santos. O Ministro mandou-me para Coimbra em 1772, mas o corpo universitário fez-me a vida negra, mocavam de mim. Bruta gente! E eu queixei-me ao Ilustríssimo Senhor Sebastião José. E ele pegou em nós e levou-nos para Coimbra, tendo na Sala dos Capelos imposto as insígnias doutorais frente ao corpo docente estupefacto. Pois é, meu Caro, fomos doutorados com as nossas cartas da universidade de Pádua no bolso por um ministro de D. José I, com ordem expressa do Rei de Portugal. Como sabes, mantive-me em Portugal até quase o ano de 1800, leccionando na universidade. Gostei dos ares e desde que o falecido Marquês de Pombal nos impôs, passei a ser bem recebido por toda a gente naquela cidade. Cheguei a ser mais estimado que tu! De resto, os nossos interesses eram paralelos: publiquei em Lisboa, em 1783 uma obra sobre os raios e, no ano seguinte, complementei os teus estudos sobre o aperfeiçoamento do fabrico do azeite. Em 1786 ainda foi impresso a minha “Memória sobre a cultura das oliveiras em Portugal”. Mas sofri sempre daquele sentimento português em relação á nossa pátria: Saudade, e regressei a Pádua, onde vim a morrer com mais de 90 anos, tendo sempre recebido os meus honorários como professor universitário. Benditas as lições que ouvi aqui ao célebre Marquês de Poleni, que tu ainda chegaste a conhecer na tua juventude. Estou muito velho e cansado para me alongar mais, mas sendo tu recordado não podia eu passar á margem desta homenagem. Merecias essa memória! Recebe pois aquele abraço Amigo deste teu sempre
Giovanni António Dalla Bella
Col. Secção de Zoologia (MHN) FCTUC
Linnaea borealis. Vandellia diffusa. Cicuta virosa. Col. Jardim Botânico de Lisboa/Museu Nacional de História Natural
Gabriela Albergaria. Montsouris Cèdre du Liban. 2006
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Rosa Carvalho. Madre Silva. 2000. Col. Pedro Cabrita Reis
Rosa Carvalho. Jardins Secretos. 2000. Col. António Duarte
Rosa Carvalho. Morfia. 2000. Col. Victor Pinto da Fonseca
Rosa Carvalho. Bela Dona. 2000. Col. Pedro Cera
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maria estela guedes
o apocalipse de domingos vandelli
Micropeça supranaturalista, mas sem obediência estrita à cronologia nem aos lugares da História. Personagens: Domingos Vandelli, Izabella Bon, Alfarrabista. Cena: Aposentos de Vandelli na casa da Calçada, em Coimbra. Ação: Num dia de festa em homenagem ao filho, Domingos Vandelli é preso pelas novas autoridades, no episódio da Setembrizada. Domingos Vandelli acaba de se vestir, mas repara que lhe falta qualquer coisa na lapela do casaco. Chama a esposa, esta tarda a responder. É um homem alto, magro, nervoso, e está irritado. Vandelli (Chama, num desespero crescente) – Izabella!... Querida! Izabella mia!... Onde se terá metido? Rais de Júpiter, mulher, você fugiu para a Penha de França? (Zangado:) D. Feliciana Izabella Bon! Izabella – Mais qu’est-ce qui se passe, mon chéri? Domenico, veja lá se se despacha, está aí o frade já no oratório, pronto para a eucaristia! Maçada, as meninas só agora se levantaram da cama, e as flores ainda não chegaram… Mas que bela festa se prepara para o seu filho Alexandre António!... Vandelli – Como se o filho não fosse seu também, Izabella! Deixe lá o frade a marinar no oratório, só lhe fará bem alguma pré-meditação… Há dias em que tudo corre mal, pelo Ente Supremo! Olhe para o meu casaco… Desapareceu o ramo de acácia… Izabella – Mon chéri, e onde está a jóia? Não me diga que perdeu o alfinete, Domenico! Não me dê essa ralação logo hoje, que é dia de festa!... Uma jóia de estimação, e com diamantes de Bornéu!... Não perdeu, pois não, chéri? Vandelli – Perder, não terei perdido, mas encontrar, já procurei em todos os
Miguel Branco. S/ título. 2007.
guarda-jóias e ainda não encontrei… (Abana-se com uma folha de papel:) Calor, hem? Este Setembro está ardente!... Izabella – Vous êtes terrible, Domenico! Un vrai diable! Agora não há nada a fazer… Ponha um desses de prata que costuma oferecer aos seus discípulos… Se ao menos você fosse um pouco mais cuidadoso, e não perdesse tudo o que tem!… Vandelli – Por favor, chérie! Não há ninguém que não me censure! Até o bisporeitor, tão meu amigo, até ele ultimamente me critica. E tudo por causa do seu primo, Izabella! Só pode ser por causa do seu primo, do seu primo e dessa Besta do Apocalipse… Izabella – Par pitié, você acordou com os pés no travesseiro! Não temos culpa nenhuma de Geoffroy Saint-Hilaire ser meu primo, mas você não deve chamar Besta do Apocalipse ao Imperador Napoleão Bonaparte! De besta é que ele não tem nada, e é o seu contrário chapado, nada perde, nada esquece, tudo arrebanha… Vandelli – Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma… Já estou velho para as novas teorias… Que lhe valeram elas? Uma coroa de louros? Não, pobre Lavoisier, cortaram-lhe a bela cabeça teórica na guilhotina… Izabella – Não mude de conversa, você devia era ter tomado o partido dos estudantes, e dizer: “Sim, sim, façam pólvora no Laboratório Químico! Construam aeróstatos de hidrogénio, carreguem-nos de bombas, e despejem-nas sobre os exércitos de Napoleão!” Olhe que o Tomé Sobral ficou muito zangado consigo, por o Domenico dizer que tinha fundado o Laboratório Químico para a educação e ensino e não para a guerra, e acusou-o de colaborar com os franceses… Vandelli – Tem razão, Izabella… Já o Álvares Maciel, em Minas Gerais, foi encarregado de fabricar pólvora para a revolução… Um desperdício, chérie, um desperdício! Mais barato ficava comprarem-na… Izabella – Podia ser, se soubessem a quem comprar, e se alguém se dispusesse a vender a subversivos… E o Maciel esteve implicado na Inconfidência Mineira só por causa da pólvora? Nem por isso, o nosso compadre Visconde de Barbacena, que na altura era o governador-geral de Minas, e hospedava o Maciel em sua casa, queixou-se de que ele não tinha cuidado nenhum com os livros, e que por várias vezes o tinha apanhado em flagrante delito de estudar as leis americanas! Antes de partir, sabe quantos ramos de acácia o Maciel me pediu? Dos baratinhos, de prata? Nem lhe digo, pois só levou os que havia, 33! Por aqui se
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vê a verdadeira missão… Vandelli – Ora, Izabella, todos sabem que o Maciel foi o endoutrinador político dos implicados no levante! Além de preparar o terreno para que Minas Gerais alcançasse a independência económica, claro… Sem assegurar primeiro as coisas práticas da vida, para que serve a teoria? Ele tinha por missão iniciar o chefe, esse a que chamam Tiradentes… Importar as boas normas é bom, como “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”… Mas não quer isso dizer que pactuemos com a agressão e com a desordem… Sabe quantas carroças de ouro e prata levaram os franceses das igrejas de Coimbra? Izabella – Nem quero ouvir… Vandelli - Catorze! Izabella – Catorze? Bon sang, agora os seus inimigos vão cair todos em cima de nós! Mais je suis innocente, moi! Nem conhecia este primo, foi preciso Geoffroy Saint-Hilaire, de nascimento Le Bon, como eu, vir a Portugal à testa de um regimento de ladrões, para eu lhe ver a cara pela primeira vez! Vandelli – Madonna mia!, bem me arrependo de ter vindo para Portugal! Mais valia ter ficado pelo Orto Botanico di Padova, a cultivar hortelana e salsa parrilha para as aulas de Medicina, como queria o Marquês de Pombal que se fizesse no Jardim Botânico de Coimbra! Ao menos, em Pádua, nenhum aluno refilava por não perceber patavina do que digo na aula teórica! E que falta faz a teoria? Para avançarmos, em ciência, não basta reproduzirmos hipóteses, precisamos de as criar, e precisamos acima de tudo de bons produtos naturais, de máquinas para os transformar, e de navios para o seu comércio… O principal da cultura é reduzir a reprodução e aumentar a troca da novidade… Teoria, teorias… Aluno que me apareça nas aulas a debitar teorias, a citar autoridades, sem nunca ter posto o pé na serra, sem nunca ter descalçado as luvas de pelica para no laboratório analisar a água de um rego, o teor de cobre de uma mina, sem saber distinguir um sardão de um Stincus do Egipto, esse aluno chumba! Se eu detesto os literatos, e ainda mais esses aristocratas enjoados que preferem comer rábanos podres a pegar na enxada para cultivarem uma bela horta de feijões! Thea, até parece nome de deusa, non é vero? Entra o Alfarrabista, sobraçando um monte de livros encadernados. D. Izabella cumprimenta-o polidamente e afasta-se a mexer na roupa de um gavetão. Alfarrabista - Si non é vero, é bene trovato…
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Vandelli – Thea, a visão, o fantasma, é o étimo grego de teoria, exactamente a mesma origem da palavra teatro! Não concorda, Miguel? (Cumprimenta-o com triplo abraço). Ora o teatro diverte, encanta e educa, e o teatro anatómico ainda mais, mas diga-me lá se uma visão protectora… Izabella – Não se enerve, mon chéri, ainda lhe dá uma síncope! Vandelli – Não é mais do que isso a teoria, a teoria é uma visão que nos protege do desconhecido e do medo… Diga-me, caro Miguel, se a teoria serve de alguma coisa, quando um infeliz como o Manuel Galvão da Silva, no cimo de um penhasco, na Bahia, está em riscos de se precipitar nas correntes do Mamocabo? Mais vale ensinar-lhe as formas práticas de sobrevivência, que começam logo pela identificação dos materiais de que é feito o penhasco… E se são aproveitáveis no comércio e indústria, bastava terem ferro, prata, bastante cobre… Alfarrabista – Cobre nativo, estou a ver… Uma boa quantidade enche tanto os olhos como o ouro… Vandelli - Meu caro Miguel, bom Irmão, o que interessa é a prática, o que interessa é saber quais são as produções naturais de um país e como tirar delas o melhor proveito! É essa a fonte do progresso, essa é a directriz de todas as “Viagens Filosóficas” que obrigamos os naturalistas a decorar… Todos levam um exemplar na bagagem… Olhe o Alexandre Rodrigues Ferreira, que foi para a Amazónia… Sem a sebenta, nem os dados do clima conseguia anotar!… Olhe o Donati, coitado, a esse não serviu de muito a sebenta, morreu ao chegar a Benguela… Mas ainda fez muito risco de plantas e animais observados durante a viagem… Olhe, por falar nisso, o João da Silva Feijó diz que vai voltar às ilhas de Barlavento, a ver se colige mais alguns daqueles lagartos esquisitos que se instalaram no Morrinho Branco… Alfarrabista – Mais valia empregar o tempo em coisa mais útil… Uma pena não ser salitre a matéria do vulcão em que se depositavam tantas esperanças… Mandarem aquele desgraçado para Cabo Verde, sem uma tença, sem ajuda de ninguém… Que vergonha! Ia morrendo de fome… A páginas tantas, para comer, o moço até teve de vender os sapatos… Vandelli – E se escreveu ao governo! A pontos de o Mattiazzi, director do Jardim Botânico da Ajuda, o proibir de voltar a dirigir-se ao ministro, Martinho de Mello e Castro! Izabella – Diga, chéri, qual o valor dos lézards exquis? E são esquisitos por-
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quê? Servirá a pele para fabricar malas? Extraem-se aromas inebriantes da sua gordura? Domenico, a sua cabeça fisiocrática ainda vai explodir com esta conversa… Quer um chá de tília? Vandelli – Nem de tília, nem de sangue de drago, nem de Pombalia Ipecacuanha! Já estou como os meus alunos, a dizer: “Não percebo patavina!...” Izabella – Repare, chéri, que nem todos os professores podem gabar-se de legar provérbios, adivinhas e outros idiotismos à língua do seu país de acolhimento, e quem sabe se a outras, ainda mais bárbaras! Vandelli – Daqui a 50, 100 anos, alguém saberá que foi por eu ser nativo de Pádua, ou Patavii, em latim, que nasceu a expressão “Não perceber patavina”? Alfarrabista – Pelo Colégio das Onze Mil Virgens, Dr. Vandelli! Para isso servem a reprodução de cultura de que falava há pouco e os meus alfarrábios! E mal sabe o senhor que ainda há-de ser objecto de muita honra e referência! É o caso da pedra de cobre nativo que aqui me traz… Não há quem não repita o que o senhor escreveu sobre ela, o que gera na mente dos estudiosos um verdadeiro apocalipse… (Fala-lhe ao ouvido:) Temos más notícias… A Acácia corre perigo, os mestres e superiores estão a ser presos um a um… Apesar de o duque de Wellington se opor a tal arbitrariedade! Respondem porém as novas autoridades que só prendem os colaboracionistas… Afrancesados e jacobinos, como lhes chamam. E com isto prendem é os maçons… Vão destruir a Acácia em Portugal, aconselhava-o a sair do País… Izabella (Aproximando-se) – Acácia, disse? Pois veja como este distraído a perdeu… Um alfinete com três diamantes de Bornéu!... Vandelli (Disfarçando) – Meu caro Miguel, então você entra assim em minha casa em dia de festa, sobraçando alfarrábios e sebentas, como se eu tivesse ocasião de me sentar consigo a trabalhar? Neste país que Lineu louvou como as Índias ocidentais, eu só tenho recebido críticas e atropelos, nem o livreiro me respeita! (Fala-lhe ao ouvido nas costas de Izabella:) Sair do país com a minha idade? Nem pensar. Quem prenderam? Alfarrabista – (Em voz baixa:) O Ratton, o Daun, e o pintor, esquece-me o nome… Um que também é italiano… Vandelli - Domingos Pellegrini? Prenderam o Pellegrini?! Alfarrabista – (Sussurrando:) Esse mesmo, veja lá! E também se falou em si… (Em voz alta:) Meu caro, não se irrite sem razão, guarde a ira para motivos for-
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tes, gordos e pesados como esta pedra de cobre nativo… (Separa folhas e livros, que lhe vai mostrando) Então como explica que eu tenha aqui quatro artigos seus, todos sobre a mesma pedra de cobre nativo da Cachoeira, e as informações científicas sobre massa de forma tão constante variem como um catavento? Até parece uma pedra de betume, que agora imita a pedra cúbica e daqui a nada já aparenta ser pirâmide do Egipto!... (Aponta com o dedo o que está escrito nuns papéis:) Olhe só para o peso: aqui é de mil libras, ali é de duas mil e tal, e neste diz o Dr. Vandelli que a pedra pesa mil seiscentas e sessenta e seis libras? (Acentua todas as sílabas:) Seiscentas e sessenta e seis, Dr. Domingos Vandelli?!... Izabella (Sempre procurando) - Um alfinete com três diamantes de Bornéu!... Eu ainda vou ver à saleta, mas não acredito… Chéri, despache-se, a missa é às onze e o frade já marinou tanto no oratório que deve ter azedado! (sai). Vandelli (Descontraído, em voz eufórica:) - Sim, Izabella! (Fala com o alfarrabista, em tom conspirador:) Como queria você que eu avisasse os irmãos e confrades, contemporâneos e vindouros? Isso é uma peça de museu, com inscrição em latim gravada nela, a sugerir que é uma formidável massa de cobre nativo oriunda da Cachoeira, na Bahia… Era preciso chamar a atenção… Note que nem sequer existe cobre na região da Bahia, mas recebemos esse poio gigante no Gabinete da Ajuda, então pensei que era um belo presente para o Geoffroy Saint-Hilaire… Ah, ah, ah!... (Ri-se com vontade) O sacana deve ter desconfiado, não o quis encaixotar, disse que ainda lhe afundava o navio com o peso… Alfarrabista – Tiro-lhe o chapéu, que bela obra! Vandelli - Que ele há muito cobre na Cachoeira, sabia? Mas não é em pepitas nem veeiros, é nas oficinas dos moedeiros falsos. Foram eles que mandaram a peça de artilharia, e tão bem fundida que passa por nativa, não é verdade? Ora diga lá se não parece natural… Alfarrabista – Ouvi dizer que estão em pé de guerra esses fabricantes de moeda falsa. Vão para lá os grandes de Portugal e chupam os nativos com impostos, é o quinto dos infernos! Matam, estripam, esfolam, enriquecem e nada lhes acontece, porque cagam de muito alto… Os desgraçados moedeiros são executados, se forem apanhados… Temos de combater a pena de morte… A seguir à abolição da escravatura, é o passo social mais importante… Tanta treva de injustiça neste nosso tempo das Luzes… Vandelli – É, temos de combater pela abolição da pena de morte. Mas deixeme voltar a esta do nativo e do não-nativo… Os brasileiros independentistas
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fazem muita questão em distinguir os nativos dos estrangeiros, e assim veja o despropósito que é serem nativos os filhos, só porque nasceram no Brasil, e estrangeiros os pais, porque nasceram em Portugal! Alfarrabista - Por isso mandaram o poio de cobre nativo, parido no Brasil, mas engendrado no estrangeiro… É uma vingança dos nativistas… Sim, mas para que deu o Dr. Vandelli o número da Besta à pedra de cobre? Vandelli – Ora, Miguel, não diga nada! Era a ver se a besta do imperador ainda apanhava com a pedra nas trombas, mas o primo da minha mulher, o Geoffroy, desconfiou… Alfarrabista – Ah, o 666 é uma alusão a Napoleão?! Pois claro, tem graça, já não é a primeira vez que lhe oiço chamar Besta do Apocalipse! (Muda de tom:) Dr. Vandelli, veja se arranja uma saída, andam a decapitar a Acácia e o seu nome está na lista… Não o queremos ver desterrado na ilha Terceira, o senhor faz-nos muita falta!
Entra D. Izabella, aterrorizada, com uma cesta de flores a cairem no chão.
Izabella – Domenico, mon chéri! Mon chéri, quel malheur! Vandelli – O que foi, Izabella? Que aconteceu? Izabella – Está aí à porta um capitão com soldados armados para nos levarem… Vandelli – Para nos levarem? A todos? E sob que acusação? Alfarrabista – Não precisam de razões nem de acusações… Meu bom amigo, vão levá-lo para o forte de S. Julião da Barra e depois, tanto quanto sei, embarca na fragata Amazona para o exílio na Terceira. Precipitou-se a tragédia, já não se pode pensar em fuga… O que posso fazer por si? Vandelli (Tira o alfinete da lapela da casaca e dá-o ao alfarrabista:) – Não é um ramo de acácia com diamantes de Bornéu, mas não importa a matéria, só o espírito do símbolo… Peço-lhe, Miguel, que o envie para Londres. Mande-o ao nosso confrade Joseph Banks e conte-lhe o sucedido… Sabe quem é o Joseph Banks?
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Alfarrabista – Claro, tomou parte na primeira grande viagem do Capitão Cook, é aquele que deu nome aos carvalhos do género Banksia… Vandelli – Vero… Alfarrabista – Vero, vero, é o presidente da Royal Society of London… Vandelli – Faça acompanhar de três palavrinhas o alfinete… Alfarrabista – Então não havia de mandar? Um ilustre franco-maçon, alto responsável da Acácia inglesa…
Despedem-se com triplo abraço, o Alfarrabista pega nos livros e prepara-se para partir.
Vandelli – Adeus, meu Irmão… Alfarrabista – Adeus, eu vou, saio pela porta das traseiras, fique descansado… Com a protecção do Supremo Arquitecto e do nosso Irmão Joseph Banks, não há-de este acidente ser completamente irreparável…
Ouve-se ruído de botas a pisarem forte no aria de militares, portas a baterem, gritos A luz funde em negro, o pano corre, e a peça acaba.
soalho, vozede mulheres.
Britiande, 4 de Julho de 2008
CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa
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carta do padre sobral ao dr. vandelli
Ilustríssimo Senhor Vandelli: Tal como V. Senhoria sabe, nasci em Felgueiras, comarca de Moncorvo, no ano de 1760, filho de João Rodrigues. De pobres pais e lar modesto, uma madrinha fez promessa de fazer de mim um padre e lá tive que seguir o seminário e ordenar-me. A sede de saber atirou comigo para as bancas da universidade e seguir Filosofia. Matriculei-me no primeiro ano a 29 de Outubro de 1779. V. Senhoria notou em mim como aluno e em como era dado aos mistérios da Química Natural. Em verdade, reconheço que era bom na matéria e delirava com aqueles mistérios de reagentes e ácidos, nas misturas mágicas de pós que se tornavam explosivos. Precisamente por estar tão dentro da matéria e ser director do Laboratório Chymico desde 1789 é que nunca perdoei a V. Mercê ter-me dado ordem, em 1807, para não fabricar pólvora no meu estabelecimento de ensino. Eu sei que a Cultura não vai com a Guerra, mas são ambos poderes muito fortes quando um peito alberga também um forte conceito de Pátria. Fabriquei-a, sim, e muita pólvora á sua revelia. O único Capitão-mór que resistiu á entrada de Junot foi aquele bravo do João Ferreira de Frias e Gouveia, da vila de Mortágua, que perdeu o braço quando mandou disparar o último canhão que havia na vila. Assim estavam as armas para defender a Nação! Mas nada o impediu de assinar o termo de rendição com a dextra, meter o papel nos dentes, montar e, qual Egas Moniz, pôr o joelho em terra junto ao general inimigo, livrando a terra do saque e da mortandade. Mas a pólvora ficou nas mãos dos muitos que se refugiaram nas suas quintas e terras, para fazerem aquilo que um exército mais teme: a guerrilha. O povo de Coimbra viu partir catorze carroças ajoujadas com prata e ouro da nossa Sé e Santa Cruz; mas o dinheiro que partiu nas mãos de muitos para a província foi seguro pela pólvora que eu fiz. Por tudo isto de nada me arrependo e tenho tal obra com mais valor que aquele
Laboratório Chimico. C. 1920. Col. Alexandre Ramires.
volume que chamei “Tratado das Affinidades Chimicas”, ou do outro “Memória Sobre o Princípio Febrifugo das Quinas”. Também era sócio da Academia Real das Ciências e Link e Adriano Balbi compararam-me ao grande francês Chaptal. Não podia ficar de braços cruzados com tropas inimigas pilhando e roubando a minha terra e pus-me contra si com todas as minhas forças. Soube da sua desdita com um certo prazer e depois veio-me a notícia da sua morte. Deixe lá: também encontrei essa Senhora em Coimbra, no ano de 1829, contando 69 anos de idade. No último lampejo que tive lembrei-me de V. Senhoria, mas era muito tarde para Lhe dizer qualquer coisa. Tão agarrado fui àquela casa chamada Laboratório Chymico que o meu espírito ainda volteja por lá. Dizem que fizeram daquilo museu e puseram a pia de pedra de Ançã onde tanta pólvora fabriquei á entrada, com um letreiro com o meu nome. É bem feito. Ainda sou lembrado em Coimbra pelo meu patriotismo! Fica aqui o meu pesar por ter sido tão mau com V. Ex.ia mas as razões ficam aos olhos de todos. Mas beijo-Lhe as mãos do meu Reverendo Mestre esperando que a paz caia agora sobre todos.
Padre Thomé Rodrigues Sobral
Militar Académico, I Centenário das Invasões Francesas. 1908. Col. António Ramires.
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sebastião formosinho
a química em domingos vandelli: uma arte ou uma ciência?
vandelli na reforma pombalina da universidade de coimbra
Nos finais do século XVIII pela mão do Marquês de Pombal chegavam as Luzes ao governo do Reino de Portugal. Contava-se com a já então florescente “ciência moderna” para abrir as portas da utilização de produtos naturais e a sua industrialização, acompanhados por um «bem regulado comércio», para colocar Portugal na senda do desenvolvimento que a Europa já trilhava1. «É exactamente dentro desse espírito que o rei D. José I promulgou em 1772 os Estatutos da Universidade de Coimbra “accomodados ao bem, e augmento da sobredita Universidade; e muito uteis para os progressos das Sciencias, e Artes, que nella se devem ensinar”»2. Daí a Faculdade de Filosofia (Natural) ter sido planeada para dar expressão aos «3 Reynos da Natureza», à Química e à Física. Foram criados o Museu de História Natural, o Jardim Botânico, o Laboratório Chymico e o Gabinete de Física. De Pádua foram chamados dois professores distintos: Domingos Vandelli e Giovanni Antonio Dalla Bella que já se encontravam em Portugal, desde 1764, para leccionar matérias científicas no Real Colégio dos Nobres3. Mas a experiência não foi bem sucedida, perante a pouco interesse da aristocracia em dar formação científica aos seus filhos. Pelo que tais professores foram envolvidos na Reforma da Universidade em Coimbra. O primeiro, figura em torno da qual foi organizado o projecto Transnatural, formou-se na sua cidade natal em medicina, tal como seu pai, e veio a tornar-se conhecido como naturalista e químico. Vandelli terá começado a exercer funções docentes na Universidade de Coimbra, nos domínios da História Natural e da Química, em Maio de 1773, com 38 anos de idade. Para além das funções de leccionação, havia também sido incumbido pelo Marquês de Pombal, juntamente com o seu compatriota, para elaborarem um plano para o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. «Elaborou o primeiro plano para o Jardim Botânico, tendo escolhido o local para o instalar, em 1773. Todavia, Pombal não aprovou
Autómato representando um centauro. Col. Museu de Física da UC.
este plano por considerá-lo demasiado extravagante e dispendioso»4. Encontra-se no Arquivo Histórico Colonial uma carta de Vandelli datada de 17 de Maio de 1774, tendo em anexo o texto da sua “Primeira Aula de Química” em Coimbra, que foi ministrada numa 4ª feira, a 14 de Maio de 17735. Vandelli iniciou-a do seguinte modo: «Nunca me vejo ao pensamento, que eu devese ser o primeiro, que em esta Ilustre Universidade houvesse de insinar a Sciencia Chimica, a qual eu tão soamente me tenho aplicado p.ª envestigar os segredos na Natureza corporea, quanto pela experiencia se pode alcançar; e juntamente pª descobrir os usos, que as differentes produções da Natureza podem subministrar as Artes, a Economia e ao Comercio». Para um pouco adiante escrever: «Não me dilatarei pois em demonstrar, e espender se a Chimica he hum arte, ou huma Sciencia, como no outro tempo inútil me pareçeo o explicar também se a Historia Natural he huma semplice Nomenclatura, ou huma Sciencia». Química, uma arte ou uma ciência? Questão retórica da parte de Vandelli, sem dúvida, mas que está a camuflar a sua polarização para a química vista mais como uma arte. Quanto à ciência melhor se compreende a sua prudência, se reconhecermos que só em Outubro de 1774 o químico inglês Joseph Priestley jantaria em casa dos Lavoisier em Paris, e teria revelado uma estranha descoberta sobre os seus estudos do gás recolhido na redução do mercurius calcinatus: «uma espécie de ar no qual uma vela ardia muito melhor do que no ar comum, mas que ainda não lhe tinha dado um nome. Neste ponto, toda a gente, o Sr. e também a Srª Lavoisier, expressaram grande surpresa»6. Afinal, o que Priestley havia revelado a uma «mente preparada» como a deste químico francês, é que o gás produzido na ausência de carvão era algo diferente do ar fixo normal7. Uma das dificuldades vigentes nos químicos pneumáticos do tempo é que o «ar fixo» tanto incluía o dióxido de carbono como o oxigénio, distinção que próprio Lavoisier ainda não havia adquirido quando entregou a sua carta selada à Academia das Ciências de Paris em finais de 17728. Bem antes desta primeira aula de Vandelli, Lavoisier já havia enunciado, ainda numa linguagem próxima da do flogisto, le principe oxygene. Mas fruto da sua actividade na Ferme Générale e do estudo de assuntos financeiros do Estado francês, havia reconhecido o «valor do peso exacto das quantidades medidas com rigor», competência de contabilista rigoroso e exigente que transferiu para os seus trabalhos em química9. Guillaume-François Rouelle, o professor de química de Lavoisier mais actualizado, entendia a química como «uma arte que nos ensina a separar, por
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meio de instrumentos, vários corpos; a combiná-los até ao fim para estarem de acordo com as suas propriedades e torná-los úteis para as várias artes»10. Apesar de seguir a doutrina do flogisto, Rouelle era um pouco céptico a seu respeito. A relevância deste químico encontra-se no êxito do seu ensino, que muitos seguiam, como os cientistas Macquer, Bayen e Cadet, entre outros, e no facto de já ter “demonstrado” que os sais eram o produto das reacções entre ácidos e bases. Reconhecia ainda a existência de sais ácidos e mesmo de sais básicos, se bem que de uma forma mais confusa11. Mas sobre o estado do ensino de Rouelle, o “aluno” Antoine Lavoisier escreveria: «combina muito método no seu modo de apresentar as ideias com muita obscuridade na maneira de as articular»12. A teorização da química que lhe havia sido ensinada era muito débil e cheia de contradições; fazia muitas suposições ao invés de provar. Claramente, ainda não era o que Lavoisier entendia dever ser uma ciência, e o jantar com Priestley acabou por lhe ser indispensável no fecho do «hiato lógico» que ainda permanecia em si sobre a combustão e a calcinação. E mesmo nas mãos de Lavoisier, a química mostrou-se resistente a uma completa matematização ao modo da força gravítica de Newton para a física, pois acaba por ser “cientificada” (quantificada) não em termos de forças mas de pesos, através do uso sistemático e rigoroso da balança. o termo de
«química
física» na primeira aula de química
Prosseguindo na Aula de Vandelli, encontramos, por um lado, um entendimento químico próximo de um Rouelle: «A Chimica insigna a descompor os corpos, que a Natureza oferece p.ª chegar aos seus princípios, e deduzir todas as quellas verdades, que dellas dependem; de sorte, que a Chimia he a Algebra dos corpos, da mesma sorte, que a Algebra he a Chimica das quantidades». Mas, por outro lado, Vandelli almeja princípios químicos e uma linguagem com a clareza e a coerência dedutiva de uma álgebra. Horizonte de que esta ciência se encontrava ainda longe em 1773. Reconhecemos em Vandelli um distanciamento da visão alquímica da química, a visão de um conhecimento global abarcando filosofia e religião, e na qual o laboratório tem uma função mais demonstrativa para ilustrar a teoria mas não para a pôr em questionamento. Explana sim uma visão iluminista. «Fallando geraalmente a Chimica se pode devidir em Chimica física, Técnica, Comerciante, e Economica. A Chimica Fisica he a pratica da Chimica feita em pequeno, e com este método se podem descobrir algumas das causas dos effectos físicos, como são os Vulcanos, os Terremotos, as Vegetações, e deste modo fazer
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na Natureza novos descobrimentos». De certo modo, surpreende, na sua Primeira Aula de química, o uso do termo de «Química Física», como destinado ao estudo dos efeitos e não por aplicação dos métodos físicos que só vem a surgir muito mais tardiamente. Encontramo-nos em 1773, e a aplicação deste termo, quando dedicado ao emprego de métodos da física ao estudo dos fenómenos químicos, terá sido feito, segundo David Knight13, pela primeira vez por Edward Frankland em 1877, praticamente um século mais tarde, em: Experimental Researches in Pure, Applied and Physical Chemistry, London, 1877. A especialidade de química-física, com o significado actual, porém, só vem a emergir na Alemanha em 1887 com os nomes de van’t Hoff e Wilhelm Ostwald. Contudo, como bem refere Keith Laidler14, o famoso livro The Sceptical Chymist or Chymico-Physical Doubts & Paradoxes de Robert Boyle, publicado em Londres em 1661, já continha o termo «química física» no seu título completo. Também refere que trabalhos posteriores no século XVIII, de Joseph Black e Antoine Lavoisier podem bem ser classificados como de química-física. E que a obra de 1855 de William Allen Miller, Chemical Physics, também poderia ter sido apelidada de Physical Chemistry. Apesar de Vandelli ter relegado para um segundo plano o ensino da química na Universidade de Coimbra em detrimento da sua dedicação à botânica15, mostra-se actualizado na sua Primeira Aula. Curiosamente, esta associação entre botânica e química em Vandelli não é única nos cientistas do tempo. O químico (pneumático) Stephen Hales (1677-1761), que o antecedeu em meio século, era também um distinto botânico. Hales publicou a obra Vegetable Statics em 1727 e nela apresenta diversos estudos experimentais de fisiologia vegetal. Graças a uma simples montagem pneumática de recolha de gases, estudou as quantidades de ar «fixado» por plantas e animais, que era libertado por aquecimento (destilação). Um território que Knight afirma tanto poder ser química como física, porque ao tempo não era claro se o próprio ar não seria uma “espécie”16. Quiçá, os estudos de Boyle e os de Hales terão reforçado em Vandelli o uso do termo “química física” para classificar uma área da Química realizada em pequena escala com carácter demonstrativo e investigativo. Aliás, nem o Laboratorio Chymico tinha ainda condições para trabalhos a uma escala superior. Hales e Vandelli surgem unidos na história da botânica, pois ambos viram os seus nomes perpetuados em plantas: Hales tem uma árvore Halesia classificada com o seu nome, tal como Vandelli, que se correspondia com Lineu, teve uma planta nova classificada como Vandellia.
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uma visão fisiocrática
Além de ser um homem das Luzes, Vandelli possuía um certo pensamento fisiocrático fruto de uma escola de pensamento do seu século e que é a primeira escola de «economia científica», na qual toda riqueza provém da terra; a indústria apenas diversifica o produto e o comércio distribui17. Esta perspectiva vai-se reflectir no seu modo de organizar a Química. Como explana na sua Primeira Aula de química: «a Quimica Tecnica tem por objectivo a aplicação da Quimica fisica a uma utilidade imediata de uma dada Arte, propondo o método de inventar ou aperfeiçoar a mesma Arte». A este respeito ilustra com práticas de metalurgia, cerâmica e do vidro, tinturaria, manufactura do sabão, destilação da aguardente, nas artes dos vinhos, pintura, preparação de colas, na arte de «conservar madeiras cheias de corrosão», «na pólvora; e, enfim, na arte farmacêutica». «A Quimica Comerciante é a aplicação da Quimica Fisica e da Técnica ao estabelecimento, e adiantamento de algumas partes do Comércio em particular, empregando-se na execução em grande de todas as Artes Químicas, das quais se pode tirar proveito. Ensina também os diferentes métodos de preparar, condensar, conservar, e fazer mais fáceis para se transportarem as substâncias naturais, e artificiais, ajuntando a isso o método com que se devem defender das injúrias do tempo, do mar, e de muitos outros acidentes». «A Química económica não é outra coisa mais, do que a aplicação das sobreditas à utilidade, e necessidades ordinárias da vida». Nesta vertente, entre outras, se inclui a química em medicina. Parece que Vandelli queria actuar em cada um dos ramos em que dividia a química. Mas na Universidade de Coimbra iria dedicar-se principalmente aos dois primeiros aspectos da química [a Química Física e a Química Técnica], em suas aulas e nos trabalhos que desenvolveu também em conjunto com seus discípulos»18. Em Química, Vandelli seguia o livro “Fundamentae Chemia” de Scopoli que seguia a teoria do flogisto. A escolha reflecte alguma consonância de pensamento entre a botânica e a química, pois o autor era também um botânico. O químico Joseph Macquer teria escrito em forma de “sebenta” o primeiro “Dicionário de Química”, incorporando conceitos teóricos de uma química geral, e que acabou por vir a lume anonimamente em 1766. Mas o sucesso imediato que granjeou, levou o seu autor a publicar uma 2ª edição em 1778. Foi então que Scopoli o traduziu e expandiu extensivamente tendo surgido em Praga, 1777, a edição
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que veio a ser mais utilizada em Coimbra. Uma 2ª edição desta “tradução” veio a ser publicada em Veneza em 1784-8519. Vandelli não terá tido na «filosofia e artes da química» o mesmo pioneirismo do que em História Natural20, mas é de salientar a sua capacidade em preparar e incentivar discípulos, «um notável conjunto de bachareis formados e de doutores». Quiçá fruto de estar «inserido numa sociedade de grupos e arcádias» e ao seu dinamismo para inaugurar outros grupos, como bem referiu Eduardo Proença-Mamede na abertura da exposição do «Gabinete de Curiosidades de Domingos Vandelli». Outros disseram «ser o tempo por excelência para a criação de clubes»21. Martim Portugal, regista no seu estudo «apenas os seus alunos que tiveram relevo na Universidade ou nas Artes de Minas, em Portugal ou no Brasil». Um número apreciável destes alunos era nascido no Brasil. Como refere Amorim da Costa, «A reforma [pombalina] fora promulgada em 1772, sendo administrada pelo monge beneditino, D. Francisco de Lemos (1735-1822), natural de Santo António de Jacutinga, Rio de Janeiro. A origem de D. Francisco de Lemos parece ser uma das razões subjacentes à grande afluência de estudantes brasileiros neste período. Entre 1772 e 1758, matricularam-se em Coimbra e outras universidades europeias cerca de 300 estudantes brasileiros, embora Coimbra fosse o destino preferencial»22. São dezasseis os nomes referidos por Martim Portugal, que incluem três doutores envolvidos em «viagens filosóficas» e outros quatro que foram bolseiros no estrangeiro. Graças a tais viagens de estudo e colheita de material museográfico no território metropolitano, no Brasil, em Angola e em Cabo Verde, foram enriquecidas as colecções do Museu de História Natural, em minerais, plantas, e outras curiosidades23. Era, de certo modo, a resposta ao mote do séc. XVIII, como o viu D. G. Charlton: «observar pelo prazer de observar»24. «Sinais de um interesse científico acrescido são também detectáveis no desenvolvimento do espírito de curiosidade e de colecção, quer ao nível particular, quer a nível público. Herbários, fósseis, laboratórios experimentais, gabinetes de leitura, jardins botânicos, observatórios astronómicos, museus, passam a constituir referências para o registo e catalogação de avanços no conhecimento científico, para além de consubstanciarem o deleite e o deslumbramento provocados pela natureza intensamente vivida»25. Mas como refere José Luís Cardoso, em Vandelli, «nesse mundo descoberto pela história natural, […] a atenção não se fixa apenas nas curiosidades, nas coisas atractivas e úteis. Os naturalistas inventariaram as produções naturais de forma rigorosa e sistemática, […]»26.
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Aos discípulos do Dr. Vandelli apresentados por Martim Portugal, acrescento ainda o nome de Vicente Coelho Seabra, também nascido em Congonhas do Campo (Minas Gerais) no Brasil, e que se salientou como químico. Sobre ele escreveu Amorim da Costa: «Seabra foi, até certo ponto, uma figura singular no panorama da química portuguesa do seu tempo. Estava a par dos últimos desenvolvimentos desta ciência e as suas obras, Elementos de Chimica e Nomenclatura Chimica Portugueza estão em consonância com as teorias de Lavoisier, cujas contribuições não foram de imediato aceites pela generalidade dos químicos europeus da época. Quer o trabalho experimental de Seabra, quer as suas preocupações teóricas e espírito crítico constituíram elementos valiosos para um desenvolvimento da química em Portugal. Contudo, os seus sucessores parecem não ter estado à altura do seu legado»27. A adesão de Seabra à química de Lavoisier, ocorreu em 1787, quando teria 23 anos de idade. A sua obra principal, os Elementos de Chimica começou a ser escrita quando ainda era estudante, aos 24 anos. Dividiu o seu compêndio em duas partes: a primeira veio a lume um ano antes de Lavoisier dar à estampa o Traité Elémentaire de Chimie (1789); a segunda foi editada um ano depois da publicação da obra magna de Lavoisier28. «Seabra justificou a publicação do seu compêndio pela escassez de bons manuais de química na Europa, pelo que decidiu escrever um livro em que o conhecimento químico pudesse ser apresentado em Português de uma forma sistemática»29. o papel da dimensão tácita da química em vandelli
Quanto tomamos como referência o impacto de Dalla Bella no que concerne à preparação de discípulos ou dos académicos que se seguiram a Vandelli na segunda geração, isto é, após 1810, temos de reconhecer o assinalável sucesso deste botânico e químico nascido em Pádua. Haverá razões para tal? Em abono de Dalla Bella é por bem reconhecer que a sua actividade se focalizou mais no seio da universidade, com a elaboração de um compêndio de Física Experimental, que concretizou entre 1789 e 1790 em três volumes com o título de Physices Elementa, bem como um compêndio para um curso de agricultura, e no aperfeiçoamento e invenção de instrumentos de física bem como ao estabelecimento do Gabinete de Física30. Mas em Vandelli comecemos por atentar de novo na frase da Primeira Aula de Química: «Não me dilatarei em demonstrar ou sustentar se a Química é uma arte ou uma ciência». Dela decorre haver neste cientista italiano, mais tarde naturalizado português, um apelo artesanal para o ensino da química, algo que se aprende através de uma relação de mestre-aprendiz, imitando e
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fazendo. Hoje, com Michael Polanyi31, sabemos que esta dimensão tácita da ciência está muito mais enraizada nos nossos modos de conhecimento, do que ser simplesmente «um modo de ver a ciência com arte». Mas, nesta ocasião, tal nos basta. Nalgumas ciências, como em física, é menor o papel desta componente tácita, mas noutras como na química, e muito em especial em medicina, são mais fortes tais presenças. Não nos podemos esquecer que Vandelli tinha uma formação inicial em medicina. E a aprendizagem do tácito requer uma associação pessoal do aprendiz aos seus mestres, quer no pensamento quer nas práticas científicas. Aliás Vandelli concluiu a sua Primeira Aula recomendando, após as 15 demonstrações experimentais destinadas a exemplificar os princípios da afinidade ou atracção química: «Elas são muito suficientes para dar uma boa ideia da Química, querendo porém adiantar-vos nesta ciência, deveis ler principalmente um Lemery, um Hoffmann, um Boerhaave, Geoffroy, Pott, Maquer, Baumé e outros; e além disso deveis por vós mesmos fazer muitos ensaios de experiências; d’outra sorte ficareis com uma simples tintura desta ciência, e o mesmo sucederá na História Natural, se não vos exercitardes a examinar as produções da Natureza, e isto com método sistemático». Portanto, recomenda aos seus estudantes que imitem para saber fazer. Márcia Ferraz «traindo os desejos desse professor italiano da Universidade de Coimbra, que adoptara Portugal como sua nova pátria, visitou alguns de seus trabalhos reservados a poucos privilegiados: seus alunos do Curso Filosófico e seus colegas, os “imortais” da Academia Real das Ciências de Lisboa». Verificase, pois, que Vandelli partilhava os trabalhos que realiza com os seus alunos, possivelmente os melhores32. Em 1777 o Laboratório Chymico já se encontrava operacional para o ensino da química, mormente para «demonstrações e processos químicos», e nele Vandelli vai realizar uma série de trabalhos e também orientar discípulos na realização de outros33. Como exemplo, Márcia Ferraz cita «Francisco d’ Almeida Beja e Noronha que realizou as análises das águas minerais de Falla, na região de Coimbra, fazendo publicar em 1790 um trabalho dedicado a seu mestre: Analyse das aguas hepatisadas marciais do lugar de Falla junto a Coimbra. Neste trabalho, Noronha apoia-se nas publicações do francês A.-F. de Fourcroy para discutir aspectos da composição das águas minerais, principalmente quanto à polémica presença do ferro. Ele utiliza a nomenclatura e apresenta a composição da matéria em termos da química flogística, mesmo num período em que Fourcroy já havia aderido à nova química»34.
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Idêntica atitude encontra esta historiadora numa memória manuscrita de Vandelli, “Descripção e Analyse Chimica do Cobre virgem ou nativo …” descoberto em 1782 na Baia, no que será uma cópia existente em arquivo brasileiro: «Depois de uma descrição mineralógica, passa às análises químicas nomeando quatro naturalistas, ex-alunos do Curso Filosófico, com quem realizou os ensaios»35. Encontramos nestes exemplos razões para o sucesso de Vandelli através dos seus discípulos. Se bem que, como refere Amorim da Costa, internamente «relegaria para um plano secundário o ensino da química, facto que suscitou a atenção do Reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos, em 1774. Os múltiplos cargos e os interesses de Vandelli pela botânica, história natural e pela indústria, terão contribuído para esta situação»36. Contudo, é capaz de mobilizar os seus melhores alunos em diversas actividades científicas, ao modo de grupos informais de “pesquisa científica” quer em Química quer em História Natural. Pois, também «em 1778, Domingos Vandelli arregimentou, entre seus melhores ex-alunos de Coimbra, a equipe que passaria a trabalhar na organização do acervo do Museu de História Natural da Ajuda, em Lisboa»37. vandelli e a revolução química de lavoisier
Em 1797, «Vandelli estaria ao corrente dos experimentos realizados pelos químicos britânicos, e pelo grupo de Lavoisier, sobre a decomposição da água, mas não parece ter aceitado ainda a nova nomenclatura proposta em 1787 pelo grupo francês. Se assim fosse teria dito “muriato de soda” para o sal marinho e “gás hidrogénio” para o gás inflamável […]. Ao mesmo tempo em que enfatiza os aspectos práticos, Vandelli parece estar desprezando a explicação teórica»38. Numa memória de uma página, publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa, no início do século XIX, sobre o sal-gema das ilhas de Cabo Verde, é o próprio Vandelli a afirmar: «Em lugar de gastar o tempo procurando adivinhar a origem, e modo pelo qual se formaram tantas riquíssimas minas de sal nestas ilhas, não será melhor investigar os meios mais convenientes, para que estas minas possam ser mais úteis ao reino?»39. E Márcia Ferraz conclui: «Entretanto, as publicações que comentamos se apresentam quase sempre desprovidas das discussões teóricas e criticam mesmo aqueles que poderiam ter a pretensão de fazê-lo»40. O prestígio de Vandelli como químico surge-nos desvalorizado na história por três razões fundamentais: i) ser um flogista que rejeita a especulação teórica e a química do oxigénio; ii) ter-se eximido sempre à incumbência da Faculdade
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para a escrita de um compêndio de química e outros requisitos para uma boa leccionação41; iii) o depoimento pouco elogioso que sobre ele deixou H. Friedrich Link em “Voyage en Portugal depuis 1797 jusqu’en 1799”: «Il est bien arrière pour les connaissances. A peine connaît-il les plantes qu’il a jadis décrites lui-même, il est également mauvais mineralogiste et ses ‘Mémoirs de Chimie’, insérés dans les Memorias de l’ Academie, l’ont couvert de ridicule auprés des savants»42. Examinemos estes factos no contexto de uma época de revolução na química. O flogisto, à sua época, foi um passo em frente na racionalização da química, como esquema lógico e coerente. O modelo da ciência no século XVII era a física e a matemática, pelo que nesse tempo a química não era vista como uma ciência. Para tal a química carecia de uma profunda teoria organizativa que começou por ser a “teoria do flogisto”. Esta teoria foi iniciada por Joachim Becker (1635-1682) e continuada por Georg Stahl (1670-1734). Se esta teoria foi, algum modo, um regresso ao passado especulativo da alquimia, veio a ser a primeira teoria em química, o que teve a vantagem de conferir à química as características de uma «ciência independente»43. A grande problemática alquímica centrada sobre a metalicidade foi perturbada pela grande inovação de Stahl - a corrosão dos metais e a combustão da madeira remetem para o mesmo fenómeno! E as práticas mineiras e metalúrgicas de «redução dos minerais» encontram, assim, no flogisto uma explicação luminosa. Havia, contudo, uma falha em todo este edifício. Em 1630, Jean Rey já havia estudado a calcinação do estanho e verificado que a cal pesava mais do que o metal a partir do qual tinha sido formada. A explicação que apresentou tem analogias com o que Lavoisier viria a propor cerca de século e meio depois, mas veio claramente «antes do tempo». Outras explicações foram entretanto surgindo. Alguns atribuíam ao flogisto um peso negativo. Então o seu escape devia deixar o resíduo mais pesado. Outros químicos tão eminentes como Macquer e Guyton de Morveau confundiam as noções de peso e peso específico44. O argumento corria de que a «cal» seria mais leve para o respectivo volume do que o metal original; então o que deveria ser tido em consideração seria o peso específico e não o peso absoluto. Outros argumentavam que o metal calcinado ganhava peso a partir da chama à medida que o flogisto se escapava, e o ganho em peso era mais do que suficiente para compensar a perda de peso por libertação do flogisto; um regresso às noções de Boyle. Era, de facto, o caos teórico em química, ao tempo em que Lavoisier se iniciou no estudo do domínio.
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Vandelli, tal como Lavoisier, mostrava grande interesse nas aplicações da ciência para o bem público. Pelos testemunhos escritos que deixou, como reconhece José Luís Cardoso, Vandelli revelou sempre «uma intenção programada de exercício científico que ultrapassa a simples obtenção de níveis acrescidos de conhecimentos, para se afirmar como instrumento de configuração de uma estratégia e de um modelo de desenvolvimento económico»45. Lavoisier, todavia, tinha «a ambição científica de prover a química da definição clara que a física tinha atingido não muito antes»46. Como se veio a revelar necessário com o avanço dos seus estudos, para tal teria de teorizar a química em oposição ao flogisto. Numa linguagem dos nossos dias, teria de embarcar num «conflito de paradigmas». E quem se debruce sobre as controvérsias científicas ao longo da história, mormente as que advogam novas regras de pensamento, reconhece a sensatez das palavras de Max Planck: «As novas teorias vingam, não porque se convençam os adversários, mas porque eles morrem!». Por isso a revolução química de Lavoisier é atípica, por que começou a vingar ainda com bastantes químicos flogistas vivos. Com efeito, os mais novos podem empenhar-se no esforço de uma organização mental segundo as novas regras de alguma novel teoria, porque vislumbram as promessas do seu maior alcance e fertilidade que pode ter reflexos na carreira pessoal. Mas para os mais idosos, aqueles que vêem o fim da carreira académica mais próximo, um tal esforço mental só pode sentir-se compensado pelo prazer lúdico de um novo modo de pensar a ciência. Daí ser muito menor a força motriz para a mudança. Mas no caso da revolução lavoisiana intrometeu-se a linguagem. E num certo paralelismo com a língua corrente, como Teixeira de Pascoaes reconhecia: «A língua, não determinando rigidamente a cultura de um povo, traça-lhe não obstante vias de orientação; […] cada língua constitui um modelo do universo, um sistema semiótico de compreensão do mundo, um verdadeiro mundo que o espírito coloca entre si os objectos pelo trabalho interno da sua força»47. No caso da química, a nova nomenclatura também determinou um certo modo de viver e construir esta ciência. Nos começos de 1787 Louis Guyton de Morveau, um jurista de formação e profissão mas um químico de vocação, viajou até Paris para consultar químicos eminentes sobre uma reforma da nomenclatura química tornada premente há vários anos. Juntaram-se-lhe nesta tarefa Lavoisier, Berthollet e Fourcroy. De facto, muitos nomes dos compostos eram nomes tradicionais e associados a localidades, a pessoas, à aparência do material e assim por diante: pó de
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Algarote, sal de Glauber, sal de Rochelle, óleo de vitríolo, manteiga de arsénio, água forte, água régia, verde de vitríolo, gás silvestre, negro de magnésia, leite de magnésia, etc. A nova nomenclatura foi aprovada para publicação pela Academia das Ciências de Paris, mas a mesma Academia não recomendou o seu uso perante o parecer de um comité de apreciação constituído por: Baumé (autor de um livro (1787) baseado no flogisto), Sage (flogista), D’Arcet e Cadet. Guyton tinha sido adepto da teoria do flogisto, mas perante as novas evidências, aproximou-se bastante das ideias de Lavoisier. A linguagem química reflectia a visão nova que se aproximava. Cada nova substância simples devia ter um nome único. As substâncias compostas receberiam dois nomes reveladores da sua constituição elemental. Por exemplo, a cal de chumbo foi atribuída ao género óxido e à espécie do chumbo. E assim, no domínio da química inorgânica surgiram os nomes nossos familiares de sulfureto, nitratos, nitritos, etc.. Os promotores da nova nomenclatura encontravam nela claras vantagens para o ensino da química ao facilitar os raciocínios neste campo. Os opositores reclamaram que os novos termos eram baseados em hipóteses que poderiam cair; químicos experimentados não entendiam esses termos estrangeiros que sentem como uma pressão para impor a nova teoria, forçando os que se iniciavam no estudo da química a aprender a nova linguagem. Mas a verdade é que os professores a começaram a ensinar e centenas de estudantes por ano aprendiam-na nas convincentes lições de Fourcroy em Paris, de de Morveau em Dijon, de Chaptal em Montpellier. Os adeptos do flogisto tiveram de a começar a aprender para se fazerem entender, incluindo o próprio editor do Journal de physique. Foi a necessidade de uma nova linguagem bem construída e cerzida com a nova química do oxigénio que forçou em tão pouco tempo o triunfo de ambas48, mas tais circunstâncias não são usuais quer em ciência quer nas artes. Como referiu Fernando Pessoa: «Todo o autor, na proporção em que é grande e ao mesmo tempo original, tem tido sempre que criar o sentido estético pelo qual há de ser apreciado; assim foi sempre e assim continuará a ser …»49. Há na heterodoxia científica um paralelo com a artística, um sentido estético para a literatura e para as artes, e um sentido cognitivo para as ciências. Com a «nova química» houve uma conversão de praticamente toda a comunidade dos químicos; os mais novos primeiro e com entusiasmo; os mais velhos com mais dificuldade e menos entusiasmo. Mas a pressão para a mudança era grande e tornou-se maior com a publicação de tratados anti-flogisto, especialmente o Traité Elementaire de Chimie do próprio Lavoisier em 1789. Nesta obra confirma as suas ideias sobre a necessidade de precisão no desenvolvimento da teoria […],
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e critica as teorias anteriores por partirem de conceitos vagos e desconhecidos para através deles atingir “fatos conhecidos e palpáveis”. A sua proposta era exactamente o contrário, partir de factos conhecidos para chegar a conceitos gerais»50. É nesta viragem de pensamento que encontramos ideias seminais de Rouelle, que associa sistematicamente as noções de elemento-princípio e de instrumento. Esta associação foi nova na época e realçou os valores que a química das luzes francesas veio a reivindicar - «o químico não é ninguém sem os seus instrumentos». Por meados da década de 90 a nova química estava assente em França, na Inglaterra e na Escócia e esta ciência aproximou-se muito mais da ciência irmã, a Física. Contudo, Joseph Priestley permaneceu fiel ao flogisto. E neste contexto, a posição de Vandelli também foi o by default, quando se reconhece que o seu interesse prático pela mineração e refinação de metais era bem coberto pelo flogisto. É segundo este enquadramento que vamos examinar a posição de Vandelli. Terá sido racional e coerente em se manter afecto à teoria do flogisto até ao fim da vida? Pela idade com que veio leccionar para Coimbra, não seria dos que se converteria mais facilmente. Acresce que era muito pouco motivado pela especulação teórica, digamos pela química como “ciência”, mas sentia um enorme apelo pela resolução de problemas práticos com reflexos económicos, isto é, por uma química como “arte” eficaz. Escrevia Vandelli em 1797: «Este é o resultado de algumas experiências, as quais para não enfastiar os leitores, não ornei de supérflua erudição, nem de fastidiosos detalhes, nem de inúteis teorias»51. Julgo mesmo que, quem como ele escreveu ser a «Química a Álgebra dos corpos», deveria entender a teorização de Lavoisier como longe de objectivos correctos. Teria preferido uma “cientificação” newtoniana da química, à base de forças e não de massas, pois na sua Primeira Aula referese a dois mecanicistas empenhados como Boyle e Boorhave. Paralelamente, como aponta José Luís Cardoso, há o apelo da História Natural: «Estamos num século em que a história natural será dos domínios científicos que acolhe maior adesão e popularidade»52. Mas Vandelli conhecia os trabalhos de Lavoisier e ter-se-á apercebido que do confronto das duas visões, mesmo que a teoria do flogisto saísse vencedora, não ficaria inalterada. Não era nada motivador neste clima de debate e transformação de ideias investir na escrita de qualquer compêndio. Arriscavase a que a obra ficasse obsoleta muito depressa, retirando tempo a outros interesses, mormente para quem se dividia um pouco entre Coimbra e Lisboa.
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E não podemos ignorar que quem o fez na linha da teoria do oxigénio, Vicente Coelho Seabra, dedicou-a à Sociedade Literária do Rio de Janeiro, mas não teve o prazer de a ver utilizada pela Universidade de Coimbra. Sobre a opinião de Friedrich Link, não podemos ignorar que desde os seus 25 anos foi um antiflogista, logo em 1792. O seu encontro com Vandelli foi naturalmente pautado pela diferença de idades (37 anos) e por duas visões distintas e em conflito do mundo da química, e tal ter-se-á reflectido inevitavelmente numa opinião muito desfavorável a respeito do químico italiano. Sendo uma autoridade competente, não é a autoridade suprema, e devemos ver a sua opinião como a de um referee dos tempos modernos. Na “Memória sobre as minas de ouro do Brazil” (cerca de 1790), Vandelli cita Sage e o seu Tratado da Arte de Ensayar para corroborar as suas ideias, ao mesmo tempo que critica Mr. Macquer, Cadet, Lavoisier, Baumé, Cornet, e Bertholet consultados pelo Ministro da Fazenda de França […] acerca do problema e teriam garantido que a perda de ouro era mínima e não prejudicava os trabalhos nas casas da moeda. Vandelli não aceitou esse argumento e acrescentou: «Porém estes célebres químicos não podem negar, que por esta solução do ouro na água forte ... os Ensaios feitos ... sem verificar a porção de ouro dissolvido na mesma não são exactos, e são de grande prejuízo; sendo bem conhecido que qualquer mínima diferença, ou levíssima falta do metal ensaiado, respectivo ao grande, vem a ser considerável, e por consequência o ensaio falso, inútil, e prejudicial»53. Um outra questão grave com implicações económicas dizia respeito ao facto de «os ensaiadores não conhecerem a platina presente no ouro do Brasil (o chamado ouro preto) que chegava de Goiás e Jacobina, “e assim eles dão um valor ou toque ao Ouro, que contem a Platina como se não tivesse”, […]. Acontece que a platina também é solúvel na água régia e os ensaios apontavam 24 quilates como o toque do ouro purificado, quando na verdade, se fosse realizada a separação da platina, o toque poderia alcançar 18 quilates, observa Vandelli na “Memória sobre as minas de Ouro do Brasil”. Procurando aliviar Portugal dessas perdas, foi criado em 1802, na mesma Casa da Moeda de Lisboa, um “Curso Docimástico” para a formação de químicos e ensaiadores de metal sob a direcção do brasileiro José Bonifácio de Andrade e Silva. Entretanto, por uma série de razões, o curso só vai funcionar cerca de 20 anos depois. Nesse período, os futuros ensaiadores continuaram a ser formados por seus pais. Podemos imaginar que muito pouco mudaram os processos, apesar das críticas de Vandelli»54. Novamente este químico e botânico de Coimbra se envolve na
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resolução de uma dificuldade estratégica de índole química, e mobiliza um dos seus discípulos para, com competência, contribuir para a resolução do problema. Em 1808 quando se iniciou a revolução contra as tropas francesas que invadiram Portugal, no Laboratório Chymico da Universidade de Coimbra a fabricação da pólvora esteve a cargo de Tomé Rodrigues Sobral, então o catedrático de Química e também director do Laboratório. Por esta sua acção veio a ser conhecido por «mestre da pólvora»55. Mas outros estudos relativos aos compostos de nitrogénio e à pólvora haviam sido realizados anteriormente pelo seu mestre Domingos Vandelli, para «acrescentar força à pólvora», como descreve Márcia Ferraz. Retomemos, mais uma vez, o seu artigo sobre a memória de Vandelli publicada em 1797, intitulada “Várias Observações de Química, e História Natural”. O texto é «composto de várias partes, a saber: “Flor de anil, ou azul da Prússia fóssil das Minas Gerais”; “Método de acrescentar a força à pólvora”; “Método de fixar o Mercúrio”; “Transmutar o ferro em perfeito aço”; e “Cobre Nativo do Brasil”. Esses ensaios, …, são, na verdade, textos de conteúdo químico (ficando a “história natural” do título restrita a algumas frases) em que Vandelli descreve algumas análises e experimentos realizados utilizando, ainda, a antiga terminologia na denominação dos compostos químicos. Assim, ao tratar da pólvora nos diz: “purificando o nitro ... para livrá-lo totalmente do sal marinho, o fiz dissolver com água impregnada de Gás inflamável, que obtive na decomposição da água...»56. Estes exemplos parecem-me o bastante para ilustrar ser Vandelli um químico competente. Não teria, com certeza, um saber enciclopédico, ao modelo de Friedrich Link. Nem teria especial apetência pelos os aspectos lúdicos da ciência, pois os aborda em tom depreciativo57. considerações finais
Não nos podemos esquecer que Vandelli veio para Portugal pouco depois dos seus 30 anos de idade, e tinha outros legítimos interesses na vida, e de relevância nacional, para além dos decorrentes de ser professor na Universidade de Coimbra e membro activo da Academia Real de Ciências de Lisboa. «Em 1787 foi viver para Lisboa, onde se tornou o primeiro director do Jardim Botânico da Ajuda, sendo nomeado Deputado da “Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus Domínios”. Continuou a ser director do Laboratório Químico da Universidade até 1791, apesar de estar ausente de Coimbra. Neste laboratório foi sendo sucessivamente substituído em funções de
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responsabilidade efectiva por Manuel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1829), Constantino António Botelho de Lacerda Lobo (1754-1820), Tomé Rodrigues Sobral (1759-1829) e Vicente Coelho Seabra (1764-1804), até abandonar o cargo em 1791, sucedendo-lhe como director Tomé Rodrigues Sobral»58. Jubilou-se aos 56 anos, tendo fixado residência em Lisboa. Desde aí, «a sua proximidade junto da corte permitiu revelá-lo como conselheiro no âmbito político, diplomático e financeiro», e «teve papel ímpar no desenvolvimento das doutrinas e políticas económicas e financeiras de Portugal»59. Sobre ele escreveram os historiadores Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa: «Domingos Vandelli, homem ilustrado e de vários saberes, há muito radicado no reino, autor de numerosas memórias e pareceres, uns com alvitres oferecidos ao príncipe, outros exprimindo reflexões que ficaram por certo num domínio mais reservado, constitui um precioso testemunho dessa época, até porque constitui o exemplo de um homem que procurou activamente orientar a acção do regente. Vandelli escrevia a D. João sobre assuntos financeiros e económicos, mas também sob aspectos diplomáticos e militares. Mais do que isso, registava alguns elementos destinados à caracterização do governo»60. Em ciência julgo que Vandelli terá seguido o exemplo de outro químico que refere, Robert Boyle, apelidado por vezes de «father of chemistry», e que tinha outros interesses para além da química. Boyle escreveu livros sobre uma apreciável variedade de temas, incluindo filosofia, sociologia e religião. E nos seus trabalhos científicos era auxiliado por um grande número de assistentes, para poder devotar também o seu tempo a outros temas e a causas filantrópicas61. Vandelli foi químico numa época de profundas transformações de ideias e de linguagem. Se a teoria do flogisto perturbou e adiou a correcta interpretação do aumento de peso observado por Jean Rey na calcinação do estanho, a verdade é que não impediu o progresso da química pneumática. Tal como o facto de a teoria do calor, incorrecta ao interpretar o calórico como uma substância e não uma forma de energia, não impediu os estudos de um Lavoisier, Black ou Carnot. Pelo contrário, ambas estimularam novas investigações e quando novas teorias surgiram, os factos brutos não foram perdidos, mas sim reinterpretados segundo novos formalismos conceptuais. Questão distinta é a linguagem da química do tempo de Vandelli. Esta linguagem não tinha nada a ver com o flogisto. Guyton de Morveau, era um flogista, mas como jurista de formação e profissão buscava a «precisão do conceito». Tal requeria uma linguagem clara e que seria impossível de alcançar com um vocabulário impreciso, por vezes mesmo contraditório, como era o da química do seu tempo. Mas não abandonou o flogisto sem tristeza: « J’avoue que je n’ai
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pas vu sans peine ces phénomènes se réaliser sous mes yeux, tant que je n’ai pu les envisager que sous un aspect qui menaçait d’une ruine prochaine la plus belle partie de nos connaissances». Compreende-se a «dor da partida» pois a «partir de 1775, pela primeira vez na história da química, os químicos ficaram de acordo sobre os fundamentos da sua ciência, e isto graças à “sublime teoria” de Stahl, este mensageiro da paz, que finalmente conseguiu proporcionar uma explicação consensual e tranquilizante a respeito dos fenómenos mais conflituosos que a química havia enfrentado: as combustões e as calcinações»62. Os primeiros a juntar-se a Lavoisier, após 1777, foram os matemáticos, Laplace e Monge. O primeiro químico a imitá-los foi Pierre Bayen (1725-1798), apesar de já ter 52 anos, mas havia sido o primeiro a mostrar a perda de peso por redução de uma “cal de mercúrio” mediante aquecimento em 177463. Em 1785 aderiu à «teoria do oxigénio» Berthollet, e esta foi uma conversão importante, pois era dos maiores químicos do seu tempo e, que após a morte do grande opositor flogista, Pierre Macquer em 1784, teve o efeito agregador da convicção de uma das maiores autoridades do domínio. No ano de 1787, Guyton de Morveau deixou a sua cidade natal para passar oito meses em Paris e aproveitou para fazer diversas visitas a Lavoisier, participando mesmo nas suas experiências. Acabou por se converter. Durante o mesmo ano o contágio passou a Mancha, e aderiu ao oxigénio Thomas Beddoes (1760–1808), professor em Oxford, e depois foi tocado pela mesma graça Joseph Black (1728-1799). Restava Richard Kirwan (1733–1812), que se destaca em Londres no seu ardor e talento em defender o flogisto, julgando mesmo ter demonstrado a evidência da sua existência no «ar combustível», o nosso hidrogénio. E para divulgar e sustentar as suas ideias publica, em 1784, a obra An Essay on Phlogiston, com a qual esperava ter encerrado a controvérsia a favor do flogisto. Lavoisier não foi indiferente à opinião de Kirwan e, em 1788, Madame Lavoisier empreende a “tradução” da obra, apoiada por quase todos os apoiantes do seu marido, Fourcroy, Berthollet, Monge, Laplace, et Guyton de Morveau. Uma estranha tradução, diga-se, pois as notas e as refutações com que é acompanhada, ultrapassam o texto original. Releve-se o extraordinário fairplay de Kirwan, que em 1791 escreve uma extensa carta a Berthollet onde se dá por vencido e convencido: «Enfin je mets bas les armes et j’abandonne le phlogistique». A partir deste momento, restaram poucos aderentes, e em menos de um ano assiste-se à jubilação de Vandelli. Joseph Priestley (falecido em 1804) e Henry Cavendish (falecido em 1810), tal como Vandelli (falecido em 1816) não mudaram de opinião64.
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A ciência está assente num sistema de convicções no qual explicações e teorias contrárias aos paradigmas vigentes são rejeitadas ou ignoradas, mesmo que correctas e provadas65. É, pois, um sistema de convicções a que os cientistas aderiram, e Priestley e Cavendish que haviam aderido por boas razões ao flogisto, em 1791 ou já se sentiam demasiado idosos para empreenderem o esforço da mudança, pois se encontravam quase na casa dos 60, ou não encontraram boas razões para a empreenderem. Vandelli, só dois anos mais novo que Priestley, acompanhou-os. Departamento de Química, Universidade de Coimbra, Portugal
Márcia H. M. Ferraz, “Domingos Vandelli e os Estudos Químicos em Portugal no Final do Século XVIII”, Química Nova, 18, nº 5, 500-504 (1995); Textos de Sebastião José de Carvalho e Melo, em “Portugal como Problema. A Economia como Solução 1625-1820. Do Mercantilismo à Ilustração”, vol. V, José Luís Cardoso (coord.), Público/Fundação Luso Americana, Lisboa, 2006, pág. Cap. VII. 2 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 3 M. R. Portugal Vasconcelos Ferreira, “200 Anos de Mineralogia e Arte de Minas: Desde a Faculdade de Filosofia (1772) até à Faculdade de Ciências e Tecnologia (1972)”, FCTUC, Coimbra, 1998, pág. 27. 4 A. Amorim da Costa, “Domenico (Domingos) Vandelli (1730-1816)”; acesso à internet em 5 de Janeiro de 2008: http://www.spq.pt/docs/Biografias/Domingos%20Vandelli%20ing.pdf. 5 A. Amorim da Costa, “Primórdios da ciência química em Portugal” (PCQP), Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, Lisboa, 1984, pág. 38. 6 Madison Smartt Bell, “Lavoisier no Ano Um. O nascimento de uma nova ciência numa época de revolução”, Gradiva, Lisboa, 2007, pág. 103. 7 Ibid., pág. 107. 8 Ibid., pág. 92. 9 Ibid., págs. 25, 26, 65. 10 Ibid., pág. 44; sublinhado meu. 11 Aaron J. Idhe, “The development of Modern Chemistry”, A Harper International Student Edition, New York, 1964, pág. 59. 12 Smartt Bell, ob. cit., pág. 45. 13 David Knight, “Ideas in Chemistry. A history of the science”, The Athlone Press, Londres, 1992, págs. 163, 206. 14 Keith J. Laidler, “The World of Physical Chemistry”, Oxford University Press, Oxford, 1993, pág. 1. 15 Amorim da Costa, PCQP, ob. cit., pág. 40. 16 Knight, ob. cit., pág. 45. 17 José Luís Cardoso (introd. e coord.), “Memórias de História Natural. Domingos Vandelli”, Porto Editora, Porto, 2003; introd. págs. 19, 20. 18 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 19 Em http://en.wikipedia.org/wiki/Giovanni_Antonio_Scopoli; acesso em 5 de Janeiro de 2008. 20 M. R. Portugal Vasconcelos Ferreira, “200 Anos de Mineralogia e Arte de Minas: Desde a Faculdade de Filosofia (1772) até à Faculdade de Ciências e Tecnologia (1972)”, FCTUC, Coimbra, 1998, pág. 28. 21 Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa, “D. João VI. O Clemente”, série Reis de Portugal, Círculo 1
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de Leitores, Lisboa, 2006, pág. 88. 22 A. Amorim da Costa, “Vicente Coelho de Seabra Silva Telles (c.1764-1804)”; em http://www. spq.pt/docs/Biografias /Vicente%20Coelho%20de%20Seabra%20%20.port.pdf ; acesso em 6 de Janeiro de 2008. 23 Portugal Vasconcelos Ferreira, ob. cit., pág. 36. 24 Citado em Cardoso, ob. cit., introd. pág. 11. 25 Cardoso, ob. cit., introd. págs. 11 e 12. 26 Cardoso, ob. cit., introd. pág. 17. 27 Amorim da Costa, “Vicente Coelho de Seabra …”, ob. cit.. 28 António Jorge Andrade de Gouveia, “Químico esclarecido Luso-brasileiro, Vicente Seabra (1764-1804), Mem. Acad. Ciências Lisboa, XXI, 8-35 (1976-77); “Vicente Seabra and the Chemical Revolution in Portugal”, Ambix, 32/3, 97-109 (1985); “Vicente Seabra e a Revolução Química em Portugal”, em História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, vol. 1, 7-35 (1986). 29 Amorim da Costa, “Vicente Coelho de Seabra …”, ob. cit.. 30 Fernando Reis, “Dalla Bella (1730-c.1823)”, http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p34. html; acesso em 6 de Janeiro de 2008; ver também Amorim da Costa, PCQP, ob. cit., págs.115, 116. 31 Michael Polanyi, “Personal Knowledge. Towards a Post-critical Philosophy”, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1958, ed. compulsada 1969. Ver também, S. J. Formosinho, “A importância do conhecimento tácito em Química. Um tributo a Alberto Romão Dias”, Química. Bol. Soc. Port. Quim., submetido a publicação. 32 M. Ferraz, “Domingos Vandelli ...” ob. cit.. 33 Ibid.. 34 Ibid.. 35 Ibid.. 36 Amorim da Costa, “Vicente Coelho de Seabra …”, ob. cit.. 37 Viagens & Expedições: http://www.cedope.ufpr.br/joao_feijo.htm, acesso em 6 de Janeiro de 2008. 38 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 39 Em M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 40 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 41 Amorim da Costa, PCQP, ob. cit., págs. 40-45, 52-55. 42 Citado em Amorim da Costa, PCQP, ob. cit., págs. 54, 55. 43 Knight, ob. cit., cap. 4. 44 Aaron J. Idhe, “The development of Modern Chemistry”, A Harper International Student Edition, New York, 1964, pág. 58. Ver ainda a seguinte experiência: Consideremos dois pedaços de chumbo com o mesmo peso. Quando colocados cada um no prato de uma balança, verifica-se equilíbrio. Mas juntemos ao prato A uma rolha de cortiça (representando o flogisto) ligada com o pedaço de chumbo. O prato A baixa. Mas se mergulharmos o conjunto em água, agora é o prato B que desce. E Guyton de Morveau conclui: «Voilá donc une addition de matière qui produit une diminution du poids dans l’eau». Claro que em água temos o efeito da impulsão, que é proporcional ao volume da água deslocada. O facto de de Morveau desconhecer o princípio de Arquimedes resulta de ser um autodidacta em ciência, apesar de ser um químico competente. Mas este facto também revela os escolhos que se colocaram aos químicos adeptos do flogisto; em “Guyton de Morveau. Chimie et Revolution”, internet : http://pagesperso-orange.fr/ours. courageux/guyton.htm; acesso 13 de Janeiro de 2008. 45 Cardoso, ob. cit., pág. 5. 46 Smartt Bell, ob. cit., pág. 27. 47 Teixeira de Pascoaes, em “Portugal como Problema. Século XX, os Dramas de Alternativa”, vol. IV, org. Pedro Calafate, Fundação Luso-Americana/Público, Lisboa, Setembro de 2006, pág. 59. 48 Smartt Bell, ob. cit., pág. 146. 49 Fernando Pessoa, “Apreciações Literárias. Bosquejos e Esquemas Críticos”, Editora Estante, Aveiro, 1990, pág. 16.
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50 Ana Maria Alfonso-Goldfarb e Márcia H. M. Ferraz, “ As Possíveis Origens da Química Moderna”, Química Nova, 16, nº 1, 63-68 (1993). 51 Cardoso, ob. cit., introd. págs. 6, 7. 52 Cardoso, ob. cit., introd. pág. 11. 53 Cardoso, ob. cit., pág. 38-39; M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 54 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 55 Amorim da Costa, PCQP, ob. cit., págs. 77-81. 56 M. Ferraz, “Domingos Vandelli …”, ob. cit.. 57 Cardoso, ob. cit., introd. pág. 9. 58 Fernando Reis, “Domingos Vandelli (1735-1816)”; http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ ciencia/p10.html; acesso 12 de Janeiro de 2008. 59 Cardoso, ob. cit., introd. págs. 3, 4. 60 J. Pedreira e F. Dores Costa, ob. cit., pág. 68. 61 Keith J. Laidler, “To Light Such a Candle”, Oxford Univ. Press, New York, 1998, pág. 326. 62 B. Bourdoncle, “Guyton de Morveau. Chimie et Revolution”, em http://pagesperso-orange.fr/ ours.courageux/guyton.htm; acesso 13 de Janeiro de 2008. 63 Ihde, ob. cit., pág. 63. 64 B. Bourdoncle, “Guyton de Morveau. Chimie et Revolution”, em http://pagesperso-orange.fr/ ours.courageux/guyton.htm; acesso 13 de Janeiro de 2008. 65 M. Polanyi, “Personal Knowledge”, ob. cit., pág. 171.
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hélder gomes
a humanidade dos monstros: domingos vandelli ou o chão que os passos pisam
Os caminhos interiores do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra foram preenchidos com detritos de demolições. Recoberto por uma camada de musgo e saibro erodido, entrevê-se o entulho das demolições de anteriores edifícios — aglomerados de argamassa, pedaços de calcário talhado, fragmentos de azulejos policromados e de cerâmica de uso comum. O traçado regular dos caminhos e canteiros de buxo do jardim fundado por Domingos Vandelli conduz os passos através de uma organização espacial que se constrói sobre a demolição de outras formas de organização: aquilo que os passos pisam não é nem um todo de ordem e sentido, nem o caos —isto é, a ausência absoluta de qualquer modelo organizativo—, será, antes, a imposição de uma dada organização formal aos restos de uma ordem anterior, a subordinação das ruínas a uma outra forma de organização da matéria. Mas, de modo inverso, significa também a permanência da ruína e do detrito no interior da nova organização. A matriz palimpsêstica dos caminhos traduz o modo como a organização do espaço se constrói sobre a desorganização dos outros espaços; traduz o modo como a imposição de um princípio de organização opera sempre pela desestruturação de princípios de organização alternativos ou concorrentes. Este é, em parte, um processo reversível: supõe como condição de afirmação de um sentido a manutenção do seu negativo, supõe a integração do outro como condição de produção da identidade. O trabalho de escavação arqueológica que se propusesse estudar os estratos que formam o solo dos patamares do jardim talvez permitisse identificar alguns dos detritos que aí subjazem como cerâmica proveniente da antiga fábrica de louça criada na cidade de Coimbra por Domingos Vandelli. A criação e a destruição anulam-se e potenciam-se mutuamente. Independentemente da identificação de estratos cronologicamente datáveis e referíveis a movimentos sucessivos de preenchimento dos patamares que formam o jardim, o princípio predominante de organização formal do entulho é, aqui, o da estrita acumulação: a sobreposição de material de
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enchimento até à definição da cota final. Encontramos neste procedimento a expressão paradoxal de uma noção de tempo e de mundo que mergulha as suas raízes no Iluminismo do século XVIII. Filha dilecta do Iluminismo, a ciência moderna é pensável segundo este mesmo movimento teleológico de acumulação de tempo e de saber; no mínimo, ela supõe-o como pressuposto: assenta na possibilidade de uma organização cumulativa da experiência do tempo, a qual incorpora, como parte do processo de aquisição de saber, o erro e o movimento de superação do erro. Do mesmo modo, a ideia de museu, quer o museu de arte, quer o de ciência ou de história natural, supõe a possibilidade de um processo de construção cumulativa do tempo e da história; supõe a possibilidade de uma organização taxionómica do mundo, assim como de uma organização narrativa do tempo. Mas, tal como as ruínas que os nossos passos pisam parecem questionar o sentido do próprio percurso, também esta pretensão de uma organização unívoca do mundo supõe um movimento que se subtrai a si mesmo. Entre o espólio de Domingos Vandelli recolhido nos museus de Coimbra, a par com o herbário e a colecção de fósseis, encontra-se uma colecção de aberrações naturais preservadas em álcool, os designados monstros. Monstro, nesta acepção, significa, do dicionário: “Ser vivo ou corpo organizado, animal ou vegetal, que apresenta conformação ou estrutura anómala em todas as suas partes ou em algumas delas; aberração.”1. A organização inerente ao orgânico surge aqui desorganizada por um desvio interior. Não se trata de afirmar o puro negativo —o inorgânico—, mas de identificar a desorganização do orgânico, de nomear a excepção que garante a norma, de documentar o negativo comensurável, aquele que suporta a afirmação. Como critério de selecção da colecção, parece ser identificável uma atenção particular dada à ideia de duplo; àquilo que, apesar de orgânico e vivo, é inconciliável com a organização dos seres enquanto vida. A colecção de Vandelli coloca-nos diante da noção de que a duplicação dos organismos inviabiliza a própria ideia de organismo: uma cobra bicéfala, um cordeiro de dois corpos e uma só cabeça, uma cabeça dupla de vitelo, entre outros. Destes, numa experiência ambígua de atracção e de repulsa, prende a atenção um conjunto de fetos humanos: dois pares de gémeos siameses; um par de pele branca, e outro de pele negra. Recolhidos sob propósitos, ou sob pretextos, de investigação científica, mais do que suscitarem a interrogação científica, estes fetos humanos em redomas de álcool chocam pela sua comovente humanidade. A humanidade dos monstros é aqui a humanidade do outro, a identidade que se instala do lado de lá da norma, da fronteira, da língua ou da lei, aquilo que
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exige o atravessamento da fronteira como condição de exclusão ou apropriação. Novamente é perceptível a ambivalência entre aquilo que atrai e aquilo que repele: os cadáveres preservados são ao mesmo tempo a ilustração da vida e a sua mais afirmativa negação. Organicamente inviáveis, mortos, de facto, privados da própria ideia de vida —pneuma, psyché, anima, consciência?— os fetos surgem aqui reduzidos a uma condição quase iconográfica: transformados, no mínimo, em representações de si mesmos. A exposição da morte como objecto de estudo dos organismos vivos afirma a representação —a imagem, a teoria, a lei— como negação da própria natureza orgânica. Um sentimento análogo detecta-se diante das páginas do herbário: também aqui a morte surge como condição do saber; a homogeneização cromática das plantas e das flores nos herbários traduz a redução da diversidade a uma estrutura morfológica capaz de determinar uma identificação universal. As espécies vegetais surgem reduzidas à sua configuração formal mais estrita, a tridimensionalidade quase reduzida à bidimensionalidade da planta comprimida entre as páginas do herbário, a diversidade de habitats reduzida às páginas pardas das folhas de celulose: esta é a condição da sua conversão à língua comum da construção taxionómica. Seja enquanto objecto de estudo, exposição didáctica, ou recolha protomuseológica, a reunião destes objectos no interior de uma colecção traduz um modelo de interacção com o real dimensionado por uma relação de apropriação. Não se trata apenas de conhecer ou de dar a conhecer, trata-se de possuir o conhecimento, de possuir o objecto do saber. À ideia de colecção subjaz a ideia de domínio como princípio de organização do real. Para além dos estritos modelos taxionómicos, e tal como na sobreposição de entulho de enchimento no solo do jardim botânico, também ao nível da formação das colecções a acumulação funciona como estratégia de organização do caos. Acumula-se para possuir, possui-se para compreender. O coleccionismo reflecte aqui uma relação de intelecção mediada pela posse: compreender é apropriar-se do objecto de compreensão, compreender é incorporar o objecto segundo uma relação de posse simbólica ou efectiva. Isto permite, paradoxalmente, assinalar os limites de uma relação intelectiva de cariz predominantemente representacional: torna-se necessário acrescentar ao saber a posse do objecto do saber; torna-se necessário, no caso do monstros, identificar a linha divisória além da qual a vida se faz ameaça; torna-se necessário mapear o território do outro como condição de identificação do eu. Estamos diante da definição da fronteira e de delimitação do território —isto é, de compreensão enquanto delimitação espacial— como critério de identidade. Expedir alguém para lá da fronteira, simbólica
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ou fisicamente, incorpora este movimento de colonização. Neste sentido, a produção do saber, enquanto produção de correlatos representacionais —a teoria, a fórmula, a imagem—, traduz um movimento análogo de colonização do real pela representação. Este é, ao nível da Modernidade, um movimento de substituição e da realidade por um correlato representacional: substituição da coisa pela sua representação, substituição do tecido cultural autóctone pelos modelos ocidentais. Substituição e subordinação. No ano de 1783, larga de Portugal em direcção ao Brasil o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Nos nove anos seguintes, e seguindo um percurso desenhado por Domingos Vandelli, o naturalista percorre o interior da colónia, enviando para Portugal os resultados das suas pesquisas. Parte deste legado recolhese hoje no espólio de Vandelli. Esta expedição é o exemplo mais expressivo da adopção por parte da coroa portuguesa da tendência da época para a organização de campanhas científicas de exploração dos territórios coloniais. As viagens filosóficas dinamizadas ao longo da Modernidade são expressão de uma relação com a realidade determinada como apropriação do objecto; apropriação pelo conhecimento, e duplicação dessa relação simbólica numa efectiva relação de posse política e de exploração económica. A exploração científica é, assim, indissociável da exploração comercial. Nesta acepção, as missões de exploração científica constituem uma versão secularizada das missões de evangelização que, desde o século XV, acompanharam e suportaram ideologicamente os processos de expansão colonial. O desejo de saber é correlativo ao desejo de poder, de objectivação do poder no espaço concreto dos territórios “inexplorados”. Se o imperativo do aumento do saber opera aqui por processo de exploração espacial, ele assenta num movimento de desdobramento da rede categorial do ocidente sobre os espaços supostamente a-categoriais: mais do que de conhecer o outro, trata-se de identificar os instrumentos da sua apropriação. A categoria de desinteresse, que surge na reflexão de Immanuel Kant como condição de fundamentação da experiência estética, age também, na ciência moderna, como categoria epistemológica de referência: como condição de objectividade, caberia à ciência uma relação desinteressada com o seu objecto. A ideia de “saber pelo saber” —isto é, do saber como fim em si mesmo, numa tendência de sacralização da ciência—, corre em paralelo com a ideia da ciência como instrumento privilegiado de progresso e emancipação. Esta dupla pretensão espelha-se no modo como o desenvolvimento da ciência moderna —e Domingos Vandelli é disso um exemplo cabal— age por um processo de interacção com a produção de derivados técnicos de aplicação concreta. Neste sentido, a exploração científica desdobra-se no processo de exploração política,
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económica, cultural. Não lhe é exterior, nem supletiva, é parte integrante de uma mesma configuração de mundo, de uma mesma organização taxionómica do real. Se a taxionomia supõe a preexistência de uma organização interna do real face à qual a sua veracidade seja aferível segundo uma relação de adequação, supõe também a possibilidade de imposição ao real de um modelo estrito de organização, supõe a imposição do sujeito ao objecto, segundo uma relação de domínio, e supõe a possibilidade de passar de uma relação de compreensão para uma relação de condicionamento activo do seu objecto, ou seja, supõe uma relação de transformação. Exige, portanto, a afirmação da superioridade relativa de um dado discurso e de uma dada forma de organização da experiência. Naturalmente que todo o movimento de intelecção do real —seja de matriz mágica, mítica, religiosa, científica ou outra— implica a possibilidade de produzir um correlato representacional que responda enquanto constructo àquilo que se pretende a ordem natural das coisas: tratar-se-ia não de impor ao mundo uma dada ordem e um dado sentido, mas de o reconhecer e de o transpor para um discurso adequado. Tal implica afirmar, implícita ou explicitamente, a pretensão de superioridade desse discurso como instrumento de intelecção do real. Estamos diante daquilo que podemos designar por conflito de representações. Um conflito de representações será a disputa ou relação concorrencial entre diferentes discursos e propostas de organização do real, seja a nível científico, religioso, político, estético, ou outros. Os conflitos de representações constroem de um modo dinâmico as identidades culturais e são expressão da tentativa de afirmar ou de procurar impor a superioridade relativa de um dado discurso como condição da afirmação da superioridade de uma dada forma de organização do mundo. Sejam conflitos intra-culturais, como as disputas ideológicas ou o conflito entre o discurso religioso e o discurso científico que funda a modernidade, sejam conflitos inter-culturais, como os conflitos inter-religiosos ou aqueles subjacentes à expansão colonialista de uma dada cultura, tais conflitos de representações implicam sempre a definição de relações de poder e de estratégias operativas destinadas a impor o modelo de mundo deles decorrente. Nesta medida, a afirmação da ciência como o discurso privilegiado na Modernidade é indissociável da emergência dos sistemas políticos e económicos que a corporizam. Parte importante da definição de um dado discurso, ou de uma dada modalidade de organização do mundo enquanto sentido, consiste na definição de estratégias de classificação do real. Por exemplo, ao nível das estratégias operativas, não existem muitas diferenças entre os procedimentos formais do pensamento mágico e do pensamento científico: um e outro propõem-se identificar um
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discurso capaz de reconhecer no mundo uma dada ordem e, num movimento derivado, identificar procedimentos de intervenção sobre o real. Trata-se sempre de organizar para conhecer, conhecer para dominar. A marcha triunfante da ciência moderna assenta num modelo de classificação do real que opera pela interacção entre a experiência da coisa a classificar e a construção de um constructo representacional —uma teoria, um modelo explicativo— no interior e à luz do qual a coisa possa ser objecto de experiência. Neste sentido, a posse da coisa é o pressuposto de uma relação que visa a legitimação — ou, em termos epistemológicos, a fundamentação— da própria relação de posse. A organização de gabinetes de curiosidades —e dos seus sucessores, o museus de história natural— traduz esta noção de experiência como apropriação e ponto de partida para a construção de correlatos representacionais —o saber— tendentes a legitimar a própria relação de posse. Disse-se atrás, a propósito dos caminhos do jardim Botânico de Coimbra, que a imposição de um princípio de organização opera sempre pela desestruturação de princípios de organização alternativos ou concorrentes; parte do que se designou como um conflito de representações encontra aqui a sua mais expressiva caracterização. Esta é uma relação de âmbito simbólico, mas também, ou sobretudo, de âmbito político: o modelo de imposição colonial de uma matriz cultural dominante efectua-se sempre pelo preço do apagamento ou da negação das estruturas culturais preexistentes. Em Portugal, em Angola ou no Brasil, o solo que os passos pisam é também ele formado pelos restos arruinados das culturas indígenas, segundo um processo paradoxal de exclusão e incorporação, negação e integração. Não subjaz a estas afirmações nenhum juízo de valor: este é um modelo identificável na constituição de todas as identidades histórico-culturais. Por exemplo, no caso da constituição da identidade orgânica designada por Portugal temos, desde a romanização à queda do império, da fixação visigótica à conquista árabe, da reconquista cristã à expansão imperial, o mesmo e repetido movimento de negação e de incorporação dos seus outros. Caminhamos sempre sobre os nossos mortos. A mesma relação é identificável no processo de constituição de identidades culturais decorrentes dos movimentos de expansão colonial da era moderna. As Américas, em particular, formaramse pela incorporação paradoxal —porque constituída pela reiterada negação do objecto de incorporação— dos diferentes outros pela cultura dominante: negação e incorporação da matriz indígena, num primeiro momento; negação e incorporação da matriz africana, a seguir; negação e incorporação da matriz europeia nos processos de descolonização.
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Embora indissociável do nascimento da ciência moderna, o gabinete de curiosidades veicula uma concepção de experiência do real que se subtrai à sua objectivação em conhecimento: faz apelo a uma experiência do saber que não é verdadeiramente transmutável em representação objectiva. De matriz renascentista, o critério que dita a recolha, selecção e organização das peças não é o da sua capacidade de se integrarem no interior de um todo orgânico de compreensão e saber, mas, sobretudo, o da sua capacidade de se constituírem como desafios à compreensão e ao saber, de se constituírem como lugares de interrogação e afirmação do poder pela posse do objecto de interrogação. Nesta medida, o gabinete de curiosidades é expressão de uma relação com o real que assenta no pressuposto de que a parte ou o indivíduo não é redutível ao todo, segundo uma noção de saber e de mundo anteriores à exigência moderna da universalidade como critério de verdade e de legitimidade. A ciência moderna opera pela identificação e produção de regularidades; são estas que permitem que o saber se duplique em poder. A possibilidade de condicionar e manipular tecnicamente a transformação do real funda-se na capacidade de antecipar as suas transformações. Enquanto expressão de uma organização proto-moderna do real, o gabinete de curiosidades tende a recolher não a regularidade, mas a excepção: aquilo que pela raridade ou pelo grotesco suscita a interrogação. O gabinete de curiosidades coloca-se, assim, não no campo da resposta —a sistematização, a constituição representacional do mundo enquanto coisa conhecida—, mas do espanto que prepara a pergunta; o gabinete de curiosidades inaugura a pergunta, mas furta-se à resposta. Se embora só face à regra e à regularidade a excepção seja pensável enquanto excepção —isto é, o monstro é o negativo do projecto de iluminação com que a Modernidade modela o real—, também só fora dela encontra verdadeiramente a sua intelecção. Nesta medida, o gabinete de curiosidades configura uma organização de mundo de matriz pré-científica, onde o sentido é definido não pela sua obediência necessária às determinações de um dado discurso, mas por associações de acaso, de proximidade espacial, por critérios de gosto, por afinidades ou dissemelhanças formais, etc. Aproximamo-nos, assim, de uma experiência de mundo onde se cruzam o campo da ciência e o da experiência estética. Estamos, sobretudo, no território onde o estético —isto é, aquilo que no sensível não é redutível à objectivação da lei ou da taxionomia— desconstrói qualquer pretensão à univocidade do discurso científico. A inscrição da arte no coração da ciência responde pela necessidade de não se confundir o mundo com a sua representação, de não se confundir a realidade com a imagem que dela nos possa ser dada por um qualquer discurso ou modelo
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de organização privilegiado. Sabendo embora que o mundo não é mundo sem a sua percepção representacional, nenhuma realidade é, de facto, redutível aos estritos quadros da sua formulação ou representação. O procedimento da arte é o de assumir e incorporar o processo de produção na identidade da própria representação, de assumir que os limites da representação são aqueles definidos pela linguagem na qual e através da qual alguma coisa é configurada. Nesta medida, o discurso de representação —modelação da imagem, da matéria ou da palavra— não é autónomo do objecto de representação: um e outro, sendo mutuamente irredutíveis, não são dissociáveis. O objecto enquanto objecto de representação não preexiste ao processo de formulação da representação, e a linguagem não é independente da sua actualização singular em cada obra. Nenhuma imagem —pintura, fotografia, ou outra— é a representação objectiva do seu objecto; este, enquanto objecto de representação segundo uma dada perspectiva discursiva, vê a sua realidade potenciada ou diminuída na proporção do sucesso ou insucesso da sua inscrição nessa linguagem. Nesta medida, nenhuma linguagem pode pretender-se o correlato neutro de uma dada ordem do real; estamos sempre diante da formulação perspectivística de uma reconfiguração do mundo. A noção do artista como criador não traduz nem a pretensão de uma criação ex nihilo, nem a de qualquer relação incondicionada com o real; traduz, antes, a assumpção da natureza artificial do seu trabalho. É enquanto artifício que o artefacto material ou conceptual a que chamamos arte afirma a sua identidade. Tal como a fossilização de uma planta —e o fóssil é, de certo modo, a representação natural da própria coisa, expressão da capacidade da natureza para produzir imagens de si mesma anteriores à consciência reflexa e à sua exteriorização enquanto constructo— opera pela substituição dos tecidos vivos por elementos minerais que retêm a sua configuração formal, a produção de uma representação opera pela substituição do tecido orgânico ou cultural por um correlato mais ou menos cristalizado. A mineralização do orgânico identificável ao nível do processo de fossilização encontra um duplicado no processo de produção fotográfica. A fotografia procede segundo um movimento de mineralização da luz, de cristalização de uma relação espaço-tempo, fixando uma dada perspectiva, uma dada aparência formal, num constitutivo desfasamento com a natureza mutável do seu objecto. É nesta relação de desfasamento entre o objecto e a representação que as práticas artísticas afirmam a sua especificidade enquanto modalidades de configuração do real; é nesta relação de desfasamento que a arte afirma e questiona o seu próprio poder. Se a ciência moderna se afirmou como instrumento de poder, e ainda que a
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coberto do ideal epistemológico de neutralidade, as formas de arte que lhe são contemporâneas desenvolveram com as diferentes instâncias de poder uma relação mais ambígua. Antes do mais, nunca as práticas artísticas possuíram verdadeiramente a capacidade de produzir representações das quais decorressem de um modo mais ou menos imediato correlatos técnicos; ao desvincular a produção artística do domínio de procedimentos técnicos altamente especializados —o desenho, a pintura, a escultura, etc.—, a arte moderna e contemporânea acentuou esta incapacidade. Neste sentido, qualquer que seja o poder da arte, ele não é, nem nunca foi, um poder-fazer análogo ao da ciência moderna. Excepto em casos particulares —pense-se numa disciplina como a arquitectura, mas mesmo esta exige o contributo técnico de disciplinas que lhe são exteriores— a arte está destituída do poder de transformação imediata. Isto não exclui a vinculação da arte a diferentes figuras do poder, seja enquanto poder derivado, por delegação de outras formas de poder, seja enquanto instância simbólica de legitimação do domínio de outros poderes. Numa perspectiva genealógica, o desenvolvimento das formas de arte não é independente da sua íntima articulação com os poderes dominantes no contexto histórico e cultural em que aconteceram. Das artes plásticas à música ou à literatura, a história da arte ocidental é em parte a história das suas relações com o poder religioso, político, ou económico. Esta é uma relação de dependência que, embora subordinasse grande parte da produção artística a pressupostos ou objectivos que lhe eram exteriores, forneceu, de facto, um contexto extremamente propício ao aperfeiçoamento de diferentes linguagens e modos de criação. Daqui poderia decorrer a afirmação de que a arte convive bem com o poder e com a opressão; em sentido inverso, decorre a afirmação de que, se a arte se aproxima do poder, fá-lo enquanto instância crítica, desconstruindo-o interiormente. Apesar de opostas, ambas as afirmações são compatíveis e sustentáveis: a arte convive bem com o poder —com a privação, com a censura, com a opressão: confirmam-no séculos de história da arte—, mas, nas mais conseguidas realizações, instala-se nele cumprindo programas que nunca coincidem inteiramente com os desse poder. Seja na figura da conivência ou do colaboracionista, seja na do outro do poder —um outro interior ou interactivo com o próprio poder—, a arte não é neutra, alheia ou independente das suas diferentes manifestações. Os caminhos, e os seus mortos, que os nossos passos pisam também foram configurados pelo olhar da arte. O ideal moderno da autonomia da arte pretendeu subverter esta relação, reclamando para ela quer a neutralidade da arte pela arte, quer a consciência crítica da arte ideológica ou politicamente comprometida. Em qualquer dos
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casos afirmava-se a pretensão à sua completa exterioridade face aos diferentes poderes. Ora, se o ideal da arte comprometida conduzia à aporia da conciliação entre comprometimento e a liberdade de criação, o ideal da arte pela arte tendia a expô-la de um modo acrescido aos diferentes condicionamentos externos. Assentando numa noção de autonomia predominantemente não relacional, nem um, nem outro modelo colocavam a questão no terreno onde ela poderá, talvez, obter resposta: as artes não são comprometidas —embora possam sêlo—, nem descomprometidas; não são um fim em si mesmas —embora possam pretendê-lo—, nem irremediavelmente heterónimas; as artes são linguagens que interagem com outras linguagens, são formas de configurar o real que interagem com outras formas de configurar o real, numa relação complexa de condicionamentos recíprocos. Tendo-se afastado do imperativo clássico da mimesis —que, em parte, era o correlato estético do modelo epistémico da adequação como critério de verdade—, a arte moderna e contemporânea afirma-se como processo de produção de constructos ou interacções representacionais de natureza perspectivística ou aleatória. Os trabalhos artísticos são hoje a emanação da consciência ou da intuição desse carácter aleatório, perspectivístico e subjectivo que configura o mundo em representação. A sua validade enquanto experiência e enquanto representação não é aferível segundo nenhum critério de adequação formal ou conceptual. A transfiguração do objecto enquanto obra de arte traduz uma outra forma de poder: não apenas o da operatividade física de modelação do mundo, mas já o da operatividade simbólica de um constructo que se instala no interior de um sistema de remissões semânticas que suportam a sua condição de objecto de excepção; isto é, a sua condição de objecto de curiosidade. O poder da arte —já não um poder-fazer de ordem predominantemente técnica, mas um poderdizer de ordem predominantemente simbólica— é aqui análogo ao espaço da pergunta: produz a excepção, mas exige a norma como instância de legitimação negativa; questiona as relações de poder, mas instala-se nelas segundo uma relação de simbiose e de parasitação.
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Monstro 2, 4., Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, p. 2518.
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paulo cunha e silva
uma pós-biografia vandelli depois de vandelli
Como pensar alguém? Como organizar um discurso em torno de quem queremos celebrar para além do mero registo hagiográfico? Como podemos falar do passado com sentido de futuro? Como podemos olhar a história não sendo todavia limitados pela possibilidade de lhe acrescentar algo? E que legitimidade existe para essa intervenção? Posso fazer um desenho sobre o passado, um risco, um traço, ou qualquer outra coisa? Não quero apagar a história, mas é possível deixar cair uma mancha de tinta sobre o passado sem que ele fique manchado? E quando falo da história de quem se notabilizou a fazê-la, não haverá uma responsabilidade quadrada nesta intervenção? Vandelli fez História Natural, e a História Natural é também a explicação da vida, a explicação das formas e do seu devir: é possível apor uma forma a estas formas? De que forma as formas dos artistas não fazem parte da História Natural? A História da Arte e a História da Cultura não são variações, capítulos da História Natural?
Col. Secção de Zoologia (MHN) FCTUC
Não gosto desta oposição natureza/cultura: a cultura não é sempre uma extensão da natureza, mesmo que seja uma extensão antinatural? Disseram-nos que a arte não era a vida, que não era o visível, mas o que é a arte senão a visibilização da vida que se coloca para lá do espectro visível? Vandelli foi químico e aqui, na procura desta radicalidade do funcionamento da natureza, na procura desta história do ínfimo presente, não haveria já o desejo de fazer História Natural, história da pequeníssima natureza de que a química trata? Ao dirigir as expedições filosóficas portuguesas não havia já em Vandelli essa vontade de descobrir a partir de uma interrogação essencial? A viagem sempre foi descoberta, mas a viagem como pergunta essencial não é um modo de antecipar o mundo e de fazer a história (natural) do futuro? E que tudo isto tenha partido de um médico, não revela uma relação especial com a dor do mundo? Como se o sofrimento para ser minorado não tivesse que ser primeiro identificado? É também de identificação que esta exposição trata, de identificação de uma personalidade a partir de uma conjunto de objectos que com ela se relaciona de uma forma mais óbvia ou mais oblíqua; mas como é possível fixar a personalidade de alguém? E na impossibilidade de a fixar, não será legítimo irmos um pouco mais além e transformarmos a biografia numa pós biografia? Não é legítimo ficcionarmos a personalidade de Vandelli a partir dos objectos arquetípicos, mas depois solicitarmos a intervenção transfiguradora dos artistas? É essa a pergunta que fazemos: quem é Vandelli depois de Vandelli?
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João Leonardo. White cube. 2007.
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índice
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resumo, paulo bernaschina ex.mo sr. vandelli, inês moreira carta ao dr. domingos vandelli, eduardo proença-mamede carta do dr. vandelli a eduardo mamede, eduardo proença-mamede domingos vandelli
- uma biografia transnatural, eduardo proença-mamede
curiosidades da fotografia no paço da boavista, alexandre ramires carta do bispo - conde d. francisco de lemos, eduardo proença-mamede porque antes de se saber o uso e préstimo das coisas é necessário conhecê-las, maria arminda miranda, maria do rosário martins, manuel laranjeira r. de areia
85 95 105 107 123 135 145 149 181 193
carta do abade correia da serra para vandelli, eduardo proença-mamede homo mineralis (indelével presença), catarina pires carta do dr constantino botelho ao dr. vandelli, eduardo proença-mamede o apelo da fantasia das
“utopias” nas práticas da ciência moderna, a. m. amorim da costa
carta do dr. dalla bella ao dr. vandelli, eduardo proença-mamede o apocalipse de domingos vandelli, maria estela guedes carta do padre sobral ao dr. vandelli, eduardo proença-mamede a química de domingos vandelli: uma arte ou uma ciência?, sebastião j. formosinho a humanidade dos monstros: domingos vandelli ou o chão que os passos pisam, hélder gomes uma pós-biografia vandelli depois de vandelli, paulo cunha e silva
Agradecimentos
Amélia Loução Ana Eiró Ana Isabel D. Correia
João da Providência Jorge Simões Lina Carvalho
Ana Luisa Janeira
Maria do Carmo Serén
Ana Luisa Santos
Maria Filomena Molder
Anabela Amaral António Manuel Simões António Pacheco António Pedro Pita António Poiares Baptista Arménio Matos
Maria José Tavares Manuel Janeira Margarida Jardim Maria Graça do Vale Neto Brandão Paulo César
César Gouveia
Paulo Passeiro
Dina Luís
Pedro Callapez
Ermelinda Antunes Fábio Feliciano Barbosa Filipe Campelo Francisco Castro e Sousa Helena Caldeira i.esteve Isabel Rebelo
Pedro Redol Ricardo Paredes Sérgio Gomes Sónia Silva Teresa Alcovia Thereza Baumann Teresa Baptista
Jacinto Godinho
Teresa Gonçalves
Joana Pimentel
Tiago Viegas Dias
João Apolinário
Victor Murtinho
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Título Gabinete Transnatural de Domingos Vandelli Coordenação Editorial Paulo Bernaschina Comissários Paulo Bernaschina, Paulo Cunha e Silva, Victor Pinto da Fonseca Design Pedro Formosinho e Paulo Bernaschina Créditos Fotográficos António Moreira Pires, Paulo Bernaschina, Paulo Mora Capa (fotografia) Jorge Molder. S/ título. 1987. Editora Produção Gráfica - Multitema ISBN 978-972-99912-4-0 Depósito Legal XXXXXXXX 2008|©Paulo Bernaschina Museologia Museu de Anatomia Patológica (FMUC) Museu de Física (FCTUC) Museu Nacional de História Natural / JBUL Museu Nacional de Machado de Castro Secção de Antropologia (Museu de História Natural / FCTUC) Secção de Botânica (Museu de História Natural / FCTUC) Secção de Mineralogia e Geologia (Museu de História Natural / FCTUC) Secção de Zoologia (Museu de História Natural / FCTUC) Galeristas e Coleccionadores António Duarte António Ramires Fundação ProJustitiae Graça Brandão Pedro Cabrita Reis Pedro Cera Victor Pinto da Fonseca
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foi impresso na Gráfica Multitema no mês de Setembro de Dois Mil e Oito