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Itinerário Formativo Da ética Do Discurso De Karl Otto Apel

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonio Wardison Canabrava da Silva ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO DE KARL OTTO APEL Mestrado em Filosofia SÃO PAULO 2013 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonio Wardison Canabrava da Silva ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO DE KARL OTTO APEL Mestrado em Filosofia Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do Prof. Dr. Ivo Assad Ibri. SÃO PAULO 2013 BANCA EXAMINADORA __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ In memoria, Lucivalda C. Silva, minha mãe. IV AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela presença em todos os momentos da minha vida e, em particular, pela força concedida ao longo de todo este curso de Mestrado. Muitos desafios e desânimos me acompanharam nesta empreitada, como também muitas alegrias e novas perspectivas. Por isso, sou grato a muitos amigos que me ajudaram a alcançar este tão esperado sonho: ao Prof. Ivo Assad Ibri, pela sua maestria e nobreza intelectual, orientação e humildade; ao Prof. José Luiz Zanetti, pelos longos diálogos e perspicácia filosófica, aprendizagem e partilha de vida; ao Prof. Antonio J. R. Valverde, pela sua apreciação e contribuição nesta dissertação; ao Prof. José Moacir de Aquino, pela sua honrosa presença e ajuda ao longo da minha formação acadêmica, em particular pelas sublimes orientações filosóficas; aos meus familiares, pelo encorajamento e orações; aos salesianos Pe. Lauro T. Shinohara e Ronaldo Zacharias que, em seus nomes, agradeço a todos os salesianos pela minha formação humana, espiritual e acadêmica; aos padres José Spinola e Cézar Teixeira, pela ajuda, presença e torcida pela minha carreira acadêmica; aos amigos Ideylson dos Anjos, Fernando Zanatta e Junior Ribeiro, pela partilha de vida e de utopias, principalmente nos momentos mais delicados da nossa aventura em uma “terra desconhecida”; aos amigos Pe. Maurício Cruz, Pe. Humberto Carvalho, Pe. Eduardo Capucho, Pe. João Mendonça, Pe. Antonio C. Galhardo, Herivelton Breitenbach, Marcelo Pereira, Edi Morato, Marcelo Madeira, Francisco Razzo, Rodrigo Almeida e à comunidade educativa do Colégio Passionista São Paulo da Cruz, pelo apoio e entusiasmo. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – pelo financiamento em grande parte desde curso, como também pelos amigos do Programa de Filosofia e do Centro de Estudos de Pragmatismo, PUC-SP. Em síntese, agradeço a todos os amigos que, direta ou indiretamente, me deram suporte para a realização deste honroso Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. V “A reflexão transcendental-hermenêutica sobre as condições de possibilidade do acordo mútuo linguístico em uma comunidade ilimitada de comunicação parece fundamentar a unidade da prima philosophia como unidade da razão prática e teórica”. Karl Otto Apel VI RESUMO Esta dissertação se propõe identificar e analisar o itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. Nesta perspectiva, a pesquisa, de caráter analítico-crítico, parte de um questionamento que norteará toda sua reflexão: qual o caminho percorrido por Apel para elaborar seu postulado ético? Este questionamento buscará compreender como Apel arquiteta uma ética racional em meio às discussões travadas com filósofos modernos e contemporâneos. Para cumprir esta tarefa, o primeiro capítulo irá analisar o problema de uma fundamentação ética na era da ciência, caracterizada pela situação do ser humano como problema ético, pela paradoxalidade de carência e abnegação de uma ética racional e pelas correntes filosóficas que desafiam a fundamentação da ética, a saber: a moderna filosofia analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o decisionismo de Hans Albert, as racionalidades e postulados éticos de Max Weber e o solipsismo metódico. O segundo capítulo apresentará a transformação hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental, ao analisar a perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão, a virada hermenêutica de transformação da filosofia transcendental e, com isso, a fenomenologia de Heidegger e Gadamer, assim como a crítica apeliana a esses dois pensadores, a transformação semiótica da filosofia transcendental instaurada por Peirce, o postulado da comunidade de experimentação e interpretação e a crítica de Apel ao cientificismo peirciano e o conceito transcendentalhermenêutico segundo a compreensão de Apel. O terceiro capítulo apresentará a arquitetura da Ética do Discurso, compreendida pela sua dimensão pragmático-transcendental, as partes “A” (ideal) e “B” (real) da ética discursiva e a dialogicidade existente entre elas, a reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia, e a particular contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética apeliana e, por fim, a relevância da Ética do Discurso para o mundo contemporâneo. Em suma, esta dissertação procurará identificar e analisar o caminho percorrido por Apel para a elaboração da sua proposta ética filosófica. Palavras-chave: Ética do Discurso. Linguagem. Transcendental. Universal. Responsabilidade. VII ABSTRACT This thesis aims to identify and analyze the itinerary that led Karl Otto Apel to his Ethics of Discourse. In this perspective, this research, which is critical-analytical in character, departs from an inquiry that will guide his whole reflection: what is the way that was covered by Apel to elaborate his ethical postulate? This inquiry will try to understand how Apel built a rational ethics amid discussions waged with modern and contemporary philosophers. So as to accomplish this task, Chapter One will analyze the problem of the ethical grounding in the Age of Science, characterized by the situation of the human being as an ethical problem, due to the paradox of the dearthiness and abnegation of a rational ethics and due to the philosophical currents that defy a possible ethical grounding: modern Analytical Philosophy, Wittgenstein’s Logic of Science, Hans Albert’s Decisionism, Max Weber’s Rationality and Ethical postulates, and methodological Solipsism. Chapter Two will present the hermeneutical-semiotic transformation of Transcendental Philosophy, by analyzing Apel’s critical perspective regarding the Kantian factum of Reason; the Hermeneutical Turn in the transformation of Transcendental Philosophy and, with that, Heidegger’s and Gadamer’s Phenomenology, as well as Apel’s critique of those two thinkers; the Semiotic transformation of Transcendental Philosophy brought about by Peirce, the postulate of the Community of Inquiry and Interpretation, and Apel’s critique of Peirce’s Scientifism and the Transcendental-Hermeneutical concept according to Apel’s understanding. Chapter Three will present the architecture of Apel’s Ethics of Discourse, understood by its Pragmatic-Transcendental dimension, the “A” (ideal) and “B” (real) parts of his Ethics of Discourse and the existing dialogicity between, the transcendental reflection as philosophy’s last grounding, and Kohlberg’s particular contribution to Apel’s ethical grounding; and, lastly, the relevance of Apel’s Ethics of Discourse to the contemporary world. In sum, this thesis will try to identify and analyze the course covered by Apel to elaborate his ethical-philosophical proposal. Key-words: Ethics of Discourse. Language. Transcendental. Universal. Responsibility. VIII SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 01 I – PROBLEMA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA NA ERA DA CIÊNCIA.... 07 1.1 A situação do ser humano como problema ético ............................................................. 07 1.2 A paradoxalidade da situação problema: exigência de uma ética racional de responsabilidade solidária...................................................................................................... 10 1.3 Posições teóricas que desafiam a fundamentação de uma ética racional ........................ 14 1.3.1 A moderna filosofia analítica ........................................................................... 15 1.3.2 A lógica da ciência de Wittgenstein .................................................................. 21 1.3.3 O decisionismo de Hans Albert ........................................................................ 28 1.3.4 Max Weber: racionalidades e postulados éticos .............................................. 32 1.3.5 O solipsismo metódico ...................................................................................... 37 II – TRANSFORMAÇÃO HERMENÊUTICO-SEMIÓTICA DA FILOSOFIA TRANSCENDENTAL ........................................................................................................ 43 2.1 A perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão ..................................... 43 2.2 A perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental ..................... 49 2.2.1 O novo paradigma da filosofia: a fenomenologia-hermenêutica de Heidegger e Gadamer .................................................................................................................... 52 2.2.2 A perspectiva crítica de Apel à filosofia hermenêutica de Heidegger e Gadamer ................................................................................................................................... 56 2.3 A transformação semiótica da lógica transcendental kantiana ........................................ 66 2.3.1 O postulado da comunidade de experimentação e interpretação .................... 70 2.3.2 A crítica de Apel ao cientificismo de Peirce ..................................................... 76 2.4 O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel ........................... 80 III – ARQUITETURA DA ÉTICA DO DISCURSO ....................................................... 86 3.1 A compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso................................... 86 3.2 A estrutura da Ética do Discurso ..................................................................................... 90 3.2.1 A dialogicidade entre a comunidade ideal (parte “A”) e a comunidade real (parte “B”) da Ética do Discurso ............................................................................. 94 IX 3.3 A reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia ................................ 99 3.3.1 A contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva ......... 104 3.4 A relevância da Ética do Discurso ................................................................................... 109 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 115 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................... 121 1 INTRODUÇÃO O filósofo e professor emérito da Universidade de Frankfurt, Karl Otto Apel (1922 – Düsseldorf), tem se destacado no mundo contemporâneo por sua extraordinária reflexão e elaboração de uma proposta filosófica para a filosofia hodierna, como transformação de todo legado filosófico tradicional. Sua extensa vocação pela história e pela filosofia, além do interesse singular pelas línguas clássicas bem como pelas atuais, o fez artífice de uma sólida formação acadêmica, inclinada aos estudos da linguagem, da hermenêutica e da ética. Apel recebeu grande influência do humanismo renascentista e, por isso, interessou-se pela cultura, linguagem, arte e política deste período histórico. Suas primeiras reflexões terão um caráter eminentemente hermenêutico, que o permite pensar a linguagem, a história e a filosofia. 1 Apel estudou história, especializou-se em literatura e, logo depois, dedicou-se, com Erich Rothaker, a estudar a filosofia da existência, concluindo uma tese doutoral, com o tema “O Dasein e o conhecer: uma interpretação teórico-cognitiva da filosofia de Martin Heidegger”. Nos anos 50 inicia seus estudos na corrente analítica anglo-saxã (com Charles Morris). Depois, emprega esforços na filosofia da linguagem, porém ainda numa perspectiva antropológica e não ética. Investe nos estudos hermenêuticos de Heidegger e Gadamer e na filosofia de Wittgenstein, sempre a partir de uma análise crítica e de uma perspectiva de superação. Com a admissão de Habermas, aluno e amigo, no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, em 1956, Apel desenvolve sua consciência política. E, através de seus estudos de Charles S. Peirce, atinge o ápice da crítica à filosofia kantiana e ao fundamento do seu pensamento filosófico. Entre 1967 e 1972 desenvolve sua tese acerca da pragmáticatranscendental, que será publicada como Transformação da Filosofia, ao dar sequência a um itinerário salutar de inúmeras discussões filosóficas até alcançar uma fundamentação última da ética. Ainda neste período, trava uma discussão com os popperianos e com a filosofia da linguagem, particularmente com o primeiro e o segundo Wittgenstein. Na década de 80, procura confrontar-se com a filosofia mais atual, como o pensamento de Derrida, Lyotard e Rorty.2 Nos anos que seguem, procura consolidar o seu pensamento e defender uma filosofia de caráter transcendental-pragmático-semiótico. 1 Cf. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y Responsabilidad. In APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidos, 1998, p. 9. 2 Cf. DUSSEL, Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 2 Ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 182-183. 2 Convicto da responsabilidade como filósofo, Apel encara a filosofia como tarefa específica e necessária para a reflexão acerca da humanidade e do mundo e, por isso, é rigoroso quanto ao método, critérios de comprovação e resultados próprios da filosofia, ainda mais diante do paradigma relativista e cientificista da era tecnológica. Neste sentido, Apel constrói não um sistema filosófico, mas uma proposta filosófica própria, elaborada arquitetonicamente e capaz de dar respostas específicas para os problemas do mundo globalizado: “sem dúvida, Karl Otto Apel é um pensador original que capta os diversos níveis de uma transformação da filosofia contemporânea”.3 Sua filosofia comporta, particularmente, uma antropologia do conhecimento, uma hermenêutica e uma pragmática transcendental, uma semiótica, uma teoria consensual da verdade e uma ética discursiva, em diálogo com a sociedade, com a política, com a economia e com a ecologia. Por isso, sua perspectiva filosófica se caracteriza pela longa discussão com os principais pensadores da filosofia moderna e contemporânea, como também com o debate às principais correntes filosóficas desse contexto histórico: pelo diálogo com Kant, Wittgenstein, Weber, Heidegger, Gadamer, Peirce, Habermas, o positivismo, o cientificismo, a filosofia analítica, entre outros. Ao se referir à teoria consensual da verdade, Apel defende uma teoria da evidência da correspondência, que terá grande expressão na mediação entre a evidência referida à consciência e a intersubjetividade referida à linguagem; quanto à pragmática, acena para um viés transcendental, que lhe permite pensar um método para a comprovação da verdade e diálogo com as ciências. O método transcendental estará caracterizado pelo seu alcance universal, validade, verificabilidade e contradição performativa. Elementos que, segundo Apel, conduzem a filosofia para uma fundamentação última, uma vez que os seus pressupostos pragmáticos transcendentais da argumentação sejam observados e insuperáveis; quanto à ética, parte da argumentação como possibilidade de toda fundamentação moral, na tentativa de fundar uma ética racional (constituída pelas partes “A” e “B”4) e aplicável ao mundo real; e, quanto à perspectiva da hermenêutica filosófica, se apoia em grandes colunas do pensamento filosófico, como Heidegger e Gadamer, embora, depois, procure superá-los, e Austin e Searle, mas sem deixar-se contagiar pela filosofia anglo-saxônica. Particularmente, Apel desenvolverá uma proposta filosófica fenomenológico-hermenêutica, de alto teor reflexivo, em busca da compreensão e validade da verdade, embasada pelo questionamento 3 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, p. 182. Apel arquiteta sua proposta ética em duas partes: a parte “A” corresponde à comunidade ideal de comunicação, portadora de validade das verdades tomadas em consenso; a parte “B”, à comunidade real de comunicação, historicamente situada e responsável pela aplicabilidade das normas. 4 3 kantiano acerca das condições de possibilidade e validade do conhecimento, que é a pergunta pelo critério da validade do conhecimento. Neste sentido, fundamentação, universalidade, critérios e argumentação são a base de toda a sua proposta filosófica rigorosa, compromissada em livrar os indivíduos do dogmatismo e do irracionalismo. Nesta base, é possível erguer uma cultura e oferecer mecanismos racionais de ação, para impedir que Auschwitz não mais aconteça!5 Apel empregará grandes esforços para pensar e construir uma ética solidária para o mundo atual, caracterizado pelo perigo de destruição em massa. Com a publicação do O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética, em 1973, sua reflexão ética toma solidez e decola em um crescente processo de desenvolvimento e fundamentação, até elaborar a Ética do Discurso, tão difundida e estudada na filosofia atual: uma ética fundada no a priori da comunidade ilimitada de comunicação, que surge como critério supremo de valorização da hermenêutica, do acordo intersubjetivo e das ciências sociais críticas. A Ética do Discurso, de acordo com Apel, situa-se em contexto histórico marcado por profundas transformações do mundo atual: de um lado, refere-se ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; de outro, refere-se à necessidade de uma ética responsável e de alcance universal. Surge, então, a necessidade de um novo marco teórico capaz de pensar comunitariamente os problemas éticos globais. Este marco tornou-se possível com a evolução da filosofia da linguagem na metade do século XX. Com isso, considerada como medium indisponível de toda reflexão, a linguagem “tornou-se conhecida como ‘linguistic turn’ e forçou um pensamento de todos os problemas filosóficos”.6 Com Karl Otto Apel, a linguistc turn atinge o ápice: “em seu pensamento, em primeiro lugar, vai-se esclarecer o caráter propriamente filosófico desse movimento reflexivo em sua distinção com considerações da ordem das ciências empíricas a respeito da linguagem humana”; 7 em segundo, mostrará que a linguagem não se constitui como objeto na reflexão filosófica, mas sim como o veículo de transformação da própria filosofia.8 E é neste horizonte que Apel fundará a Ética do Discurso, como uma ética intersubjetiva portadora de linguagem (como medium de todo entendimento), 5 Cf. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y Responsabilidad, p. 11-16. Este é o período de 1940 que marca uma frustrante experiência do jovem Apel (com 18 anos), quando serviu o exército nazista como voluntário, o que fará dele, segundo Dussel, um racionalista decidido, um ético sensível e com alta responsabilidade histórica. Cf. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, p. 182. 6 HERRERO, Javier. Ética do Discurso. In OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 163. 7 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática. São Paulo: Loyola, 1996, p. 249. 8 Cf. Ibid., p. 249. 4 solidária e universal, capaz de pensar os desafios da humanidade e dar uma resposta plausível para o mundo da ciência e da técnica. Ainda mais, a Ética de Karl Otto Apel está fundada em um momento em que o positivismo fracassa diante de problemas axiológicos e a filosofia analítica, ao desconsiderar a ética tradicional, inaugura uma metaética de descrições das regras do discurso moral. Assim, a neutralidade axiológica da ciência, associada à filosofia analítica e ao subjetivismo existencial se completam, sem oferecer qualquer possibilidade de uma fundamentação última para a filosofia e, dessa forma, postular uma ética capaz de refletir e orientar o homem diante dos graves problemas do mundo atual, como o risco de colapso do universo e da destruição das espécies. Diante de toda essa situação, Apel lança alguns questionamentos, considerados por ele de extrema relevância: e se a comunidade que forma o horizonte da ciência pressupusesse uma ética de alcance universal? Com isso, como não enfocar a necessidade de uma fundamentação racional da ética? É possível fundar um imperativo moral a partir de uma comunidade de comunicação? Nesta perspectiva, em busca de conhecer os fundamentos da Ética do Discurso, a presente dissertação, de caráter bibliográfico-analítico e crítico, tem o objetivo de identificar e analisar o itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. E, para isso, irá se nortear pela seguinte questão: qual o caminho percorrido por Apel no propósito de arquitetar a Ética do Discurso para o mundo da técnica e da ciência? Esta indagação acompanhará toda reflexão da dissertação, seja para situar o problema de uma fundamentação ética na era da ciência e, com isso, explicitar a discussão de Apel com a filosofia moderna e contemporânea, seja para demonstrar as bases sólidas de fundamentação da ética discursiva, que também está caracterizada por um exercício de superação das filosofias em diálogos com Apel, e, até mesmo, para apresentar a arquitetura da Ética do Discurso que, embora represente o específico do pensamento apeliano, expressa as perspectivas filosóficas incorporadas por Apel no conjunto de sua proposta filosófica. Para tanto, a pesquisa tem o compromisso de identificar, explicitar e analisar criticamente os elementos envolvidos no itinerário formativo da Ética do Discurso. Mesmo sabendo do desafio proposto, o texto tentará apresentar as principais questões, análises e respostas apelianas acerca de suas discussões filosóficas. Esta dissertação, portanto, tem como centro de toda a sua especulação refletir o itinerário filosófico de Apel em busca de uma ética racional. Por isso, toda análise apresentada, embora faça parte do todo do pensamento de 5 Apel, está, particularmente, direcionada para a construção da ética discursiva de Apel. Assim, o itinerário é a “espinha dorsal” desta dissertação; a ética, o seu fim. O primeiro capítulo abordará os problemas que comprometem a fundamentação da Ética do Discurso na era da ciência e da técnica. Seu objetivo é explicitar e analisar o giro que Apel faz pela filosofia moderna, porém com alto grau de profundidade, e sua eficaz discussão com os principais modelos filosóficos deste período histórico. A reflexão parte da apresentação da situação do ser humano como problema ético para a humanidade, o desenvolvimento da concepção moral do homem, e, com isso, do seu presumido poder de destruição e desintegração social pelo uso da razão técnica. Após, procura mostrar a paradoxalidade da situação ética do mundo contemporâneo, ora carente de uma ética universal em prol da sobrevivência de todos, ora desprovida de fundamentação. O texto segue apresentando as correntes filosóficas que desmobilizam a fundamentação última de uma ética racional, a saber: a moderna filosofia analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o decisionismo de Hans Albert, as racionalidades e os postulados éticos de Max Weber e, por fim, o solipsismo metódico. O objetivo é demonstrar como Apel considerou a fragilidade e a irracionalidade dessas teorias, como incapazes de fundamentar uma ética para a sociedade na era científica. O segundo capítulo discutirá, por meio de uma análise crítica, a transformação hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental. Reflete os fundamentos da filosofia apeliana e a base do seu legado ético-filosófico, as concepções filosóficas que nortearam seu pensamento ao encontro de sua proposta filosófica. A análise começa por destacar a perspectiva crítica de Apel acerca do factum kantiano da razão, ao identificar os elementos kantianos superados e absorvidos por ele; após, apresenta a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental, realizada por Heidegger e Gadamer e a perspectiva crítica de Apel à filosofia hermenêutica desses dois filósofos; a reflexão segue com a análise da transformação semiótica da filosofia transcendental instaurada por Peirce, que será incorporada e assumida por Apel como o ponto mais relevante de toda virada kantiana. Nesta tentativa de superação, apresenta-se o postulado da comunidade de experimentação e interpretação, como também a crítica de Apel ao suposto cientificismo de Peirce. E, por fim, apresenta o conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel, que é, particularmente, o pensamento próprio do Autor, já consolidado, após ter transitado e superado as perspectivas filosóficas desses expoentes pensadores da filosofia. 6 O terceiro capítulo apresenta a arquitetura da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. Inicia pela análise e compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso; segue ao apresentar a estrutura da ética discursiva, caracterizada pelas partes “A” (ideal, de fundamentação) e “B” (real, de responsabilidade) e, com isso, a dialogicidade e coerência lógica entre elas, como também a possibilidade de aplicação das normas ao mundo histórico. E, com o propósito de demonstrar o ponto alto do pensamento apeliano – e em referência à ética – a dissertação ambiciona explicitar a reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia, e a contribuição de Kohlberg para a consolidação desta perspectiva. Por fim, o capítulo analisa alguns elementos que evidenciam a relevância da Ética do Discurso para o mundo contemporâneo. Em suma, a presente dissertação, de maneira sistemática, quer mostrar e analisar criticamente o itinerário percorrido por Apel em busca dos fundamentos e da estrutura da Ética do Discurso. Sistemática porque procura, a partir das principais obras de Apel e de comentadores de sua proposta filosófica, identificar, explicitar e analisar o ponto central de sua discussão, em referência a pensadores e correntes filosóficas: concentrar a discussão que Apel realiza com seus principais adversários e colaboradores da sua proposta ética. Tarefa, esta, não fácil, uma vez que Apel, em seus textos, procura abordar os problemas e discuti-los com vários pensadores e perspectivas filosóficas, ao mesmo tempo. 7 I CAPÍTULO PROBLEMA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA NA ERA DA CIÊNCIA Segundo Karl Otto Apel, a fundamentação de uma ética racional para o mundo contemporâneo tornou-se tarefa urgente para a filosofia. Trata-se não somente de construir um postulado ético de responsabilidade global, mas de criar novas bases de fundamentação filosófica capazes de pensar o agir humano, os seus desafios e a construção de uma sociedade solidária. Para alcançar tal propósito, Apel percorre um longo caminho de discussões filosóficas com a finalidade de, ao demonstrar a fragilidade e os limites da filosofia tradicional (moderna), fundar uma moral consistente e aplicável ao mundo histórico. Com isso, Apel trava uma discussão com a moderna filosofia analítica; com a lógica da ciência de Wittgenstein; com o decisionismo de Hans Albert; com as racionalidades e postulados éticos de Max Weber; e com o solipsismo metódico. Nesta perspectiva, o presente capítulo quer mostrar, de acordo com Apel, a problematização para a constituição de uma ética filosófica na era da ciência e da tecnologia, caracterizada pela atual situação de crise e paradoxalidade. 1.1 A situação do ser humano como problema ético Segundo Karl-Otto Apel, o mundo atual enfrenta uma crise da razão moral, evidenciada pelo perigo constante do extermínio da humanidade e da biosfera: a destruição em massa da sobrevivência planetária. Com isso, Apel afirma que a situação humana é um problema ético para o ser humano:9 a situação de colapso, provocada pelo homem, atinge a humanidade como um todo. Diante desta realidade, a humanidade é convocada a pensar os problemas comuns que atingem sua sobrevivência e, com isso, desafiada a construir, coletivamente, uma ética de responsabilidade moral em âmbito geral. Não há dúvida, segundo Apel, que esta situação necessita de uma macroética capaz de “organizar a responsabilidade da humanidade ante os efeitos principais e colaterais de suas ações coletivas em medida planetária”.10 Não obstante, conforme Apel, a situação do homem como problema ético para a humanidade não é singular ao atual mundo da técnica e da ciência.11 Desde a Bíblia, em sua 9 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 188. Ibid., p. 188. 11 Cf. Ibid., p. 188. 10 8 linguagem mítica, já se relatava a queda pecaminosa do primeiro homem e, posteriormente, sua sabedoria em poder distinguir o bem do mal. Esta realidade, como entende Apel,12 fora interpretada por Kant de forma teórico-evolutiva, da passagem de uma natureza animal para a humanidade; do instinto para a razão; da tutela da natureza para a liberdade.13 Para Apel, esta interpretação teórico-evolutiva pode ser compreendida da seguinte maneira: “pela invenção de ferramentas e armas o homem suspendeu a correspondência, organicamente condicionada, entre o ‘mundo sensível’ de sua percepção sensitiva e o ‘mundo causal’ dos possíveis efeitos de sua ação”.14 Isso quer dizer: “o possível efeito de suas ações ultrapassa fundamentalmente o possível controle da conduta por desencadeadores do comportamento, de natureza especificamente sensitivo-emotiva. Isto vale, sobretudo, para o desrecalque de inibições instintivo-residuais de homicídio”.15 Procede que o homem ao assustar-se diante das consequências de sua ação (como o homicídio de Abel por Caim), encontra a consciência de pecado ético-religiosa, que também pode ser identificada na relação do caçador ante a caça abatida, do agricultor ante a fertilidade da terra explorada.16 Com isso, Apel quer dizer: o homo faber, ao superar suas barreiras sensitivas e ao intervir no meio natural pelas ferramentas criadas (contra animais e contra o próximo), parece ter atingido a consciência moral, no sentido de reparação, retribuição e reconciliação. Esta condição, de criação de uma consciência moral, resultou (nas altas culturas euro-asiáticas) na concepção de uma consciência ética, no sentido das grandes religiões e da filosofia.17 Na era posterior da técnica e da ciência, a diferença entre o “mundo causal” do homem e seu mundo perceptível sensitivo-emotivo, desponta para um novo significado daquele empregado na história mítica religiosa. Se antes os efeitos da ação humana eram acionados por uma consciência de pecado (instintivo-emocional), de maneira imediata, agora sua ação está referida à responsabilidade da razão, não tão imediata devido à amplitude espacial e temporal das ações coletivas dos homens.18 Pois a técnica, produtora de armas 12 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 188. Cf. KANT, Immanuel. Começo conjectural da história humana. Trad. Edmilson Menezes. São Paulo: UNESP, 2010, p. 24. 14 APEL, op. cit., p. 188. 15 Ibid., p. 188. 16 Cf. Ibid., p. 188-189. 17 Cf. Ibid., p. 189. 18 “O ‘pecado original’ que acompanha o desenvolvimento humano, quer dizer, a quebra dos limites animais instintivos, pode ser concebido como o começo de um permanente desafio à ‘razão’ compensadora do ‘homo sapiens’ à razão prática, por parte dos resultados da ‘razão’ técnica do ‘homo faber’. Desde a invenção da pedra e do fogo até a técnica nuclear, a razão técnica, que tem aumentado o alcance e o risco das consequências da ação humana, avançou-se à razão prática,como instância do controle moral da ação e da responsabilidade, e tem 13 9 humanas, aumentou, cada vez mais, seu potencial de domínio e destruição da natureza; a força de produção alargou os problemas dos recursos naturais; a força econômica produziu um maior potencial de guerra entre as nações; o progresso das civilizações provocou o desequilíbrio da natureza.19 “E é justamente o enorme desenvolvimento atual das ciências e da técnica que nos leva a colocar, de modo mais urgente do que nunca, o problema da responsabilidade da razão”,20 que consiste na razão prática. Diante dessa situação, segundo Apel, “com a ajuda da ‘razão prática’, [o homem pode] dar uma resposta para uma situação que ele mesmo criou, em sua essência, com base na ratio técnica”.21 A razão prática, segundo Apel, é capaz de superar a razão técnica22 e postular normas universais para a humanidade e, com isso, inibir a razão técnica do homo faber em favor de uma razão mediada, portadora de responsabilidade, do homo sapiens.23 Pois este, embora esteja temporalmente distante do homo faber, carrega consigo os problemas da moralidade pelo uso da técnica (por sua vez, ambos superaram o condicionamento históricogenealógico, pois adquiriram a liberdade diante do determinismo e alcançaram a moralidade, à luz de princípios éticos da razão). Com esta ilustração, Apel apresenta a situação do homem na história atual, como também sua própria condição natural. Surge, portanto, a seguinte questão: como é possível, a partir da real situação histórica do homem e de sua genealogia moral, deduzir a necessidade de uma responsabilidade ética? Para situar tal questão, Apel lança a tese que todo aquele que filosofa deve reconhecer uma norma ética fundamental:24 reconhecer que o indivíduo, com possibilidade de sentido de linguagem e de verdade, só pode alcançar as pretensões humanas de sentido e de verdade se sustentado pela argumentação numa comunidade ilimitada de enfrentado tarefas totalmente novas. E aqui o aumento das distâncias e a mediação técnico-instrumental dos efeitos da ação teve como conseqüência que a responsabilidade moral baseou-se cada vez menos em sentimentos espontâneos instintivo-residuais e, em crescente medida, tem sido assumida por uma consequência obtida através da mediação da racionalidade”. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos. Trad. Carlos de Santiago. México, D. F.: Ediciones Coyocán, S. A., 2004, p. 109. 19 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 108. 20 HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 164. 21 APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 189. Ao contrário, segundo Adela Cortina ao referir-se a Erich F. Schumacher, o problema instaurado na história, do perigo de morte de todo o planeta, não se deve à ciência e nem à técnica, pois elas são meios. O problema está na razão prática, nos fins que ela procura atingir: os problemas são de fins e não de meios. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária – Etica y política em K.O Apel. 2 Ed. Trad. Salamanca-Espanha: Sígueme, 1988, p. 26. 22 A razão técnica consiste na ação do indivíduo, particular, em criar soluções para seu proveito e habitat circunstancial, sem responsabilidade efetiva dos seus feitos. Ao contrário, a razão prática é pautada, por natureza, pela ação comunicativa, na tentativa de criar soluções em âmbito comunitário global, de responsabilidade social e com validade universal. 23 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 27. 24 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 191. 10 comunicação; reconhecer também que ele, como argumentante e na qualidade de igualdade perante os outros, já pressupõe uma comunidade ideal de comunicação cuja ação prescreve a resolução das diferentes opiniões pelo consenso. A norma ética fundamental consiste, portanto, “no estar obrigado à metanorma da argumentativa formação de consenso sobre normas situacionalmente relacionadas”.25 Com isso, Apel pretende afirmar que o discurso é a instância ideal de fundamentação e validação de normas éticas problematizadas: “foi reconhecida a assimetria na relação do discurso argumentativo com todas as demais formas de comunicação e de vida. Somente no âmbito e com base nas regras de jogo do discurso podem ser fundamentados juízos válidos”.26 1.2 A paradoxalidade da situação problema: exigência de uma ética racional de responsabilidade solidária Nos tempos atuais, segundo Karl Otto Apel, a reflexão acerca da fundamentação ética nunca foi tão complexa e, ao mesmo tempo, paradoxal. Por um lado, evidencia-se a carência de uma ética universal, fruto das consequências da ciência tecnológica em larga escala; por outro, a abnegação de uma fundamentação filosófica para a ética racional, dada pela relativização e neutralidade axiológica da técnica, assim como pela renúncia da intersubjetividade nos procedimentos científicos.27 Segue-se que, com Apel, a carência de uma ética universal evidencia-se pelas consequências que a tecnologia e a ciência trouxeram ao planeta e às relações humanas, ao colocar em risco a sobrevivência das espécies. Diante desta situação de colapso, notou-se que os problemas morais não mais se referem aos pequenos grupos, pois eles não conseguem regulamentar a convivência humana, nem manter-se isolados na luta pela sobrevivência. Não obstante, ao observar a microesfera (família, vizinhança etc.), a mesoesfera (política nacional) e a macroesfera (destino da humanidade), nota-se que as normas ainda estão regidas pelas duas primeiras esferas: uma, pelo caráter íntimo de regulamentação, outra pela ganância de grupos de poder. No entanto, ao analisar os efeitos da ação humana, na eminente sociedade industrial, a ameaça que contagia a biosfera pelo uso da técnica, como a fabricação da bomba atômica; o desequilíbrio provocado pelo mercado internacional, a poluição ambiental e a degradação dos recursos naturais, convém afirmar, segundo Apel, que tais perigos não se 25 APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 192. Ibid., p. 192. 27 Cf. Ibid., p. 69. 26 11 restringem à micro ou mesoesfera, mas à humanidade no seu todo, à macroesfera. Portanto, “essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência representam um desafio moral para a humanidade”.28 Pela primeira vez na história, diante do perigo em massa, os homens são forçados a pensar, em conjunto, os efeitos da sua ação e a postular uma normatização ética relevante para todos, de responsabilidade solidária, em busca da sobrevivência global.29 Neste sentido, é possível deduzir a necessidade, urgente, da fundamentação e aplicabilidade de uma ética de caráter intersubjetivo-consensual-universal. A abnegação de uma ética racional defronta-se diante da relação entre ciência e ética. A cientificidade, em grande parte, reduz a validade e normatização ética a parâmetros subjetivos ou fundamentados em grupos particulares, em que prevalece a arbitrariedade e a irracionalidade, a quase isenção de valoração moral. As ciências técnicas – como também a história, a antropologia cultural, a sociologia e a psicologia – asseguradas de suas verdades pelos juízos de fato (circunstanciais), postulam que as normas morais são relativamente culturais ou epocais ou até mesmas subjetivas.30 Para Apel, cabe à filosofia superar este estatuto de neutralidade axiológica das ciências empíricas (também presente na filosofia analítica, de descrição científico-teorética), pois elas estão direcionadas para o dogmatismo, ideologia e autoritarismo.31 Portanto, “uma ética universal, isto é, em intersubjetivamente válida, de responsabilidade solidária, parece, de acordo com isso, ser ao mesmo tempo necessária e impossível”:32 necessária porque se apresenta como alternativa mais viável de tratar os problemas da humanidade, no diálogo e efetivação de normas para todos; impossível porque se defronta, muitas vezes, com a neutralidade e particularismos da técnica e da ciência. Caso a razão técnica, aquela singular ao homo faber, regesse a ação humana, a macroesfera estaria comprometida pelo perigo constante de destruição. Neste caso, sobressairiam a microesfera e a mesoesfera, como portadoras de normas morais particulares, 28 APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 71. Cf. Ibid., p. 69-72. “Há dois caminhos para minimizar ou evitar esses efeitos colaterais. Um deles consiste em desenvolver a tecnologia num sentido que poupe a natureza ao máximo (através da economia de energia, por exemplo). O outro caminho sugere a renúncia parcial e até total, em alguns casos, das tecnologias com alto potencial de risco”. GRONKE, Horst. Deveres de responsabilidade para com a natureza? Uma nova tentativa de fundamentar uma ética da natureza da perspectiva da Ética do Discurso. In HERRERO, Francisco Javier e NIQUET, Marciel. Ética do Discurso: novos desenvolvimentos e aplicações. Belo Horizonte, S/E, 2000, p. 226. 30 Cf. APEL, op. cit., p. 72-73. 31 Cf. Ibid., p. 73-74. 32 Ibid., p. 74. Sua impossibilidade, como logo será apresentada, deve-se à irracionalidade de algumas perspectivas filosóficas que desmobilizam (ou negam) uma fundamentação última da ética na era da ciência e da tecnologia. 29 12 mas sem responsabilidade universal, portanto, restrita às suas particularidades.33 Ora, as crises ecológicas, financeiras, armamentistas e políticas estão referidas à macroestrutura, porque vinculadas a rede global. Neste sentido, é possível conferir à micro e à mesoesfera responsabilidade pelos danos em escala planetária? Perante o assustador cenário de degradação do universo, é quase impossível dar uma resposta moral para esses problemas quando algumas racionalidades interceptam a razão prática, quando “com seus devaneios teórico-práticos impedem que a razão prática se responsabilize da ameaça universal em que estamos submetidos. O denominador comum a essas correntes consiste, pois, em privar de responsabilidade a razão prática”.34 Diante desta situação-problema (de carência e abnegação de uma ética racional) não há como negar a tendência de universalização da história, porque toda a sociedade, com seu modo de produção e tecnologia, se universalizou; a humanidade vive hoje sua terceira revolução industrial, com o sistema de informatização e comunicação mundial. E todo este avanço foi possibilitado pelo desenvolvimento da técnica e da ciência, que tornou a sociedade em constante relação planetária. Acreditou-se que a técnica e a ciência, desde o Renascimento, iriam revolucionar o mundo e as relações humanas, como também possibilitar o progresso moral e material da humanidade. Todavia, provocaram uma profunda decepção para humanidade, principalmente para as civilizações desenvolvidas (europeias), aumentando o potencial de destruição da vida,35 ainda que também se reconheça suas relevâncias para o homem: no campo da medicina, da tecnologia e informatização. Por isso, os desafios dos homens não pertencem a grupos minoritários, mas a toda sociedade mundial, capaz de responder pela sua ação.36 Assim, a humanidade está diante de um problema ético comum, o que isenta qualquer tentativa de postulado moral de fundamentação subjetiva ou relativista. Também a globalização, regida pelo neoliberalismo, impôs um desafio ético em âmbito político, no que se refere à competitividade desleal, à hegemonia de países sobre aqueles subdesenvolvidos, à coação nas relações financeiras e culturais, como também à imposição (ou condicionamento) de direitos em Estados independentes, embora também a globalização tenha proporcionado o desenvolvimento da democracia e das questões sobre os direitos humanos e, fundamentalmente, da liberdade de expressão e da tecnologia. Ora, este novo fenômeno mudou as relações do mercado e do capital, assim como a natureza do 33 Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 30-31. Ibid., p. 31. 35 Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel ao borde de la modernidad. ANTHROPOS 183 (1999), p. 35. 36 Cf. Ibid., p. 35. 34 13 trabalho e suas novas exigências, como também o papel do Estado, inserindo a humanidade em uma rede de comunicação internacional. O fato, no que se pode presumir, é que “o homem tornou-se refém da técnica e, ao mesmo tempo, produto dela”,37 refém da produção, da economia e do capital: é o homem que, constantemente, procura adequar-se à tecnologia e não o contrário.38 Todo este investimento, em grande escala, gerou um vazio ético na sociedade industrial e a corrupção dos valores, que sustentavam a vida das espécies.39 Em suma, com a universalização da história e da sociedade e com o avanço da ciência e da tecnologia – embora provedora de bens para a sociedade, como o avanço das ciências químico-biológicas, físicas, computacionais, energéticas e mecânicas – não há como negar a necessidade de uma ética racional de responsabilidade solidária, capaz de responder aos problemas mais urgentes da humanidade. Esta nova urgência, de uma ética solidária e global, não pode fundamentar-se, segundo Apel, nos parâmetros das éticas tradicionais ou historicamente hegemônicas, pois elas não oferecem um suporte necessário para pensar a civilização planetária. Ao contrário, ficam reduzidas às relações privadas e de poder. Apel propõe uma macroética da solidariedade histórica “que seja capaz de produzir uma consciência cosmopolita de solidariedade e de recuperar a primazia do político no contexto de um mundo globalizado e ameaçado por um colapso ecológico e social”.40 Segundo Apel, a ética solidária consiste num postulado moral que, fundado na razão prática, prescreve uma atitude comunitária aos indivíduos e, por isso, isenta o indivíduo de postular qualquer normativa em benefício próprio, a não ser referida à comunidade humana. Somente uma moral transubjetiva pode trazer respostas factíveis para o mundo 37 MAIA, Nayala. Papel da filosofia no mundo contemporâneo: filosofia x tecnologia. SYMPOSIUM (1998), p. 51. 38 “A ética do discurso considera a racionalidade técnico-científica e a civilização que daí provém uma grande conquista para a humanidade, porém inadequada, para responder às questões básicas que dizem respeito à responsabilidade do ser humano precisamente em face dos novos problemas gerados por esta civilização. O homem contemporâneo é fascinado pelas novas possibilidades abertas por essa racionalidade do sucesso e da eficácia, mas tornou-se muitas vezes cético perante a exigência de responder racionalmente aos desafios normativos que emergem, hoje, no plano de sua vida planetária e, portanto, tende a reduzir a racionalidade humana à racionalidade instrumental, atualmente hegemônica. A ética do discurso emerge nesse contexto como um momento forte de autoreflexão crítica da civilização técnico-científica e, enquanto tal, como uma energia intelectual e espiritual fundamental nesse contexto societário relativista e cético”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 201. 39 Cf. HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 164-165. 40 OLIVEIRA, op. cit., p. 176. 14 contemporâneo. Ao contrário de um ethos contratual, o ethos comunicativo consensual, solidário, evidencia-se como um ethos verdadeiramente moral.41 A ética solidária, contra o episódio da descarga da bomba atômica sobre Hiroshima – que atingiu a população em grande massa, com minúsculo remorso de problema moral –, “deve estar em condições de universalizar o amor ao próximo, no sentido do amor aos mais distantes”,42 como afirma Apel. Por isso, como apresentado, a situação-problema poderia aproximar os homens, no sentido de criar uma solidariedade entre eles, já que todos estão atingidos pela mesma situação. Com isso, poder-se-ia reduzir os conflitos entre os homens, abandonar os interesses particulares e garantir a sobrevivência de todos, que é o interesse comum da humanidade. Nesta perspectiva, a Ética do Discurso, como ética da responsabilidade, tem a finalidade dupla de pensar os problemas de uma implementação moral sob as condições de coerções objetivas sistêmicas e de propor respostas éticas ao desafio das coerções objetivas. Cabe, então, arquitetar uma ética de corresponsabilidade global onde todos os seres humanos possam responder, coletivamente, pela ação do homem no universo. Esta empreitada requer um sistema ético-filosófico que esteja acima das instituições ou dos subsistemas da sociedade e, por isso, contrária às morais de responsabilidade individual ou institucional: a consolidação de uma corresponsabilidade em detrimento de uma responsabilidade individual.43 1.3 Posições teóricas que desafiam a fundamentação de uma ética racional Apresentada a situação do ser humano como problema ético, referido à sua real situação histórica e natural, como também a paradoxalidade da situação ética, marcada pela exigência e abnegação de sua efetivação no mundo da ciência e da tecnologia, Apel mostra a necessidade de uma ética racional de caráter intersubjetivo e universal. Não obstante, na tentativa de elaborar uma fundamentação filosófica para a Ética do Discurso, identifica reais perspectivas filosóficas que desmobilizam seu projeto arquitetônico filosófico. Por isso, explicita, analisa e ataca tais perspectivas na tentativa de mostrar suas “irracionalidades” e, 41 Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 20. APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 162. 43 Cf. Id., Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia: uma reflexão filosófica sobre o processo de globalização. In HERRERO, Francisco Javier e NIQUET, Marciel. Ética do Discurso: novos desenvolvimentos e aplicações. S/E. Belo Horizonte, 2000, p. 201-202. 42 15 com isso, isentá-las de qualquer possibilidade de fundamentação última de uma ética responsável e solidária. 1.3.1 A moderna filosofia analítica Segundo Apel, Aristóteles constatou que a linguagem não constava apenas de orações enunciativas, mas também de orações imperativas.44 Com as teorias dos atos de falas esta concepção adquiriu um desenvolvimento ainda mais amplo. As orações enunciativas não constam somente de uma parte proposicional (que representa estados de coisas), mas também de uma parte performativa (que determina a força ilocucionária). Deve-se a Austin e Searle,45 como observa Apel, o desenvolvimento desta concepção, cujas orações contêm a dupla estrutura performativo-proposicional.46 Para Apel, isto possibilita afirmar que “toda proposição implica, ao menos implicitamente, uma atitude comunicativa, que nos relaciona com os outros, e uma atitude semântico-referencial, que nos relaciona com algo do mundo”.47 Esta concepção é de suma importância porque considera que é pela dupla estrutura performativo-proposicional “que podemos perceber os pressupostos pragmáticos implicados em toda proposição semântica”.48 Assim, a linguagem adquire uma auto-reflexividade cuja ação se prescreve pela mediatização proposicional de todo sentido, “sendo performativamente 44 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 233. Para Austin, a ação linguística é composta de atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Searle procurou desenvolver as ideias de Austin ao pressupor que toda aprendizagem de uma língua implica na aprendizagem das regras de comportamento. Dessa forma, toda língua está caracterizada por um conjunto de convenções que prescreve, por conseguinte, seu sistema de regras. E são essas regras que ditam a similaridade entre o fazer e o dizer. Portanto, todo ato de fala pressupõe uma instituição social de linguagem. Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 47. Para Apel, a famosa metacrítica de Searle à crítica da filosofia analítica e à falácia naturalista contém alguns erros: Searle aceita a independência entre o uso dos enunciados e seu significado. Com isso, Apel entende que Searle aceita a dedução lógica de proposições a partir de proposições: chega-se a enunciados valorativos a partir de enunciados descritivos. Para Apel, a tese da independência soa muito estranha pelo fato de Searle conceber reciprocidade entre os enunciados e os atos de fala. Também, para Apel, é confuso deduzir enunciados normativos a partir da descrição de feitos institucionais, como propõe Searle. Pois ele não percebe que há uma dupla opção diante de tais normas constituídas empiricamente: pode haver aceitação pelo seu caráter obrigatório (por emitirem valor para alguns) e também não aceitabilidade (por não representarem valor para outros. Neste caso, algumas pessoas somente poderão identificar tais normas, ou seja, algumas pessoas podem descrever e identificar tais normas, mas não sentir-se obrigados a observância). Apel nota não haver distinção, em Searle, entre dedução de enunciados normativos e dedução de enunciados de dever hermenêutico e, por isso, comente erros ao apresentar sua metacrítica. Entretanto, para Apel, a tese de Searle em afirmar que a derivação das consequências normativas dos atos de fala consiste na linguagem, que é a condição de possibilidade de toda descrição de feitos e normas lógicas, é positiva. Há, então, para Apel, a necessidade de uma interpretação filosófica transcendental dos atos de fala, de possibilidade de normatização. Como propõe Searle, a linguagem está em referência aos atos de fala. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 116-118. 46 Cf. APEL, Karl Otto. Semiótica filosofica. Trad. J. de Zan. Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1995, p. 100. 47 HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 167. 48 Ibid., p. 168. 45 16 sua condição transcendental de possibilidade, e que o logos da linguagem natural só pode ser adequadamente definido por ambos os significados: o performativo e o proposicional em unidade”.49 Não obstante, para Apel, a parte performativa não pode referir-se somente às condições de verdade, mas às condições de validade, enquanto tiver regida pela condição de aceitabilidade. E não somente a parte performativa, mas as duas devem pressupor as condições de validade e aceitabilidade. Caso a dupla estrutura performativo-proposicional se referisse apenas à condição de verdade, nada mais estaria que submersa numa falácia abstrativa. É neste sentido, de modo geral, que Apel trava uma discussão com a filosofia analítica, na tentativa de especular o problema do significado das orações. Pois, para ele, a filosofia analítica reduziu-se em explicar somente as condições de verdade das proposições e esqueceu-se das condições de validação e aceitabilidade.50 Nesta perspectiva, segundo Apel, a filosofia analítica traz, dentro do seu estatuto epistemológico, uma ambiguidade: de um lado, ela considera “científico” somente os pressupostos que obedecem a seu estatuto de averiguação e verdade, que é próprio da ciência, sob seu método objetivo-elucidativo, por um método objetivo que exclui a visão de mundo. Identificada pelos alemães como positivismo lógico, devido o Círculo de Viena, 51 a filosofia analítica – que hoje predomina em grande parte do mundo ocidental – orienta-se, pelo modo próprio de ciência, pela elucidação do universo humano e sua cultura sob forma matemática ou enquadrada dentro dos pressupostos matemáticos possíveis; de outro lado, o método utilizado pela filosofia analítica concentrou-se na “análise” da verdade, não do estado das coisas objetivas, como postulado pelas ciências, mas à linguagem da qual se fala dessas coisas.52 Portanto a filosofia analítica não fala das coisas objetivas, mas da linguagem (no seu 49 HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 168. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 233-235. 51 A vida intelectual de Viena se caracterizava, em grande parte, pelos seus vários Kreise ou círculos: grupos de discussão que debatiam as teorias dos principais pensadores da cidade. Somente pessoas convidadas poderiam participar das reuniões, o que nunca aconteceu com Karl Popper. Muitos foram os personagens famosos do Círculo, como Moritz Schlick, Carnap, Otto Neurath, Olga Neurath, Hans Hahn, Russel. O positivismo lógico foi um movimento pautado pela rigidez lógica e pelo progresso da ciência em detrimento das idéias antigas da filosofia, de caráter metafísico. Para os positivistas, a matemática, assim como a lógica, destruía todo e qualquer conteúdo descritivo. O personagem mais influente do Círculo fora um pensador que não se tornara membro do grupo, o filósofo Ludwig Wittgenstein. Kurt Reidemeister (1924 ou 1925), ao ler o Tractatus, propõe ao Círculo um profundo estudo e comentário acerca da obra. Dessa maneira, o Tractatus passou a ser estudado entre os positivistas vienenses, que encontraram nesta obra os argumentos sólidos sobre as questões procuradas. Esses positivistas também acreditavam que Wittgenstein tivesse explicado as verdades da lógica e da matemática, reduzindo-as a tautologias, destituídas de qualquer conteúdo descritivo. Cf. GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude: a prova e o paradoxo de Kurt Gödel. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 62-86. 52 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 33-35. 50 17 sentido lógico-semântico) das coisas objetivas: ela se prende à estrutura lógica da linguagem para, daí, atribuir sentença acerca das coisas, em detrimento da coisa em si mesma, no seu estado real. Por isso, a filosofia analítica (regida pelos recursos da palavra) constituiu-se, na perspectiva do pensamento de Apel, como uma filosofia da mente humana: o homem tem segurança de descrever o mundo e suas situações possíveis pelo uso estrito da palavra, pelo uso da linguagem. Dessa forma, é conferida à mente humana, pelo uso dos conceitos e pensamento, a tarefa de falar das coisas a tal ponto de afirmar que a intencionalidade da mente é originária.53 Assim, a filosofia analítica, por meio das palavras, procura tornar público o que advém da mente, externar o que procede de atos internos e, dessa maneira, ordenar, duvidar, perguntar etc. Isso nada mais é, segundo Apel, que uma falácia abstrativa: “ao assinalar a semelhante concepção das relações entre linguagem e pensamento, a conclusão é inequívoca: a filosofia da linguagem é um capítulo da filosofia da mente”.54 Dessa forma, para Apel, é impossível fundamentar uma ética racional sob o estatuto da filosofia analítica. Esta tarefa é inviabilizada, particularmente, por três premissas (reciprocamente independentes) da filosofia analítica, que precisam ser combatidas. Essas três premissas caracterizam a argumentação da meta-ética linguístico-analítica, a saber: a) a partir de feitos não é possível derivar nenhuma norma; b) normas objetivas podem derivar de constatações empíricas ou de inferências lógicas; c) a validade precisa equiparar-se à dedução lógica de proposições a partir de proposições. 55 A primeira sustenta a impossibilidade de garantir prescrições a partir da descrição de algo, ou se seja, do que é para o dever ser. Qualquer tentativa contra este argumento conduz a uma falácia naturalista; a segunda confere validade às normas somente a partir de juízos fáticos examináveis e juízos normativos mais complexos; a terceira atribui validade somente a partir de um cálculo proposicional semanticamente interpretado (de linguagem formal). Estas premissas, segundo Apel, corroboram com duas teses de impossibilidade de fundamentação ética: a primeira refere-se ao positivismo cientificista; a segunda, ao racionalismo crítico de Karl Popper.56 A primeira tese resulta das duas primeiras premissas (contra a falácia naturalista e igualdade da validade intersubjetiva com a objetividade 53 Cf. ACERO, Juan José. La recepción de la filosofía analítica por Apel: El significado y su validez. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 115. 54 Ibid., p. 115. 55 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 127. 56 Cf. Ibid., 128. 18 empírica) e, por isso, jamais poderá pressupor uma ética racional de fundamentação última se a ética somente puder configurar-se, por um lado, de constatações empíricas neutras de valor e de proposições lógicas e, por outro, não ser possível a derivação lógica de normas exclusivamente a partir de constatações empíricas. A segunda tese deriva da terceira premissa (da igualdade da ideia de fundamentação filosófica e científica com os procedimentos de dedução lógica de proposições a partir de proposições). Aqui, nem mesmo as proposições normativas ou descritivas podem fundamentar a ética. Ao contrário, somente a lógica dedutiva pode garantir tal fundamentação.57 Para Apel, Popper pretendia extrapolar o paradigma normativo do método científico ao tentar construir uma ética relevante. Com isso, destruiu a reflexão sobre os pressupostos transcendentais do conhecimento. Popper rejeitava a ideia de que uma filosofia crítica da sociedade estivesse fundada somente nos ditames do ideal metódico das ciências naturais. Não obstante, sua tentativa de extrapolação, segundo Apel, produziu dois tipos de falácias abstrativas: a primeira, cientificista-tecnicista, consiste no fato de Popper considerar a ciência unitária e a tecnologia social, ao mesmo tempo, como fundamentos da racionalidade crítica na política social de uma “sociedade aberta”. Para Apel, a tecnologia social não pode fundamentar uma “sociedade aberta”, mas uma sociedade formada por sujeitos e objetos da ciência, de cientistas manipuladores e indivíduos manipulados, em que a tecnologia social alcançará seu estágio último de funcionamento ao manipular as experiências repetíveis, de acordo com os fins estabelecidos. Ao contrário, a tecnologia social não pressupõe que suas experimentações estejam abertas a um conjunto de sujeitos, responsáveis, capazes de participar do processo e da discussão das normas possíveis.58 “A tecnologia social trata dos cidadãos como objeto e não como sujeitos ativos, participantes do diálogo e da decisão, ao converter ‘os sujeitos dos acordos em objetos da explicação empírico-analítica de conduta”’.59 Nesta perspectiva, questiona-se a tecnologia social como fundamento da “sociedade aberta”. Surge, então, a dificuldade de organizar uma comunidade de sujeitos, como protagonistas do 57 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 128-129. Segundo Popper, como entende Apel, as orações dadas nas operações lógicas podem estar motivadas por um sentido sociológico que, por sua vez, precisa distinguir-se do contexto de justificação, o que implicaria num conceito causal de explicação. Esta ideia de fundamentação popperiana induz a uma tríade positiva, ainda que fraca: a derivação de orações a partir de derivações conduz a um regresso infinito; as orações precisam estar pressupostas num círculo lógico; algumas premissas precisam ser adaptadas como um dogma. Esta tríade é de interesse para Apel. Ainda mais basilar para Apel é a concepção filosófica de Popper segundo a qual toda teoria ou hipótese não pode ser totalmente verificada se antes não for falseável. Cf. Ibid., p. 129. 58 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I – Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 16-17. 59 AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva? ANTHROPOS 183 (1999), p. 46. 19 progresso, rumo à “sociedade aberta”. Para Apel, somente os sujeitos, pelo acordo mútuo e de responsabilidade participativa, podem garantir tal tarefa, no sentido de discutir as medidas sociotecnológicas necessárias; a segunda, método de argumentação crítica, consiste na elevação dos cientistas como paradigmas de uma “sociedade aberta”. Para Apel, aqui já se elege os interesses cognitivos estabelecidos, assim como os fins propostos e, com isso, se ignora qualquer tentativa de discussão intersubjetiva, que esteja além da comunidade dos cientistas. Como postulado por Popper, na interpretação de Apel, a sociedade nada mais seria que objeto da ciência, sem qualquer participação nos processos de investigação científica. Esta concepção encerra-se, particularmente, em um cientificismo tecnocrático: “se converte em outra forma de cientificismo referente a uma figura de falácia abstrativa quando estabelece como cânone da argumentação crítica um interesse cognoscitivo com seu correspondente objetivo prático”.60 Ao contrário, “importaria, portanto, tratar a própria sociedade real – sujeitos das necessidades e interesses materiais – ao mesmo tempo como sujeito ideal do conhecimento e da argumentação (do ponto de vista normativo)”,61 como membros ativos de investigação científica, e não meros expectadores ou objetos das ciências. Embora a sociedade não seja sujeito efetivo da ciência, também não está reduzida a objeto, deve apresentar-se como sujeito virtual da ciência, participante de todo processo do conhecimento.62 Jamais os problemas de uma “sociedade aberta” podem ser resolvidos com base nas disposições científicas e tecnológicas, como requerido por Popper.63 Com esta concepção, segundo Apel, a filosofia popperiana se reduz a um cientificismo. Quanto ao positivismo cientificista (ou positivismo lógico), segundo Apel, sua fundamentação está instaurada num mundo factual de linguagem descritiva e construtiva, de uma linguagem de cálculo científico objetiva, no qual pretende dizer das ciências e da sociedade.64 Pois, para Carnap,65 a linguagem deve pautar toda reflexão filosófica acerca das coisas e não pertence a ela a preocupação de comprovar ou não suas proposições. Para Apel, 60 AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 46. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 21. 62 Cf. Ibid., p. 18-23. 63 Para Apel, a “sociedade aberta” está além de uma comunidade científica argumentativa. Com isso quer-se isentar a sociedade de mero objeto, fixada nos moldes e pretensões dos métodos científicos. Em nenhum momento os interesses de uma comunidade científica podem garantir os mesmos interesses da sociedade ou pressupor que esta está representada por aquela. 64 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 51. 65 “Carnap reconstrói, em um primeiro momento, os objetos ‘autopsicológicos’ (que constituem a subjetividade), e depois, em um segundo momento, os objetivos físicos, resultantes da combinação lógica dos dados sensíveis. Em um terceiro momento, vêm os objetos ‘heteropsicológicos’ (as outras pessoas, isto é, o mundo intersubjetivo) e, em um quarto, os objetivos culturais (éticos, estéticos, políticos etc.).” DELACAMPANGE, Christian. História da Filosofia no século XX. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 107. 61 20 esta concepção bloqueia a relação entre a semântica lógica e a histórico-hermenêutica das ciências humanas, o que também impossibilita o acordo mútuo entre os sujeitos: “isso ocorre porque ele [Carnap] com Russel e com o Wittgenstein da fase inicial, tornou sua ideia metodológica de ciência dependente do pressuposto de uma linguagem unificada objetivista já produzida”.66 O positivismo mantém todo e qualquer controle da sua análise por uma linguagem de descrição objetivista. Assim Carnap procura fundamentar a ciência empirista e, com isso, dizer do comportamento humano, que está referido ao caráter da linguagem.67 Assim, como entende Apel, o positivismo, de acordo com sua epistemologia, substitui os modos conteudísticos pelos modos formais, de proposições analíticas; substitui o naturalismo pela linguagem-coisa universal. Com isso, obstrui as implicações metafísicas, como pretende Carnap. No entanto, segundo Apel, não há como assegurar uma total isenção dos pressupostos metafísicos.68 Carnap “procurou inicialmente validar os critérios da ‘sintaxe lógica’ e do princípio verificativo, cada um para si e até certo ponto em virtude própria”.69 Mas, com isso, mostrou que a “sintaxe lógica” pressupõe uma semântica e que os fatos pressupõem uma convenção linguística. Abre-se um questionamento sobre o critério de sentido, que não se encerra em uma linguagem lógica formal. Não obstante, Carnap (em Testability and Meaning, 1936/37) havia proposto “como critério de sentido a tradutibilidade em uma linguagem artificial empirista, ou seja, uma linguagem na qual se pudessem formar [...] apenas as proposições das ciências naturais, e exatamente elas”.70 Para Apel, Carnap introduz uma pergunta acerca do critério de sentido ao pressupor a verificação das proposições científicas e, com isso, uma decisão convencionalista: “dessa forma, pode-se dizer que o fundamento da crítica teórica feita à metafísica perdeu-se em meio à passagem do problema da verificação para a semântica construtiva”.71 Esse reconhecimento, pelo uso semântico, aconteceu quando Carnap, envolto pelo behaviorismo, questionou a verificação da linguagem científica por meio de observações. Após, tal convencimento fora alcançado com o 66 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 53. Cf. Ibid., p. 51-54. 68 Cf. Id., Transformação da Filosofia I, p. 363. 69 Ibid., p. 364. 70 Ibid., p. 367. 71 Ibid., p. 367. 67 21 trabalho de Tarski, sobre o conceito de verdade.72 Carnap, então, convence-se que a linguagem científica estava estruturada pela sintaxe, assim como pela semântica.73 Ao aderir à semântica, Carnap construiu “uma metalinguagem semântico-referencial que permite às ciências empírico-behavioristas fazer do sentido pragmático objeto de uma referência semântica de proposições”.74 Segundo Apel, Carnap titulou esta retomada como pragmática formal, que tem a finalidade de evitar a auto-reflexão das proposições e de conferir validade a intersubjetividade. Para Apel, esta estratégia procura superar a lógica matemática pela linguagem semântico-pragmática. Não obstante, o conceito pragmático instaurado por Carnap, como entende Apel, nada mais se transformou que um indicador de problemas psicológicos subjetivos da lógica semântica, não podendo referir-se à justificação lógica ou à dimensão intersubjetiva da linguagem.75 1.3.2 A lógica da ciência de Wittgenstein Segundo Karl Otto Apel, o primeiro Wittgenstein, como apresentado no Tractatus lógico-filosophicus, compreende as orações como funções de verdade de proposições 72 Para Apel, Tarski criou uma teoria da verdade como correspondência que postulava isentar-se do caráter ontológico-metafísico e epistemológico. Com isso, Tarski pressupõe uma interpretação lingüística dos fenômenos. Tarski evita as teorias da filosofia tradicional, como também os problemas da linguagem ordinária relacionadas com a indeterminação do significado. Tarski prescreve uma definição formal da verdade proposicional por meio da semântica. Para Apel, esta definição serviria somente para um conceito de dedução da lógica semântica e, por isso, acaba por pressupor uma teoria epistemológica da verdade. Para Apel, portanto, é problemático supor que a linguagem artificial tenha sentido e que possa ser aplicada a fenômenos, pelo simples uso da linguagem científica. Também para Apel, é profundamente inconcebível o conceito de cumprimento da semântico-lógica, de proposições gerais existentes. Segundo este conceito, pressupõe-se que objetos abstratos (como unicórnios) possam ser identificados no mundo real. Segundo Apel, aqui, volta-se ao problema da teoria fenomenológica da verdade, pois esta abstração sintático-semântica de Tarski nada mais implica que uma falácia abstrativa. Para Apel, se a mera referência semântica sustentasse uma teoria da verdade, a dimensão pragmáticointerpretativa do conhecimento (do acordo intersubjetivo) estaria isenta de qualquer possibilidade. Nesse sentido, para Apel, não pode a concepção sintático-semântico de Tarski obstruir a dimensão pragmático-transcendental da linguagem, uma vez que ela é a condição constitutiva da possibilidade e validade do conhecimento intersubjetivo. A teoria da verdade de Tarski também encontra outro problema, segundo Apel, ao pressupor uma interpretação pragmático-semântica pela aplicação da teoria científica de linguagem artificial, ao tentar eliminar a linguagem natural: ao recusar a linguagem natural, a verdade estaria fundada puramente pela via a priori, de proposições semânticas. Ora, é impossível conceber tal concepção, uma vez que a linguagem lógico-semântica, artificial, dependa da linguagem natural para sua compreensão e aplicabilidade interpretativa no mundo. Assim, torna-se necessário um acordo entre os cientistas a fim de interpretar, com a linguagem natural, a linguagem artificial. Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 351-356. 73 “A ‘sintaxe’, como doutrina da formação dos signos e da relação que estabelecem entre si, e a ‘semântica’, como doutrina da relação dos signos com os objetos, foi então complementada – pela invocação de Ch. S. Peirce – por uma ‘pragmática’, que tem como tema o uso dos signos pelas pessoas na situação da práxis vital (ou seja, na situação de emissores ou de receptores de mensagens)”. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 370. 74 COSTA, op. cit., p. 293. 75 Cf. Ibid., p. 294. 22 elementares ou, de outra forma, como proposições que representam estados de coisas: “a proposição mostra como as coisas se passam se é verdadeira”;76 assim como ela “mostra a forma lógica da realidade”.77 Neste sentido, conforme Apel, “o primeiro Wittgenstein só compreendeu as proposições da linguagem em uma ótica lógico-matemática da linguagem e com referência a objetos ou estados de coisas”.78 As proposições têm a função de reproduzir as relações dos objetos externos (estados de coisas), fundadas pelas relações internas dadas pela linguagem. Dessa forma, “a comunicação somente poderia ser entendida como codificação, transmissão e decodificação das intenções de sentido privadas, pré-linguísticas, sobre a base de uma estrutura profunda totalmente independente”.79 Não há, neste modelo, como entende Apel, lugar para a reconstrução da história da linguagem e compreensão do mundo fundada pela comunicação entre os sujeitos, uma vez que a comunicação torna-se desnecessária para a compreensão do sujeito e do mundo. Ao contrário, a linguagem somente reproduz mundo.80 Já o segundo Wittgenstein,81 para Apel, transita da filosofia analítica da linguagem da metafísica do atomismo lógico para o convencionalismo, que não se prescreve num sistema ontossemântico da linguagem ideal, mas, ao menos, pelo uso de sinais empregado pelas pessoas: as regras dependem da convencionalidade dada entre as pessoas, e tais regras são pensadas pelo uso que os homens fazem delas.82 Nesse sentido, “para cada palavra, como para cada ferramenta, podemos dizer que conhecemos a sua significação quando conhecemos o seu uso. Em outras palavras, quando conhecemos o conjunto das regras que regem esse uso”.83 O segundo Wittgenstein, portanto, abandona o atomismo lógico do primeiro, assim 76 WITTGENSTEIN, Luidwig. Tratado Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, n. 4.022. 77 Ibid., n. 4.121. 78 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 288. 79 Ibid., p. 289. 80 Cf. Ibid., 289. 81 “Em lugar da lógica da linguagem monolítica inicial, o segundo Wittgenstein fala de muitos ‘jogos de linguagem’ diferentes, cada um com suas regras próprias. No primeiro Wittgenstein, o contra senso (por assim dizer) interessante, característico da filosofia, deriva da violação das regras que ditam os limites de toda significabilidade; no segundo Wittgenstein, o contra-senso interessante resulta de confundir as regras de um jogo de linguagem com as de outro. (Comum aos dois Wittgenstein é a crença que todos os problemas filosóficos emergem de confusões sobre sintaxe). A visão homogênea de uma só linguagem, com um conjunto de regras, que confortou os positivistas, deu lugar a um pluralismo, com tintura pós-moderna, de jogos de linguagem. O segundo Wittgenstein passou a enfatizar muito mais os aspectos sociais do cumprimento das regras. As regras estão corporificadas em formas sociais de comportamento (também atraente à sensibilidade pós-moderna).” GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude, p. 85. 82 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 45-46. 83 DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no século XX, p. 64. 23 como procura distanciar-se do solipsismo metódico da filosofia tradicional, ao tentar romper com uma linguagem privada.84 Ora, ao recusar os critérios da metafísica, como as condições subjetivas de possibilidades objetivas, para os sinais linguísticos, Wittgenstein funda os jogos de linguagem como respectivas formas de vida. Os jogos de linguagem têm a função de ser elo entre a linguagem e a realidade. Pois Wittgenstein havia descoberto que as relações estabelecidas pela semântica não poderiam representar a realidade e que o jogo de linguagem como mediação entre semântica e realidade também continuaria sem qualquer representabilidade. Por isso, os jogos de linguagem, na concepção de linguagem como veículo universal, adquirem “características não-semânticas como as ligações entre diferentes atos de linguagem, a relação de tais atos com o seu contexto etc.”85 Para Apel, nesta concepção filosófica do segundo Wittgenstein, de não fundar-se no postulado metafísico – seja para o significado dos sinais ou para a validade das regras – “o ‘jogo de linguagem’, como horizonte de todos os critérios de sentido e validade, deve possuir uma posição de valor transcendental”.86 E, por isso, é possível dizer que os indivíduos, como seres de linguagem, estão condenados ao entendimento e conhecimento das coisas, e tomam a convenção como pressuposto necessário de todo entendimento linguístico e validação normativa. Por sua vez, como entende Apel, todas as formas de linguagens e de vida somente poderão alcançar entendimento se as meta-regras ou linguagens pertencerem a um jogo de linguagem transcendental da ilimitada comunidade de comunicação. Não obstante, sem entrar no mérito de conceber a dimensão transcendental como doutrina de Wittgenstein, Apel aponta algumas dificuldades que podem ser encontradas no interior da ideia de jogos de linguagens, caso ela cumpra a função transcendental: ao entender que os jogos de linguagens dados devam apenas ser descritos e não modificados pelo 84 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 84. HINTIKKA, Merrill B. e HINTIKKA, Jaakko. Uma investigação sobre Wittgenstein. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1994, p. 282. “Wittgenstein defende no Tractatus que todas as regras da lógica devem ser formuladas de modo puramente formal (sintático), porque essas propriedades formais das nossas sentenças constituem tudo o que é imprimível na linguagem. De um modo semelhante, nas Investigações Filosóficas ele se atém à ‘gramática’ externa dos jogos de linguagem porque este é o único aspecto desses jogos que pode ser expresso na linguagem. Todo uso da linguagem pressupõe certos jogos de linguagem e constitui um lance em algum jogo de linguagem. Esses jogos são pressupostos quando se faz algum uso da linguagem. Por conseguinte, não podemos na nossa linguagem expor teoricamente os jogos de linguagem que essa linguagem pressupõe, ou dizer o que aconteceria se, e.g., suas regras fossem alteradas. A semântica é inefável na filosofia tardia de Wittgenstein tanto quanto na inicial”. Ibid., p. 282. 86 APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 48. 85 24 filósofo,87 permanece a mesma convicção da filosofia analítica, próprio do empirismo lógico e, por isso, estaria isenta da dimensão transcendental. Neste sentido, a observação e descrição dos jogos de linguagem estariam refém de outro jogo de linguagem (objetivo) e “se esse último jogo de linguagem tivesse que ser descrito, ele pressuporia novamente um jogo de linguagem (ainda) não dado, e assim por diante, ad infinitum”.88 Este problema estaria corroborado caso se entendesse os jogos de linguagem como condições subjetivas de possibilidade da descrição do mundo. Em síntese, para Apel, não é possível pensar os jogos de linguagem de Wittgenstein isentos de contradições.89 Essa observação é sustentada no paradoxo identificado na filosofia de Wittgenstein: se os jogos de linguagens e respectivas formas de vidas, como fatos dados, devem ser os últimos horizontes reguladores quase-transcendentais da compreensão de sentido, como entender que eles podem ser dados como jogos de linguagens, ou seja, ser identificados como algo?90 Observa-se, então, que os diversos jogos de linguagens e formas de vida necessitam de um jogo de linguagem transcendental, que não somente observam os seus fenômenos, mas possibilitam a participação e o entendimento entre eles. Dessa forma, segundo Apel, “já resulta com forçosa necessidade a questão por uma unidade transcendental dos diversos horizontes reguladores, que não pode ser dada, mas ao mesmo tempo produz a priori uma conexão comunicativa entre os quase-empíricos jogos de linguagem dados”.91 Para Apel, o filósofo, assim como o cientista social, deve participar de todos os jogos de linguagem e, ao mesmo tempo, distanciar-se de tais jogos, a fim de garantir uma avaliação crítica das formas de vida (por esse motivo, Wittgenstein se afasta de uma auto-reflexividade da linguagem. Ainda que ele postule tal condição, ao prescrever que o filósofo deva compreender os vários jogos de linguagem e compará-los ente si com a sua compreensão de mundo, nada mais realiza que uma descrição dos jogos92). Portanto, segundo Apel, há a necessidade de um jogo de linguagem transcendental para todos os jogos de linguagem. Somente neste caso poder-seia superar o reducionismo ou o relativismo dos jogos de linguagem de Wittgenstein. 87 “O filósofo como crítico da linguagem tem que prevenir-se de que, ao descrever um jogo lingüístico, ele mesmo utiliza um jogo lingüístico, específico que está ligado reflexiva e criticamente a todos os possíveis jogos lingüísticos e, deste modo, prevenir-se de que o filósofo também pressupõe que pode entrar em comunicação com todos os jogos linguísticos ou com as correspondentes comunidades lingüísticas, e isto de forma reflexiva e crítica”. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 85. 88 APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 49. 89 Cf. Ibid., p. 50. 90 Cf. Ibid., p. 57. 91 Ibid., p. 58. 92 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 260. 25 Ora, não há dúvida, para Apel, que a filosofia de Wittgenstein nada mais prescreve que um relativismo pragmático. Suas teses subsistem sem qualquer relação entre si, mas fundadas em suas verdades particulares, como últimas instâncias do pensamento humano. Também, não há qualquer tentativa de averiguação (justificativa) de tais teses. Elas se encerram em si, sem critérios para sua validade. Wittgenstein simplesmente as denomina como “formas de vida”, o que nada pode dizer de algo. Para Apel, a sentença filosófica de Wittgenstein a filosofia surge quando a linguagem não mais consegue entender-se em sua função, adquire um caráter extremamente ambíguo: por um lado, percebe-se que a filosofia (metafísica) compreende um jogo de linguagem que não pode funcionar, ou seja, a linguagem perde sentido e, por isso, não concede verificabilidade do seu uso; por outro, nota-se a necessidade da filosofia, o que provoca um auto-entendimento da linguagem, mas que continua presa aos sistemas de proposições sobre o mundo e sobre as perguntas mais profundas da existência humana.93 A partir daí, surge, então, um questionamento: pode a filosofia, segundo a tarefa estipulada por Wittgenstein, ser cumprida como mera descrição de jogos de linguagem? Mesmo admitindo a verdade de tal concepção, o que é excêntrico, não há como entender a maneira como se chega a um jogo de linguagem sobre os jogos de linguagem, pois os jogos continuariam independentes, sem comunicação entre eles. Ora, como entende Apel, o jogo de linguagem filosófico não surge apenas paralelamente ordenado no mundo, mas efetivamente em confronto com os jogos de linguagens, onde se mantém em constante diálogo com eles. Por isso, não se deve entender que os jogos de linguagens possam ser compreendidos a partir deles mesmos.94 Segundo Apel, a filosofia de Wittgenstein chegou ao extremo quando ele “acreditou ser preciso suprimir também a unidade consciente do problema do sentido e do significado, em favor da mera descrição do comportamento factual da utilização da palavra”,95 como descrito na sentença: “quando tudo se passa como se um sinal tivesse denotação, então ele tem mesmo denotação”.96 Esta sentença, já apontada no Tractatus e depois assegurada na obra seguinte, não pode ser suficiente como princípio metódico para a linguagem, a não ser, de forma absurda, para o comportamento dos animais que, em geral, não comporta interligação 93 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 205-206. Cf. Ibid., p. 207. 95 Ibid., p. 208. 96 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico, n. 3.328. 94 26 entre seus signos. Ao contrário, o ser humano é um ser todo interligado.97 Portando, a tentativa de Wittgenstein, em postular signos isolados, nada mais expressa que um mero isolamento abstrativo ou jogos regidos por uma sintaxe lógica, que nada diz dos participantes (humanos) desse mesmo jogo de linguagem. Não é possível reduzir a linguagem ao significado da palavra, da situação factual da linguagem, pois seria “impossível compreender de que forma o ser humano é capaz de mediatizar não apenas o significado das palavras a partir do contexto situacional, mas de mediatizar também uma nova situação, utilizando-se para isso do significado da palavra ‘como algo’”.98 Segundo Apel, a sentença um mesmo corpo não pode estar em diferentes lugares ao mesmo tempo está baseada numa análise tautológica das definições de “corpo”. Cabe perguntar como a linguagem adquiriu tal conceito de corpo. Não pode vir de uma convenção arbitrária, assim como não pode surgir da junção interna de signos. Ora, a convenção carece da experiência empírica que, por sua vez, pressupõe as convenções já existentes na linguagem. O contrário seria a sentença existem corpos e espíritos. Esta, como diria Wittgenstein na interpretação de Apel, não corresponde a fatos objetivos, mas à convenções gramaticais já existentes. Das sentenças, a primeira tem aplicação legítima na experiência; a segunda, num possível erro categorial, apoiada num jogo de linguagem. Desta análise, advém o questionamento: quais os critérios utilizados pelos analistas para o julgamento do uso da linguagem? Para os discípulos de Wittgenstein, a própria análise do uso da linguagem “nos remete, no fim das contas, ao ponto em que brota o mal-entendido que a função linguística tem de si mesma”.99 Para Apel, “fica fortalecida a tese da escola de Wittgenstein, segundo a qual o antídoto contra as possibilidades de sedução exercidas pela forma externa da linguagem pode ser encontrado no próprio uso da linguagem, ou seja, em sua regra lúcida, se bem entendida”.100 Daí, conclui-se que os fatos observados não devem ser simplesmente descritos, e que o conteúdo dado pelas palavras não podem isentar-se de uma ordem ontológica possível. Com isso, não se quer reduzir as coisas a uma ordem objetiva conhecido de maneira pré-linguística e nem à descrição de situações linguísticas, nem tampouco à descrição do comportamento do mundo. Todavia, a escola linguístico-analítica de Wittgenstein ignora a concepção que a linguagem não pode deduzir consequências 97 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 208. Ibid., p. 209. 99 Ibid., p. 211. 100 Ibid., p. 213. 98 27 ontológicas de suas análises, nem mesmo em sentido crítico ou especulativo. Ao contrário, suas verdades derivam de um auto-entendimento, como postulado pela ciência particular.101 Para Apel, ainda que Wittgenstein tenha substituído as regras semânticas pelos jogos de linguagem, nada mais incorporou que uma linguagem empirista, uma vez que a descrição do jogo de linguagem não pressupõe a participação daquele que a descreve. E ao descrever os jogos de linguagem não se pode assegurar que as regras utilizadas por tal descrição identifiquem-se com as regras do jogo em si, internamente. Ainda mais veraz é a crítica de Apel à tese de Wittgenstein de que não há nenhuma semelhança entre os jogos de linguagem. Para Apel, ao contrário, cada jogo de linguagem proporciona uma aprendizagem que possibilita a competência para refletir sobre a própria linguagem e a comunicação com os demais jogos de linguagem.102 Neste sentido, ao invés de “linguagens”, postula-se um jogo de linguagem ideal, uma comunidade ideal de comunicação: “todos que cumprem uma regra pressupõem este jogo linguístico ideal como condição de possibilidade e validade de seu agir e pensar, enquanto agir e pensar com sentido”.103 Ao tecer tais considerações críticas sobre a filosofia analítica de Wittgenstein, Apel chega a algumas conclusões: a lógica da linguagem, desde Aristóteles, é um fracasso por induzir uma ordem universal única, como projetada pela lógica formal. Esta aporia provocou a “impossibilidade da tentativa de uma ordenação ontológica da linguagem e do mundo a partir de um terceiro local, externo à linguagem”.104 Este problema fomentou novas reflexões pela necessidade de considerar a ordem efetiva do mundo somente no pressuposto de uma pragmática de um jogo de linguagem corrente. Por isso, para Apel, os problemas ou representação do mundo não podem reduzir-se aos jogos de linguagem; não pode o filósofo se prender à análise particular da linguagem, sem requerer uma ontologia do ser, pois a ontologia não pode ser substituída por uma análise da linguagem. Em suma, “a ontologia precisa hoje em dia mediatizar-se por uma filosofia da linguagem, tal como precisou, após o surgimento de Kant, mediatizar-se pela epistemologia transcendental”.105 Essa mediação consiste num veículo de cognição crítica, capaz de, com a hermenêutica histórica, fundamentar a verdade das coisas, sua verificação e aceitabilidade. Portanto, como entende Apel, a filosofia analítica da linguagem de Wittgenstein reduz todos os problemas ontológicos a uma descrição do uso 101 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 210-214. Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 84-85. 103 Ibid., p. 85. 104 APEL, op. cit., p. 215. 105 Ibid., p. 217. 102 28 factual da linguagem. E, por isso, desmobiliza qualquer tentativa de fundamentação de uma ética linguística intersubjetiva para as sociedades contemporâneas. 1.3.3 O decisionismo de Hans Albert Segundo Karl Otto Apel, na mesma direção do racionalismo crítico, também Hans Albert, insigne discípulo de Popper, desmobiliza uma possível fundamentação racional da ética na era da ciência. Para Albert, como entende Apel, a teoria ética deve ser representada e fundada em hipóteses, assim como nas ciências empíricas, pois a sustentabilidade da ética depende da sua veracidade na experiência.106 Dessa forma, as hipóteses morais apresentadas devem ser comparadas segundo sua capacidade de rendimento, comprovação ou falsidade: a capacidade ética tem, na experiência, a sua prova, assim como os cientistas testam suas teorias. Ora, segundo Apel, esta proposta ética, aparentemente, soa como necessária, uma vez que rompe com os dogmatismos morais e religiosos em busca de um constante diálogo com as ciências modernas, porém o desenvolvimento de tal princípio ético aponta para um irracionalismo. Não obstante, Apel reconhece, como pressupõe Albert, que da distinção entre ser e dever-ser os feitos empíricos são relevantes para fundar normas, mas, diferente de Albert, Apel acredita que esta relevância só pode sustentar-se, e não de maneira exclusiva, se advinda de uma situação ética como tal e não simplesmente provocada por feitos empíricos.107 Para Apel, é enganoso pensar a analogia entre a condição hipotética das ciências com os sistemas morais. O homem pode deixar a hipótese morrer (como pressupõe Popper), se ela não se adapta na experiência (como acontece na teoria darwinista). Ao contrário, para Apel, o homem não deve prever a morte dos sistemas morais. É necessário, então, notar “que até o critério de não realização [da ética] não constitui em todo sentido um critério de exclusão obrigatório para as normas éticas”.108 Por isso, não é possível fundamentar uma ética por meio da estratégia de seleção e falsificação de postulados morais, como requerido por Albert. Pois os indivíduos, por motivos estratégicos ou de sobrevivência, podem negligenciar ou falsificar princípios éticos, mas isso não quer dizer que tais princípios devam ser sufocados (mortos). Nesta perspectiva, o decisionismo consiste em assegurar a opção entre uma norma e outra e que tal opção não pode ser argumentável e, por isso, a vontade não tem razão para 106 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 130. Cf. Ibid., p. 131. 108 Ibid., p. 132. 107 29 preferir algo, como também não pode convencer alguém (argumentativamente) que tenha tomado uma decisão contrária. Tão grave como esta perspectiva é o fato de Albert e Popper pressuporem a separação entre conhecimento e decisão, o que reforça a separação entre cientificismo e moral, como também a isenção da razão crítica para o mundo prático, nas suas diversas esferas, econômica, religiosa, política etc.109 Isso nada mais provoca que um irracionalismo ético por obstruir a vida social da reflexão moral. Por conseguinte, para Albert, somente com a aplicação da razão no mundo prático poder-se-á vencer o obscurantismo e para isso é necessário a admissão da lógica para a argumentação ética. Dessa forma, a moralidade caracterizar-se-á por uma racionalidade crítica.110 A aplicação da racionalidade crítica, para uma filosofia moral, pressupõe o seguinte processo: a) propor diversos sistemas éticos, e todos eles falíveis (falibilismo), de tal forma que toda proposta ética esteja destinada a combater qualquer dogmatismo (por um processo de revisão constante dos pressupostos morais). O desenvolvimento ético requer diversas propostas hipotéticas, revisáveis; b) revisar se as propostas éticas são coerentes, se não entram em contradição lógica. Este passo está regido pelo princípio de não-contradição; c) sustentar a existência não apenas de revisão contra uma possível contradição interna de um sistema ético, 109 Para Hans Albert, é impossível fundamentar o conhecimento, assim como a decisão. Tal impossibilidade surge como crítica ao racionalismo clássico que tem a razão como princípio metodológico suficiente, uma vez que ela se intitula capaz de alcançar a verdade, a certeza e o fundamento. Para Albert, a pretensão pelo fundamento do conhecimento encontra um problema frente ao subjetivismo, de supor o verdadeiro como fruto de decisões subjetivas e, por essa via, alcançar a certeza e segurança das coisas. Mais do que verdade, esta medida procura segurança e certeza das suas convicções. Para Albert, a pergunta pelo conhecimento implica na reflexão pela lógica, pela ciência que se ocupa dos argumentos e da sua validade. No interior desta ciência reside a consequência lógica, que é o ponto seguro de qualquer fundamentação. Não obstante, para Albert, através das consequências lógicas: não se ganha conteúdo; não se diz nada da verdade pelo argumento dedutivo; o argumento inválido constitui uma falácia. Ora, o problema ainda maior consiste quando se pressupõe a universalidade do princípio da razão suficiente, isto porque ao pressupor uma fundamentação universal, também se pensa na universalidade do conhecimento. Albert considera ser impossível tal pretensão por três razões, chamadas de trilema de Münchhausen: isso conduz a um regresso infinito; a um círculo vicioso lógico na dedução; e interrupção do processo em um ponto determinado (suspensão arbitrária do princípio). Para Albert, a busca de fundamento seguro conduz ao dogmatismo, uma prática humana e social que se justifica pela vontade de chegar à certeza das coisas. Ao contrário do racionalismo clássico (que pressupõe a verdade e a certeza das coisas), para Albert, faz-se necessário substituir o princípio da razão suficiente pelo princípio da prova crítica (na tentativa de questionar todos os enunciados com o suporte de argumentos racionais). A prova crítica pressupõe a não certeza das coisas e, por isso, o erro, isto é, todo enunciado é falível, assim todas as hipóteses precisam confrontar-se. Ora, também a ética está isenta de qualquer fundamentação, pois ela também busca segurança naquilo que se refere aos valores e às normas. As teorias que sucedem os postulados éticos dogmatizam as normas morais e inviabilizam que a decisão seja criticada pelo conhecimento. Portanto, qualquer tentativa de fundamentação última deve ser substituída pela crítica racional ilimitada: de submeter alternativas éticas à prova crítica. Como é propósito de Apel refletir uma fundamentação última, toda esta abordagem de Albert será combatida e recusada. Pois não é possível, segundo Apel, solidificar a fundamentação no princípio lógico-sintático-semântico, como pressupõe Albert. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 149-152. 110 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 44-45. 30 mas à submissão de princípios-pontes “que possibilitam o trânsito entre a ética e a ciência a fim de que a primeira não seja imunizada”.111 O primeiro de tais princípios é o postulado da realizabilidade. Ele prescreve à ciência a primazia da moralidade, ou seja, as ciências ditam as normas morais. Dessa forma, a ciência deve determinar o que deve ser feito, pois a moral está submetida à crítica científica, de tal forma que o que não se pode não se deve. Como notado, este princípio prescreve limites ao campo moral e submete-o à avaliação científica: as hipóteses morais, constantemente, estão sob avaliação do conhecimento crítico científico. O segundo princípio prescreve o postulado da congruência, pois exige a concordância dos postulados morais com os resultados da ciência. Como afirma Apel,112 esses dois princípios prescritos por Albert se propõem evitar a ficção do vazio, quer dizer, a decisão ética está isenta de uma representação imaginativa, supersticiosa. O terceiro princípio consiste em extrair, com a ajuda das ciências, as consequências dos sistemas morais (coerentes e congruentes) e compará-las entre si, pois o critério que sustenta uma decisão moral (conduta) não se refere às fontes dos princípios morais, mas a sua repercussão na vida social. Para Albert, o critério para julgar as consequências dos sistemas éticos consiste em medir a satisfação das necessidades humanas, a eliminação do sofrimento humano, o cumprimento dos desejos humanos, como também as aspirações humanas intersubjetivas, dadas pela experiência. Com a aplicação desse critério meta-ético, a ética é submetida a uma prova crítica, onde evita qualquer pretensão ao dogmatismo e, com isso, encerra-se o processo completo de submissão da moral à prova crítica.113 Portanto, o racionalismo crítico tem sua fundamentação no decisionismo e exprimise pela tentativa de o homem optar por um critério ético, de tal forma que o seu contrário seja irracional. Ora, o homem ao optar pelo obscurantismo ou pela racionalidade crítica, já está submetido numa decisão injustificável. Ao tomar a decisão pela razão, o homem estará optando pela moral: “esta decisão última [pela razão] denomina Popper moral, precisamente porque não é justificável mediante argumentos e H. Albert aceita semelhante denominação”,114 isto é, a deliberação pela racionalidade é uma decisão moral, que constitui a base da ciência e da ética. 111 CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 45. Cf. Ibid., 46. 113 Cf. Ibid., 46-47. 114 Ibid., p. 47. 112 31 Como apresentado, a fundamentação última da ética consiste na decisão última, como aponta Albert.115 Todavia, na avaliação de Apel,116 é impossível fundamentar uma ética a partir de postulados morais hipotéticos. A fundamentação de argumentos não pode consistir na arbitrariedade de princípios e, ainda mais, não demonstráveis; não pode haver fundamentação a partir da dedução de proposições. Pois o princípio de prova crítica pressupõe a validade e legitimidade de qualquer postulado ético, desde que não seja sufocado. Ainda mais, o exame crítico de Popper e Albert, na tentativa de recusar um fundamento último e depositar a possibilidade do conhecimento no falibilismo, nada mais acentuou que um dogmatismo com suas postulações (por acreditar no possível fracasso de todas as vias de fundamentação do conhecimento), uma vez que não conseguem fundamentar nem provisoriamente o conhecimento.117 Ao contrário, somente uma autorreflexão é capaz de fundamentar argumentos éticos. Com isso, há necessidade de considerar as condições transcendentais de validade intersubjetiva da argumentação, que podem pressupor a lógica, a coerência, a semântica e a pragmática. Seguramente, há a necessidade de uma comunidade de argumentação intersubjetiva capaz de legitimar normas universais para a humanidade. 118 115 Para Apel, a decisão última (pela razão) condiz com os critérios legítimos da moral, não porque tal decisão não seja argumentável, mas porque necessita do crivo da vontade: “a inserção de argumentos, por contundentes que sejam, não pode obrigar a nada a aceitar necessariamente uma opção, porque a negativa é sempre possível; a vontade tem sempre a última palavra”. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 48. 116 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 153. 117 Cf. DOMINGUES, Ivan. A questão da fundamentação última na filosofia. KRITERION 91 (1995), p. 38. Para Apel, a filosofia, hoje, considera uma situação paradoxal a tentativa de defender uma filosofia pósmetafísica e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma fundamentação última. Ora, é notório para Apel que essas duas tentativas estão em íntima relação: ao tentar-se uma fundamentação pós-metafísica, necessita-se de uma fundamentação última. Pois a metafísica, como apresentada pela filosofia tradicional, restringiu-se a uma fundamentação dogmática, como um saber solidificado na doutrina de Deus. Aqui, Apel compartilha com Albert no sentido de afirmar que a metafísica racional está presa ao trilema de Münchhausiano, pois ela leva a um regresso infinito, ao círculo lógico e à crença da evidência das verdades, pela via da razão última. Não obstante, contesta Apel que a tentativa de uma fundamentação última somente pode inclinar-se se radicada em hipóteses científicas. Para Popper, assim como para Peirce, tanto a metafísica racionalista (das hipóteses globais), como a ciência da experiência, não pode alcançar uma fundamentação última. Apel vê-se de acordo em tal crítica, porém não concorda com a impossibilidade de uma fundamentação última. Ao contrário, segundo Apel, há, de fato, necessidade de uma filosofia pós-metafísica de fundamentação última e que não esteja radicada na metafísica tradicional e nem na lógica das ciências. Dessa forma, segundo Apel, contata-se a necessidade de uma fundamentação última que não seja vítima do trilema Münchhausiano. Cf. APEL, Karl Otto. Fundamentação última não metafísica? In STEIN, E. e DE BONI, L. A. (Org.). Dialética e Liberdade. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Editora da Universitária Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 305-308. 118 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 153-154. 32 1.3.4 Max Weber: racionalidades e postulados éticos Para Karl Otto Apel, Max Weber, ao conceber uma “sociologia compreensiva”, questionou-se sobre possíveis racionalidades que fundavam a ação social, ao saber que tais racionalidades regiam o modo de pensar e agir do indivíduo. Para Weber, a questão da racionalidade permitia averiguar o processo de racionalização do Ocidente. Segundo Apel, o paradigma da racionalidade de Weber estava baseado na racionalidade teleológica, que compreende a “racionalidade meio-fim”: diante de um ato, o autor, ao visar os fins desejáveis em torno de um horizonte valorativo, elege meios adequados para alcançá-los e se responsabiliza pelos efeitos secundários de sua ação.119 Para Apel, tal racionalidade representa o grau supremo da racionalização120 em Weber que, por sua vez, serve-se da racionalidade valorativa, como pressuposto para a seleção dos fins. Para a racionalidade valorativa a eleição dos fins e dos meios acontece sem qualquer preocupação com as consequências secundárias da ação, pois o autor entende que tais valores são supremos e devem nortear a realização dos atos e, por isso, independentemente dos efeitos que eles produzem.121 Conforme Apel, a racionalidade valorativa se prescreve, e fundamenta-se, na concepção kantiana de um dever inevitável, que conduz o indivíduo a praticá-lo de maneira incondicional, no sentido próprio do imperativo categórico. Esses valores fundam o agir ético e estão relacionados com o sentido religioso e estético.122 Ora, para Apel, Weber considera esta racionalidade inferior à racionalidade teleológica pelo fato daquela estar sujeita ao estatuto de fé pré-racional ou irracional. Neste sentido, as concepções sobre os valores internos (racionalidade valorativa) se convertem na ética da convicção. Ao contrário, a racionalidade teleológica, ao pensar os efeitos secundários da ação, converte-se na ética da responsabilidade. “E é evidente que Max Weber concede à ética da responsabilidade um 119 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 32-33. “A racionalização [...] é o resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à civilização ocidental. Consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das diversas atitudes, com base em um estudo preciso das relações entre os homens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à maior eficácia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do homem”. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 121. 121 Cf. APEL, op. cit., p. 33. 122 Cf. Ibid., p. 33. 120 33 maior grau de racionalização que a ética da convicção, embora considere esta última também como indispensável”.123 Na sua obra A política como vocação, Weber distingue a ética da convicção (também chamada “ética absoluta”, “ética incondicionada”, “ética cósmica” ou “ética da intenção”) da ética da responsabilidade.124 E inicia esta distinção ao analisar o papel do político no meio social. Para Weber, o político necessita de três qualidades para exercer o cargo confiado pelos seus cidadãos, a saber: paixão pela causa, responsabilidade e serenidade.125 Essas qualidades legitimam o político a exercer o seu ofício com soberania. E ao se interrogar sobre qual racionalidade o político deveria agir, Weber responde que somente poderá ser pela racionalidade estratégica. Pois o político ao crer em uma causa, entrega-se totalmente a ela e procura agir com responsabilidade, quanto aos efeitos da sua ação. O fato é que o político precisa estabelecer a relação com a ética. E, por isso, precisa definir, como afirma Weber, qual ação correta e estratégica deve ser executada.126 Ora, na ética da convicção as ações em si mesmas são boas ou más. Para o autor agir corretamente, deve evitar qualquer dependência às situações ou circunstâncias, por isso, ele está desprovido de responsabilidade. Esta racionalidade ética, como analisa Weber, está estruturada por ordens comuns para todos os homens e para todo lugar ou situação. Weber inclui nesta racionalidade a ética kantiana e o pacifismo cristão, que interpreta como absoluto os ditos do Sermão da Montanha (Mt 5,1-12). Para Weber, quatro dos ensinamentos do Sermão da Montanha apresentam-se como problemáticos para o político: abandonar tudo, dar a outra face, não resistir ao mal com a força, e dizer a verdade. Caso estes valores forem assegurados como incondicionais, o político irá conservar a violência e a decepção diplomática.127 Pois muitas guerras, potenciais ou efetivas, foram geradas dessa racionalidade. Não há dúvida que a ética da convicção visa uma humanidade moralmente boa, inclinada a agir segundo o bem. Todavia, não pressupõe a vontade do sujeito, o que pode 123 APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 34. Grifo nosso. Para Apel, esta distinção é de suma importância para saber qual delas convém à ética argumentativa. 125 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 106. 126 Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 187-188. Segundo Weber, há duas maneiras de fazer política: ou o homem vive “para” a política ou vive “da” política. O primeiro coloca-se totalmente a serviço do bem público, encontra equilíbrio e valor diante do poder, como também tem capacidade de dar significado às suas ações; o segundo, busca vantagens econômicas e prestígio social. Por isso, sustenta Weber, o político deve ter uma vida econômica independente de qualquer atividade política ou social, para não usufruir do bem público. Cf. WEBER, op. cit., p. 64-67. 127 Cf. Ibid., p. 189. 124 34 obstruir a qualidade da ação. Eis então um grave problema para a ética. Pois a qualidade moral de uma ação depende da vontade do sujeito, e não em atender normativas absolutas, pela simples execução de normas. Como se observa, então, o ato da vontade do sujeito imprime o limite entre esses dois postulados éticos. Portanto, “a ética da intenção não experimenta hesitação alguma, senão que condena toda ação que utilize meios moralmente perigosos, enquanto que a ética da responsabilidade permite utilizar meios duvidosos, sempre que com isso se persiga consequências boas”.128 Neste sentido, o político, como representante e responsável pelo povo, tem o compromisso de pensar as consequências de suas ações. E para isso, poderá utilizar-se de ações não morais ou de pessoas como meio para atingir o bem comum, pautado em valores últimos. O problema consiste, na interpretação de Apel, em saber o limite de suas ações ou estratégias. E, por isso, a ética da responsabilidade corre o risco de reduzir-se a um “puro pragmatismo”.129 Portanto, Weber, ao optar pela ética da responsabilidade, deixa claro seu descontentamento com a ética da convicção. Esta é irracional (por prescrever respeito cego às leis); àquela, racional (por prescrever responsabilidade aos atos assumidos).130 E, por isso, critica o cristianismo por imprimir e sustentar tal racionalidade: o cristão age segundo o bem e tudo responsabiliza a Deus, assim como prescrito na obra A política como vocação: “o cristão cumpre o seu dever e, quanto aos resultados da ação, confia em Deus”.131 Ao contrário, como afirma Weber na mesma obra (referindo-se à ética da responsabilidade), “devemos responder pelas previsíveis consequências de nossos atos”.132 Como se observa, a ética da convicção não se questiona pelas consequências da ação do sujeito.133 Como afirma Weber: nela “há 128 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 194. (Grifo nosso). Segundo Weber, o Cristianismo, no seu estatuto ético, primou pela intenção do indivíduo, deixando as consequências de tal ação nas mãos de Deus. Dessa forma, o Cristianismo (como também a ética kantiana) recorre para a providência como garantia de manter a racionalidade moral. O homem justo, atribuído de sensibilidade, confia no prêmio diante do sofrimento. Por isso, a ética da intenção está conjugada por um sentimento moral e razão prática, que pode ser entendida como um racionalismo cósmico-ético. Cf. Ibid., 194-197. 129 Ibid., p. 198. 130 Cf. FREUD, Julien. Sociologia de Max Weber. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 27. Para Apel, “o conflito entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade (pelas consequências) surge sempre quando não estão dadas ainda as condições sociais de aplicação para um determinado grau da competência da sentença moral”. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidos, 1998, p. 172. 131 WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 113. 132 Ibid., p. 113. 133 Cf. HINKELAMMERT, Franz. Ética de Discurso e Ética de Responsabilidade: uma tomada de posição crítica. In SIDEKUM, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação – Modelos complementares. São Leopoldo: UNISINOS, 1994, p. 93-94. O fato é que Apel assume o modelo da ética da responsabilidade, como postulado por Weber. No entanto, numa tentativa de superação. 35 risco de provocar danos grandes e descrédito, cujas repercussões se farão sentir durante gerações várias, porque não existe responsabilidade pelas consequências”.134 Para Weber, segundo Apel, o processo de racionalização do ocidente tende para que a racionalidade teleológica resida com maior ênfase no campo da cultura e da sociedade, em detrimento dos pressupostos da racionalidade valorativa, que se prende na concepção subjetiva do indivíduo. Neste processo de racionalização ocidental Weber identifica o “desencantamento do mundo”. Weber, então, “opôs à moral de princípios a ética da responsabilidade. A passagem para a sociedade moderna, com o ‘desencantamento do mundo’ exigiria o abandono da moral de princípios em favor de uma ética da responsabilidade política”.135 Segundo Apel, a análise de Weber sobre as racionalidades é de extrema importância e relevante porque procura investigar as “ações sociais”.136 Ação social significa, por um lado, toda e qualquer ação que tem o outro como referência de comportamento. Com isso, se prescreve uma interação social; por outro, refere-se à racionalidade teleológica, como grau supremo de racionalização, por referenciar-se aos objetos do mundo exterior. Nesta perspectiva, para Apel, observa-se que Weber “entende a racionalidade da interação social como ampliação da racionalidade teleológica técnico-instrumental no sentido da reciprocidade de ações teleológico-racionais”.137 Assim a ação social, até os dias de hoje, é desenvolvida, por exemplo, pela teoria matemática e teoria estratégica de jogos, que pode ser nomeada de racionalidade estratégica. A racionalidade estratégica é aquela na qual os autores, sustentados pela racionalidade teleológica, utilizam-se de meios-fins para atender suas próprias finalidades. Particularmente ela está sustentada por uma reciprocidade da interação estratégica que, por sua vez, reforça-se pela teoria dos jogos estratégicos. Esta pressupõe uma interação com os 134 WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 121. Para Weber, ao distinguir essa duas racionalidades, não significa que uma isente a outra. Mas há uma larga diferença entre a atitude daquele que se conforma com a ética da convicção daquele que age segundo a ética da responsabilidade: “quando as consequências de um ato praticado por pura convicção se revelam desagradáveis, o partidário de tal ética não atribuirá responsabilidade ao agente, mas ao mundo, à tolice dos homens ou à vontade de Deus, que assim criou os homens. O partidário da ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do homem [...] e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as consequências previsíveis de sua própria ação”. Ibid., p. 113. Não obstante, para Weber, o encontro ou harmonia entre essas duas racionalidades confere verdadeira vocação política ao homem: “Vemos assim que a ética da convicção e a ética da responsabilidade não se contrapõem, mas se completam e, em conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à ‘vocação política’”. Ibid., p. 122. 135 HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso, p. 177. 136 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 35. 137 Ibid., p. 36. 36 outros autores de decisão e, por isso, deve “tomar em conta os cálculos de benefícios dos outros jogadores como condições e como meios dos próprios cálculos de benefícios”. 138 Nesta relação, os controles sobre o resultado de uma ação está em referência aos auto-interesses competitivos dos outros agentes (estabelecida por uma relação ambivalente). O êxito de uma ação dependerá da ação esperada pelos outros agentes que, neste sentido, pode reforçar ou enfraquecer a ação postulada por um autor. A teoria dos jogos estratégicos, por um lado, prescreve jogos competitivos, provocados por uma situação de conflito; por outro, jogos não competitivos, onde se identifica cooperação entre os autores. Para Apel, no contexto dos jogos estratégicos podemse presumir elementos comunicativos que agem como veículos de acordos e ajustes entre os autores, como também, todavia, de interesse e dominação. Por isso, na racionalidade estratégica de interação social o consenso assume um caráter, na maioria das vezes, instrumental: “os sócios da interação, na relação recíproca, são sempre somente meios e condições limites das finalidades solitárias e dos esforços de êxito dos atores particulares”.139 Segundo Apel, a teoria da interação estratégica, embora não esteja fundada em princípios éticos, apresenta um sério problema de caráter estrutural e valorativo, que pode ser contestada com a segunda versão do imperativo categórico de Kant: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.140 Para Apel, caso se aprove a racionalidade estratégica, não seria possível fundamentar uma ética de responsabilidade e formação de consenso em prol dos interesses comuns. Talvez, devido ao perigo em massa que atinge o planeta, fosse relevante uma ética fundada pela racionalidade estratégica. Assim seria cabível pensar um acordo sobre o consumo de energia, utilização da matéria prima, combate à poluição, etc. Porém, não seria possível fundar uma ética racional. Pois, inferir soluções pelas graves consequências ou pelo medo (de destruição) é irracional.141 A ética seria sempre fruto (provocada) dos problemas sociais, e não reflexão do agir humano, o que faria da ética objeto dos problemas urgentes do homem e coagida e resolver problemas, e não geradora de reflexão profunda e regulativa. 138 APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 36. Ibid., p. 38. 140 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 299. (Coleção Os Pensadores) 141 Cf. APEL, op. cit., p. 38. 139 37 Somente aumentariam as desigualdades e formas de hegemonia dos países industrializados e, consequentemente, a repressão sobre os países de terceiro mundo. Com isso, não haveria igualdade e nem responsabilidade no cumprimento de normas e tal ética funcionaria somente enquanto o perigo não encontrasse equilíbrio. Por sua vez, com o equilíbrio, a ética poderia perder seu valor, já que ela não responderia mais aos problemas da humanidade. Também, ao pensar a comunicação linguística e a interação comunicativa mediada, suspende-se qualquer tentativa de fundamentação de uma ética racional pela racionalidade estratégica: é impossível referir o intencionado de algo à intenções extralinguísticas; como também não é possível referir a comunicação linguística à interação teleológico-racional, e nem mesmo referir o fim e os efeitos de uma ação aos fins possíveis. Nada mais haveria que locuções pré-linguísticas da ação teleológica.142 Portanto, a racionalidade estratégia “é inteiramente inadequada para a compreensão dos pressupostos e para as estruturas básicas da comunicação linguística e para a construção de uma teoria do significado das expressões da linguagem”,143 que deem suporte e fundamento para uma ética intersubjetiva, consensual e solidária. 1.3.5 O solipsismo metódico Segundo Karl Otto Apel, o solipsismo metódico foi introduzido por Wittgenstein na filosofia analítica, como pressuposto transcendental, mas que depois fora superado com o auxílio da linguagem.144 Fundamentalmente, o solipsismo encontra sua fonte e desenvolvimento no Tractatus. Não obstante, antes de tal investigação, adverte Apel, é necessário considerar que toda e qualquer análise de cálculo não possibilita acordo mútuo: a análise hermenêutica, de linguagem intersubjetiva, é substituída pela linguagem científica formalizada, desprovida de sentido e interação entre os interlocutores de linguagem. Dessa forma, afirma Apel: “então se podem expressar nessa linguagem raciocínios lógicos e proposições sobre estados de coisas (nada de asserções de fatos), mas não ‘declarações’ ou ‘atos de fala’”.145 E tal linguagem em nenhum momento pode expressar “declarações que 142 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 40-43. Id. Semiotica Filosófica, p. 25. 144 Cf. Id. Transformação da Filosofia II, p. 265-266. 145 Ibid., p. 268. O empirismo lógico procurou superar a metafísica por meio da análise lógica da linguagem. No entanto, para Apel, esta tentativa fundada numa semântica construtivista, tornou-se fraca e, por isso, radicada num solipsismo cego: a linguagem formal não pressupõe o acordo intersubjetivo, pois a linguagem do cálculoformal negligencia a problemática transcendental da compreensão para somente tratar de estado de coisas, como conteúdo de proposição. Neste sentido, as proposições somente dizem de estados de coisas e consequências lógicas, mas não atos de fala. Portanto, a linguagem científica desconsidera a análise hermenêutica 143 38 contenham identificadores pessoais como ‘eu’, você’, ‘nós’, ‘vocês’ etc. e que expressem com isso a situação da comunicação intersubjetiva”.146 Neste sentido, atos de fala não encontram espaço na linguagem formal porque não pertencem à análise formal objetiva e sintático-semântica, mas à dimensão subjetiva e pragmática. Abnega-se a condição de uma metaproblemátia da interpretação, o que também negligencia a tentativa de formulação da pragmática transcendental da comunidade de comunicação dos cientistas, como postula Charles S. Peirce. Para Apel, o Tractatus do jovem Wittgenstein procura defender, e aqui consiste a ideia central de sua obra, que “a forma lógica da linguagem ideal retratadora do mundo não pode ser construída de forma arbitrária, mas reside oculta, na linguagem corrente, como condição de possibilidade de toda construção”.147 Ora, como a lógica da linguagem é condição transcendental de toda retratação linguística do mundo, não pode haver metalinguagem na relação entre linguagem e mundo. Pois o eu transcendental reside na linguagem transcendental, como condição de possibilidade e validade das ciências. Dessa forma, como o eu transcendental traduz a forma linguística do mundo, não há possibilidade de comunicação intersubjetiva sobre a interpretação do mundo. O cientista solitário atua de maneira auto-suficiente acerca da descrição de mundo e, com isso, utiliza-se de uma linguagem formal-objetiva que se caracteriza por ser “coisa” e “estado de coisa”.148 Para Apel, o ponto alto do solipsismo metódico na filosofia analítica consiste na proposição a seguir, de Wittgenstein no Tractatus: “aqui se vê que o Solipsismo, quando lhe rigorosamente são extraídas todas as suas consequências, coincide com o puro realismo. O eu do Solipsismo contrai-se e fica um ponto sem extensão, fica a realidade coordenada com ele”.149 O fato é que o solipsismo metódico, como apresentado no Tractatus, parte do transcendental da comunidade de comunicação e, por isso, está radicada no solipsismo metódico. Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 123. 146 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 268. “Que a ideia de uma linguagem-cálculo impede a auto-reflexão se vê com clareza pelo fato de na linguagem-cálculo não ser possível uma ‘comunicação’ humana, ou seja, a troca de puras informações sobre estado-de-coisa, sem a co-expressão de uma tomada de posição subjetiva [...] Precisamente o afastamento da pré-compreensão sobre o uso da linguagem e, com isso, de qualquer tomada de posição reflexiva sobre a linguagem é que garante a eficácia da linguagem artificial”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 259. 147 APEL, op. cit., p. 270. 148 Ibid., p. 270-272. 149 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico, n. 5.64. 39 pressuposto que todo cientista deva reduzir os demais cientistas a objetos de descrição. Este pressuposto tornou-se basilar para o neopositivismo150 de uma ciência unificadora objetivista. Fundamentalmente, o solipsismo constitui o principal adversário de Apel na tentativa de fundamentar uma ética racional, portadora de linguagem. 151 Segundo Apel, a filosofia ocidental (em grande parte da sua história, particularmente na modernidade) esteve impregnada do modo de pensar monológico (ou individualismo metódico): para Descartes, no seu racionalismo extremo, o pensamento está isento da linguagem e da tradição; para J. Locke, no seu empirismo radical, as palavras nada mais significam que ideia na mente, embora admita o uso do senso comum como regente das regras das palavras; 152 para os racionalistas platônicos, a validade dos significados independe da forma linguística do consenso; para a filosofia clássica de Kant a Husserl, a intersubjetividade do conhecimento, através da consciência transcendental, independe da comunicação linguística; para o behaviorismo, a compreensão comunicativa é substituída pela observação externa e pela descrição das coisas.153 Conforme Apel, a ideia da lógica da linguagem e a concepção behaviorista expressam a máxima do solipsismo metódico na filosofia moderna.154 Problema que somente depois, no segundo Wittgenstein, fora superado, ao recusar a possibilidade de uma linguagem privada, mas, como entende Apel, sem êxito. Pois, ao postular os jogos de linguagem, Wittgenstein não pressupôs a inter-relação entre eles. Ao contrário, apenas acenou a semelhanças de família entre eles, mas não a participação do filósofo em ambos. Para Apel, o elemento comum entre os jogos de linguagem consiste, como já acenado nesta dissertação, na existência de um jogo de linguagem (capacidade de reflexão sobre a própria linguagem e modos de vida), que vem a ser um jogo transcendental de linguagem.155 Com isso, recusa-se o reducionismo e o relativismo.156 150 “O neopositivismo parte do pressuposto de que, em princípio, um só indivíduo seria capaz de reconhecer algo como algo e, portanto, de cultivar a ciência; isto ocorre por causa da ignorância, comum à metafísica tradicional do sujeito, de que o conhecimento baseado na observação, e que se produz na relação sujeito-objeto, pressupõe sempre o acordo sobre o sentido, que se produz na relação sujeito-sujeito”. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 118. 151 Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 52. 152 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 270. 153 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 66-67. 154 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 273. 155 Cf. Ibid., p. 273-274. 156 AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 47. 40 Sustenta Apel que o solipsismo metódico não se reduz, simplesmente, ao individualismo ontológico, que ignora a dimensão social do indivíduo, nem mesmo ao individualismo possessivo, pautado pela utilização de todos os meios para alcance dos fins (lógica da economia liberal). Mas prescreve-se como uma instituição portadora de neutralidade axiológica, na qual impede o confronto dos indivíduos com possíveis alternativas e eleição de normas. Neste sentido, o solipsismo entende-se como um método, mas isento de valoração moral. Para Apel, o solipsismo consiste na forma monológica de pensar, fazer juízo e validar normas de maneira solitária (consciência individual), por isso, sem pressupor uma comunidade de comunicação.157 Segundo Apel, não há dúvida que o solipsismo metódico reconhece a dimensão social do indivíduo, como também a possibilidade de valorização do social ante ao individual. Todavia, sua fragilidade versa, e aqui consiste a crítica veraz de Apel, em não pressupor a tríplice dimensão dos signos (sintático, semântico e pragmático). Assim, tanto a filosofia da consciência, como a análise linguística sintática e semântica “incorrem no erro de crer que um homem pode forjar seu pensar e atuar sem estar ‘já sempre’ inserido em uma comunidade linguística”,158 como condição de possibilidade, verdade e validade das normas tomadas em consenso. Conforme Apel, o solipsismo, então, é produto de uma falácia abstrativa.159 Somente a tríplice relação dos signos pode combater o pensar monológico e atribuir sentido e validada à linguagem (pois o homem é um ser dialógico!). Ao isentar tal relação, ascende-se a gravidade (em larga escala) do solipsismo metódico, nas suas consequências práticas: o indivíduo atua com sentido e pensa com validez sem pressupor uma comunidade dos falantes; age segundo uma consciência em detrimento dos dialogantes; e procura atender seus interesses de maneira isolada. Dessa forma, “tanto no campo teórico como no prático o indivíduo é realmente ‘anterior’ à constituição da sociedade e apela a ela, em último termo, para satisfazer suas necessidades, interesses e desejos”.160 Nesse sentido, a moral, a política, a sociedade, bem como a religião estão sujeitas aos interesses individuais e movidas pelas racionalidades instrumental e estratégica, que representam o cerne do solipsismo metódico. Na lógica do racionalismo instrumental, 157 Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 52-53. Ibid., p. 54. 159 Cf. Ibid., p. 54. 160 Ibid., p. 55. 158 41 disseminado pelo Ocidente, por um lado, impera o politeísmo axiológico, pois o mundo não mais se identifica por uma imagem unitária de valores, por outro, impera o monoteísmo teleológico, que representa o único modelo de racionalidade das sociedades. Nesta perspectiva, o mundo ocidental está regido por um politeísmo axiológico e um monoteísmo racional, duas colunas de um mesmo processo de racionalização do Ocidente e que representam o desencantamento do mundo, como já apresentado segundo a concepção de Max Weber. Assim, o solipsismo metódico ascende e legitima o egoísmo social e, por isso, negligencia a fundamentação de uma ética racional, dialógica e consensual, para o mundo contemporâneo.161 Portanto, para Apel, o solipsismo metódico é estratégico, calculista e irracional por induzir que o discurso público conforme-se com as crenças particulares. Somente os fiéis cristãos, como se presume, podem assegurar tal irracionalidade, pois depositam sua fé no seu deus e agem segundo um estatuto dogmático e não se importam sobre a razoabilidade de sua fé. Por isso, é impossível que tal racionalização (irracional) possa fundamentar uma ética dialógica e responsável.162 Ao atacar o solipsismo metódico, Apel procura reconstruir uma “filosofia do sujeito” (profundamente transformada) no interior de uma filosofia da linguagem. Para isso, postula a superação: de um conceito de experiência, reduzido num horizonte transcendental ou na indução da logic of science, para um conceito de experiência de caráter transcendental, capaz de revisão qualitativa das próprias premissas e fundada na auto-reflexão; de uma filosofia neutra para a concepção de uma filosofia onde homem e sociedade estão implicados como sujeitos na ciência e onde o horizonte valorativo ganha sentido; de uma filosofia que distingue teoria e prática, sujeito e objeto (como em Kant) para uma filosofia fundada na relação 161 Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 56. Segundo Apel, o contratualismo liberal é expressão de um jogo cooperativo que prescreve um monólogo estratégico a fim de legitimar as ações, por meio do consenso, de indivíduos solidários. Este modelo de racionalidade, de pacto interessado, vigora desde Hobbes até Rawls. Na concepção do contratualismo, o indivíduo, munido dos seus interesses, procura alcançar vantagens no diálogo com os outros, o que lhe pode garantir uma convivência pacífica. Este acordo é realizado por todos, por meio do diálogo, mas extremamente estratégico. Isto porque o diálogo não é o meio necessário para a aquisição do verdadeiro e do bom, mas um instrumento de manipulação e via para se alcançar os interesses particulares, como também o acordo não constitui o fim último do diálogo, mas o meio para satisfazer os interesses solitários. Não obstante, não se quer dizer que o caráter monológico do contratualismo reduza-se ao egoísmo, pois poderá haver identificação de interesses entre os indivíduos, porém os indivíduos não tomam o diálogo como meio necessário para o acordo. Talvez o contratualismo represente a máxima da moralidade para as civilizações democráticas liberais, por garantirem a cooperação e participação, mas, segundo Apel, é deficiente por não garantir a razão dialógica e, por isso, reduz-se ao solipsismo metódico. Cf. Ibid., p. 56-61. 162 Cf. Ibid., p. 64. 42 sujeito-sujeito (em contraposição a Descartes, Locke até Husserl, às filosofias neopositivista e analítica).163 Em suma, este capítulo procurou demonstrar os principais problemas que negligenciam a fundamentação científica de uma ética racional para o mundo contemporâneo, a saber: a moderna filosofia analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o decisionismo de Hans Albert, as racionalidades e postulados éticos em Max Weber e o solipsismo metódico. Como pontuado, tais problemas expressam um mesmo desafio para Apel: arquitetar uma filosofia dialógica fundada na dimensão pragmático-transcendental-hermenêutica, uma vez que o pensar monológico, racionalista, cientificista e positivista surgem como os principais inimigos da Ética do Discurso. Apel, então, lança-se em busca de uma nova filosofia, capaz de fundar uma ética racional para o mundo da técnica e da ciência. E, para isso, continuará a investigar os expoentes e tendências da tradição filosófica. Mas aqueles que podem lhe oferecer o alicerce da sua longa empreitada filosófica e elaboração de uma filosofia moral. 163 Cf. AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 4647. 43 II CAPÍTULO TRANSFORMAÇÃO HERMENÊUTICO-SEMIÓTICA DA FILOSOFIA TRANSCENDENTAL Já apontado o problema consubstancial da filosofia moderna, fundada num sujeito de consciência e por uma linguagem técnico-científica, Apel procura superar o caráter monológico da verdade e de sua validade, uma vez que tal perspectiva não consegue fundamentar uma ética racional para a comunidade planetária. Apel, agora, lança-se em busca de reais fundamentos filosóficos capazes de sustentar uma ética relevante para o atual mundo caótico, desprovido de parâmetros filosóficos para sustentar suas normas morais e sua aplicabilidade no mundo real. Seu itinerário formativo filosófico é, fundamentalmente, caracterizado por uma postura de assimilação e superação de diversos postulados filosóficos. Apel parte de Kant, e dele absorve elementos fundamentais para sua ética, mas logo, a partir da análise de Heidegger e Gadamer, e, particularmente, com a transformação da filosofia transcendental pela semiótica-pragmática de Peirce, o revisa, assim como revisa estes expoentes críticos da filosofia kantiana. Nesta perspectiva, o presente capítulo quer demonstrar o caminho percorrido por Apel em busca dos fundamentos da Ética do Discurso. 2.1 A perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão Segundo Karl Otto Apel, não é possível pensar a superação do solipsismo metódico com o pensamento filosófico kantiano, pois ele, ao recorrer ao sujeito de consciência, sustentou o pensar monológico. Kant, na elaboração da sua filosofia prática, considera que o sujeito autônomo e de boa vontade é capaz de postular um princípio universal de validade da legislação moral e que as máximas da ação podem ser válidas para todos como normas,164 164 Cf. APEL, Karl Otto. Las aspiraciones del comunitarismo anglo-americano desde el punto de vista de la ética discursiva. In FERNÁNDES, Domingo Blanco. Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 21. Para Apel, tal perspectiva kantiana desconsidera a mediação comunicativa de sentido e validade das normas, particularmente por não pressupor o uso da linguagem, o que impossibilita qualquer tentativa de validade das máximas ou normas. Ao contrário, toda decisão requer uma compreensão prévia do mundo, como também de normas convencionais dadas por uma cultura de máximas. Também, não observa que o sujeito autônomo não consegue sustentar a legislação moral para todos, pois carece de um imperativo de caráter comunitário, de interesse de todos e de correção moral para todos. Cf. Ibid., p. 21-22. “Nesta advertência residiria, sempre segundo a interpretação apeliana, o que Kant se tenha visto obrigado a recorrer ao conceito metafísico de um ‘reino dos fins’ para pensar a autonomia da vontade como ‘ratio essendi’ da lei moral. A ‘transformação pósmetafísica’ proposta por Apel, tendo em conta a mudança para dimensão pragmática, consiste em advertir que cada vez que alguém argumenta já tem pressuposto também condições normativas de possibilidade da argumentação, e, entre elas, precisamente o princípio da ética discursiva”. MALIANDI, Ricardo. Semiotica 44 como prescrito na Crítica da Razão Prática: “age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”.165 No entanto, como afirma Apel,166 ainda que Kant não tenha superado o pensar solitário, abriu caminhos para uma razão moral não estratégica, fundada no método transcendental,167 que confere ao homem a possibilidade de descobrir a autêntica natureza da razão e de todo princípio racional. Com isso, Kant lançou-se em comprovar como seria possível a aplicação dos princípios racionais na vida prática do homem. Esta empreitada levou Apel a tornar-se discípulo de Kant, como ele mesmo confessa ao longo do seu amadurecimento filosófico. Apel, ao admitir a racionalidade prática kantiana (pelo uso da reflexão transcendental), em busca de fundamentar sua ética universal, fundamenta a “parte A” da Ética do Discurso; e ao conceber a aplicação deste princípio na espécie humana, realizada na história, fundamenta a “parte B” da Ética do Discurso.168 Ora, na interpretação de Apel, Kant procurou uma fundamentação da ética transcendental na Metafísica dos costumes, mas abandonou tal empreitada na Crítica da razão prática, ao substituí-la pela referência à lei moral como factum da razão:169 “ela se impõe por filosófica y ética discursiva. In APEL, Karl Otto. Semiótica filosofica. Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1995, p. 52. 165 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 51. 166 Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 66. 167 “Na presunção de que haja porventura conceitos que se possam referir a priori a objetos, não como intuições puras ou sensíveis, mas apenas como actos do pensamento puro, e que são, por conseguinte, conceitos, mas cuja origem não é empírica nem estética, concebemos antecipadamente a ideia de uma ciência do entendimento puro e do conhecimento de razão pela qual pensamos objectos absolutamente a priori. Uma tal ciência, que determinaria a origem, o âmbito e o valor objectivo desses conhecimentos, deveria chamar-se lógica transcendental, porque trata das leis do entendimento e da razão, mas só na medida em que se refere a objetos a priori e não, como a lógica vulgar, indistintamente aos conhecimentos da razão, quer empíricos quer puros”. KANT, Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, B 82. 168 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 66-67. 169 Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 52. “Kant expôs sua ética geral (em que consiste o bem moral) nos Fundamentos da metafísica de 1785 e na Crítica da razão prática de 1788, e sua ética especial (quais são as ações boas) na segunda parte (Doutrina da virtude) da Metafísica dos costumes, de 1797.” ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. Trad. Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2002, p. 577. O ponto de partida da ética kantiana encontra-se no factum (fato), em que se preconiza um sujeito individual, livre e autônomo. Pois é fato que o homem, indiscutivelmente, sinta-se responsável pelos seus atos e consciente do seu dever. Ora, tal consciência pressupõe a liberdade do homem. Prossegue que do problema da moral se ponha em questão o fundamento da bondade dos atos. Para Kant, o bom em si mesmo só pode ser a boa vontade. A bondade do ato não está fundada em si mesma, mas na vontade daquela que a praticou. Uma vontade boa se prescreve pelo respeito ao dever ou à sujeição da lei moral e tal mandamento é incondicionado e absoluto (universal). A ordem, fruto da boa vontade, tem caráter de ser universal e, por isso, refere-se a todos os homens, em todos os tempos e circunstâncias. Esse mandamento Kant chama de imperativo categórico (age de tal forma que tua ação possa ser válida para todos). Uma vez que o homem procura agir por dever e obediente à lei ditada na sua consciência moral, torna-se legislador de si mesmo. Assim o homem é fim em si mesmo e forma parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins. Em suma, a ética kantiana é formal porque aplicada a todos os homens, independentemente da sua 45 si mesma a nós como uma proposição sintética a priori, que não é fundada sobre nenhuma intuição, seja pura ou empírica”.170 Para Kant, segundo Apel, o “feito da razão” consiste na consciência do imperativo categórico, capaz de manter coerência lógica nos ditames de uma filosofia da consciência. O termo “feito da razão” significa “que a razão se converte em um feito para si mesma; que através da consciência do imperativo se revela a si mesma sua natureza, sabe que existe e como existe”.171 A razão tem a propriedade de ser legisladora e o homem pode afirmar tal condição, o que o faz peculiar e diferente dos outros animais: “a razão em seu uso teórico não ostenta capacidade maior que a de sintetizar e unificar as leis empíricas, porém como faculdade prática tem poder legislador, poder para criar um mundo indicando o que deve ser, embora os feitos confirmem que não é”.172 Não obstante, como observa Apel,173 quanto ao objeto ocupado pela razão, Kant distingue a aplicação teórica da aplicação prática, de tal forma que uma das partes aponta para a filosofia da natureza (por conter princípios empíricos) e outra para os costumes (regida pelos princípios puros a priori). Numa perspectiva crítica, esta separação imbricou no dualismo ser e dever-ser, da exterioridade e interioridade, o que leva a entender que o homem kantiano é um “cidadão de dois mundos”: empírico e inteligível. E como não é possível acessar a exterioridade dos pressupostos do agir, não se sabe, com precisão, se o indivíduo está agindo moralmente ou de maneira estratégica, ou seja, regido pela vontade boa ou motivado por algum propósito: “a vontade livre como parte do eu inteligível é acessível à consciência, mas está separada do mundo no qual só se pode fazer experiência e, portanto, não pode ser conhecida”.174 Apel, nesta perspectiva, tem o propósito de superar este dualismo entre a razão teórica e a razão prática e demonstrar que não há separação entre os eventos naturais e a liberdade de ação, mas que se pressupõem mutuamente. Tal tarefa o leva a superar o naturalismo epistemológico de Kant. No entanto, considera Apel, da mesma forma como sustenta Kant, que a razão humana se revela a si mesma e conhece sua própria natureza através de feitos. Porém, Apel acredita que tais feitos devem estar amparados pela linguagem intersubjetiva, uma vez que situação, e autônoma porque regida pelo próprio sujeito, na sua consciência moral. Cf. VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. 23. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 282-283. 170 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, p. 52. 171 CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 67. 172 Ibid., p. 67. 173 Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade. Tese (Doutorado em Filosofia) - Programa de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 19. 174 Ibid., p. 20. 46 ela, e somente ela, é capaz de falar dos limites do mundo. Pois para Apel, o factum da razão no sentido kantiano, como algo dado, pode somente levantar uma suspeita que a razão nada mais é que “uma faculdade de cálculo do auto-interesse: justamente uma faculdade da racionalidade técnica, quer dizer, estratégica, valorativamente neutra”.175 Neste sentido, o feito ao qual Apel se refere deve estar fundado na linguagem, compreendido, então, como factum da argumentação. O feito linguístico é eminentemente intersubjetivo. Para Apel, o factum da argumentação é incontestável e inultrapassável. A partir deste factum, a reflexão transcendental possibilita averiguar suas condições de sentido: do procedimento kantiano de indagar as condições de possibilidades do conhecimento, busca-se as condições de sentido pela argumentação. “Tais condições se identificarão, ao fio da reflexão, com as condições da racionalidade porque a argumentação é, em nosso caso, o ‘factum der Vernunft’, e uma análise de suas condições de sentido se identifica com uma análise da racionalidade”.176 Uma argumentação com sentido consistirá na utilização de uma razão dialógica, que conhece a si mesma e sabe de sua existência. O princípio da ética de Apel, portanto, consistirá na concretização dialógica do imperativo categórico, embasado pelo caráter transcendental kantiano e de caráter intersubjetivo, em busca de consenso (“tampouco esta tem sido prevista por Kant, na filosofia teórica ou na prática, em sua função transcendental, quer dizer, como condição da constituição de validade intersubjetiva”177). Com isso, Apel supera a filosofia da consciência e adentra-se no plano da hermenêutica e da pragmática: da consciência para a unidade da interpretação; do eu da percepção transcendental para o nós transcendental; do eu penso para o nós argumentamos.178 Somente neste aspecto se fundará a racionalidade, o princípio moral e a reciprocidade entre os interlocutores. Este esquema transcendental, que busca condições de sentido e que parte de um feito linguístico, “aplica a tal feito a reflexão transcendental a fim de detectar as condições de seu sentido, descobre um princípio moral fundamental no conjunto de tais condições, e chega a um ponto supremo – o ‘nós’ – sem o qual o resto carece de sentido”.179 175 APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 43. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 68. 177 APEL, Karl Otto. Las aspiraciones del comunitarismo anglo-americano desde el punto de vista de la ética discursiva, p. 22. 178 Cf. CORTTINA, op. cit., p. 69. 179 Ibid., p. 69. 176 47 Por isso, conforme Apel, embora a fundamentação da ética kantiana proponha um desafio para o decisionismo ético, uma vez que procura demonstrar que a razão é prática, não se distancia de um “sujeito de consciência”.180 Pois Kant, ao tentar o conhecimento objetivo, pela consciência geral, recorre à lógica transcendental, pautada pela unidade da consciência do objeto e da autoconsciência, o que torna impossível a superação do solipsismo metódico. Ao contrário, Apel procurará demonstrar que somente com o auxílio da linguagem se pode ascender à dimensão comunitária, como possibilidade de sentido.181 Como também observa Apel, a diferença metodológica entre a razão kantiana (como prescrita na Crítica da Razão Pura182) e a lógica científica, consiste que esta deposita sua análise na linguagem; aquela, na consciência geral. Kant, a fim de validar objetivamente a ciência, substitui a psicologia cognitiva empirista (como de Locke e Hume) pela lógica cognitiva transcendental; as leis associativas psicológicas de Hume pelas regras a priori.183 A logic of science moderna, ao contrário, eliminou quase por completo o sujeito transcendental kantiano para sustentar sua análise na sintaxe e na semântica, instâncias capazes de imprimir descrição e elucidação possível das coisas. Para Apel, esta perspectiva crítica, embora relevante (por fazer notar que a consciência geral não é mais necessária), trouxe consigo outros problemas: por um lado, o sujeito humano da ciência é reduzido a um 180 CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 70. Cf. Ibid., p. 70. 182 “Um dos fios que guiam a construção da Crítica da Razão Pura é o modelo de uma ciência que reúna as condições necessárias e suficientes para apresentar-se como ciência objetiva, ou seja, aquela em que o uso lógico de nosso Entendimento finito (ou intellectus ectypus) possa aplicar-se legitimamente às ‘representações’ (Vorstellungen) que nos vêm pela sensibilidade, dando origem a juízos sintéticos (ou que fazem avançar o conhecimento) a priori (ou seja, necessários), capazes de assegurar-nos o conhecimento científico do mundo real.” VAZ, Henrique C. De Lima. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, p. 328. 183 O problema acerca da validade do conhecimento teve seu ponto de partida, de maneira mais sistemática, com Descartes e sua formulação mais acabada com Kant. Na obra de Kant a questão sobre a validade do conhecimento ocupa um lugar central, problema que fora despertado por David Hume, que Kant nomeia como o despertar do “sono dogmático”. Segundo Hume, a experiência não pode ser a fonte do conhecimento humano, pois os fatos não trazem qualquer normatividade quanto a seu comportamento. Ainda mais, como os fatos são singulares, não é possível extrair deles conhecimento necessário e universal. Por isso, que o conhecimento está fundado na condição psicológica do espírito humano, desprovido de qualquer base racional. A partir desta concepção, Kant radicaliza o problema sobre a validade do conhecimento para além da causalidade, apontada por Hume. Kant diferencia as formas de conhecimento em a posteriori e a priori: a primeira parte da experiência; a segunda independe da experiência e possibilita toda e qualquer condição da experiência. Portanto, para Kant, o conhecimento advindo da experiência não era fruto de uma atividade psicológica do sujeito, mas sustentado por uma base objetiva. A tarefa, então, da Crítica da razão pura consiste em examinar as condições a priori da validade do conhecimento. Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 9-12. 181 48 objeto da ciência (problema do sujeito);184 por outro, a função transcendental da ciência é substituída pela lógica das ciências da linguagem (problema da condição lógica): “lógica da linguagem e testabilidade de proposições ou de sistemas proposicionais entram juntos em cena, em substituição à lógica transcendental kantiana da experiência objetiva”,185 mas sem qualquer relevância. Para Apel, este esforço de superação da lógica transcendental kantiana não foi capaz de sustentar-se, o que demonstra o fracasso do programa original da logic of science, do empirismo lógico.186 Ora, para a lógica da ciência moderna, somente uma lógica única da linguagem científica, estruturada pela sintaxe e pela semântica, poderia conceder intersubjetividade da validação possível. Foi esta a leitura que possibilitou Wittgenstein, no Tractatus, “chamar de ‘transcendental’ a ‘lógica da linguagem’, em uma alusão a Kant, e a igualar o sujeito da ciência (como algo que ‘não existe’) à função delimitadora do mundo”. 187 Mas logo se evidenciou, como assegura Apel,188 que a sintaxe e a semântica não tinham consistência lógica e nem condições intersubjetivas para assegurar os procedimentos científicos em busca da verdade. Assim, pareceu necessário a constituição de uma lógica científica capaz de, a partir da expressão convenções práticas, conferir validação à dimensão pragmática da interpretação: a) ao verificar a necessidade de vincular os “fatos” à linguagem logicamente construída, uma vez que a linguagem analítica apenas confrontava suas leis científicas, mas sem referência aos fatos “crus”, criou-se o problema da verificação. Ao contrário, somente pelo acordo mútuo poder-se-ia pressupor a validação das teorias, onde os intérpretes seriam sujeitos da ciência e não objetos; b) ao verificar que a linguagem científica formalizada não fazia uso da linguagem de mundo, pareceu necessário uma linguagem aplicada pelos cientistas, interpretada pragmaticamente em uma metalinguagem. 189 Por isso, na interpretação de Apel, assim como Kant em sua crítica cognitiva procurou vincular a consciência ao objeto e que tal vinculação alcançaria uma unidade, também a moderna lógica da ciência deveria vincular as teorias aos fatos em base a interpretação do mundo, intersubjetivamente unificada.190 Este problema vem comprovar, 184 “Objetivar o sujeito implica uma nova forma de cientificismo que, em boa lei, unicamente conduz a um regressus ad infinitum na série de objetivações e, por último, a sua eliminação enquanto sujeito”. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 71. 185 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia II, p. 180. 186 Cf. Ibid., 180-182. 187 Ibid., p. 181. 188 Cf. Ibid., p.181. 189 Cf. Ibid., p. 182. 190 Cf. Ibid., p. 183. 49 conforme Apel, que somente uma reviravolta do pensamento kantiano, no sentido de uma transformação pragmático-transcendental, poderia proporcionar uma crítica de sentido, enquanto análise dos signos. Pois, não há dúvida, como atesta Apel, que o problema da validade objetiva da ciência só pode ser resolvido no sentido kantiano do método transcendental, mas não reduzido ao sujeito de consciência, ao contrário, mediado significativamente pela dialogicidade. Portanto, “a lógica transcendental da consciência se ver obrigada a converter-se em pragmática transcendental da linguagem. Neste jogo de transformações Apel confessa reiteradamente sua dívida com o ‘Kant da filosofia americana’, Ch. S. Peirce”.191 2.2 A perspectiva transcendental hermenêutica de transformação da filosofia Karl Otto Apel, com a pretensão de fazer uma análise da filosofia moderna e, com isso, “arquitetar” uma proposta filosófica capaz de pensar uma ética solidária e de alcance universal, trilha um caminho filosófico, segundo ele, de transformação da filosofia transcendental. Apel reconhece a contribuição kantiana para a filosofia, a saber: o valor absoluto da pessoa; a universalidade dos princípios éticos e gnosiológicos; a dimensão teórico-prática da razão humana e sua estrutura transcendental; o caráter universal do logos humano, entre outros. No entanto, procurará fazer uma síntese do pensamento kantiano e superá-lo à luz de outros pensadores, que lhe darão um arcabouço sólido para o seu pensar ético filosófico.192 Para Apel, o pensamento filosófico de Heidegger causou uma ruptura com a tradição moderna, fundamentalmente por instalar na filosofia o desprezo metodológico pela universalidade e conhecimento por meio da relação teórico-prático, e, em troca, assentar um novo campo conceitual – contingência, temporalidade, corporalidade, individualidade – capaz de melhor analisar a verdade das coisas.193 Heidegger, então, é considerado por Apel como um filósofo hábil a pensar a transformação kantiana, como ele próprio intenta na obra Ser e Tempo,194 porém em nenhum momento vem representar, e depois dele Gadamer, a última palavra sobre este ofício. 191 CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 36. 193 Cf. Ibid., p. 36. 194 Heidegger, na obra Ser e Tempo, procura corrigir a doutrina kantiana do tempo. Com isso, irá mostrar que Kant errou ao falar da temporalidade: por um lado, ele não enfrentou a questão sobre o ser, por outro, não 192 50 Apel parte de Heidegger para pensar uma hermenêutica transcendental, que depois será consolidada com a contribuição de Gadamer. Porém, numa postura crítica, Apel questiona o aceno ao relativismo da interpretação deixado por Heidegger e Gadamer, como também, contra Kant, o transcendentalismo a-histórico. Todavia, ao pensar que da conexão entre o transcendentalismo kantiano e a condição hermenêutica é possível abandonar a crise filosófica da modernidade, adota essas duas tendências como vias plausíveis de pensar a relação entre a constituição de sentido e a justificação da validade.195 Segundo Apel, a transformação da filosofia transcendental pela hermenêutica heideggeriana só pode ser entendida pelo interesse do filósofo em responder a pergunta pelas condições de possibilidades da compreensão do mundo e de sua constituição de sentido, questionamento tal comum entre Kant e Heidegger. Ora, a indagação de Kant refere-se à pergunta pela validade objetiva da experiência, que confere verdade (centro de toda lógica transcendental kantiana), pois o conhecimento verdadeiro é aquele que pode ser válido para todo indivíduo racional. Assim, Kant consegue distinguir uma mera crença de um conhecimento verdadeiro: quando consegue comunicar e validar o conhecimento para toda a razão humana. Nesta perspectiva, Kant procura identificar a constituição de sentido com a validade intersubjetiva. Por sua vez, Heidegger separa essas duas instâncias. A validade estará constituída por vários sentidos, pelo caráter próprio do juízo e do contexto do enunciado; a interpretação deverá estar inserida na “situação hermenêutica”, onde se evoca uma “maneira prévia” de falar das coisas.196 Ao prosseguir com sua análise sobre a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental, Apel aponta que todo dado da sensibilidade em Kant está já mediado pelo a priori e, por isso, não se pode entender que o indivíduo seja capaz de apropriar-se das coisas como elas são em si, mas somente como elas se apresentam para ele.197 Não obstante, para Kant é possível falar com exatidão da estrutura do plano transcendental a priori. Desta alusão, Heidegger diferencia-se de Kant em dois principais sentidos: na condição hermenêutica, por entender que nunca um conteúdo pode ser totalmente alcançado, pois desenvolveu uma ontologia explícita da presença. Kant simplesmente adota as ideias cartesianas, dogmaticamente. Ainda segundo Heidegger, Kant atribui a noção de tempo ao sujeito assim como assimila a vulgar compreensão de tempo advindo pela tradição. Fundamentalmente, “a conexão decisiva entre o ‘tempo’ e o “eu penso” permaneceu envolta na mais completa escuridão, não chegando sequer uma vez a ser problematizada”. HEIDDEGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 62. 195 Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 36-37. 196 Cf. Ibid., 37-38. 197 Cf. Ibid., 38. 51 sempre existirá um grau de opacidade na sua apresentação; e por não ser possível conferir à constituição de sentido as características de universalidade e necessidade, como abordadas por Kant. Para Heidegger, toda e qualquer situação hermenêutica prescreve a singularidade de algo, como não repetível (que se deve ao Dasein, por referir-se à história, ao caráter temporal. Assim, o ente enquanto tal, assim como o pré-compreender, é de caráter temporal e o sentido do ser está instaurado no horizonte do tempo, ou melhor: “não somente o ser é tempo, senão também a razão é tempo”198), e não considerado como algo comum para todo ser racional, como prescrito por Kant. Eis, portanto, a reviravolta do pensamento heideggeriano quanto à filosofia transcendental de Kant, caracterizada pelos ditames de uma consciência pura, universal, comum e necessária.199 Ainda analisa Apel que na hermenêutica da facticidade em Heidegger,200 Gadamer aprofundou uma hermenêutica do sentido, embasada na experiência: “a facticidade da presença, a existência, que não pode ser fundamentada nem deduzida, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro ‘cogito’”. 201 Gadamer atestou que Heidegger, ao transformar a fenomenologia em ontologia, desenvolveu a questão sobre o fundamento. A razão experiencial ganha estatuto de ser real e histórica e os resultados que procedem da experiência histórica alcançam a verdade racional. Nesta perspectiva, Gadamer lançou-se em “exceder os limites da filosofia formal da reflexão e acentuar especialmente o momento referido à realidade no pensamento hermenêutico, assim como reintroduzir na vertente prática da razão o âmbito experiencial”.202 Neste horizonte, Apel procurará a partir de Heidegger e Gadamer fazer uma leitura da filosofia kantiana na perspectiva de transformação da filosofia transcendental, o que o levará a perceber que “a compreensão do mundo está já sempre linguisticamente mediada, quer dizer, publicamente interpretada”.203 Pois, como atesta Gadamer, em Verdade e Método, 198 CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental. ANTHROPOS 183 (1999), p. 53. Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 38-39. 200 Segundo Heidegger, facticidade significa “o caráter de fatualidade do fato da presença em que, como tal, cada presença sempre é. Na facticidade está implicado o ser-no-mundo de um ente intramundando. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 102. 201 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7 Ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 341. 202 CONILL, op. cit., p. 53. “Gadamer quer prosseguir o caminho empreendido por Heidegger, porém sem abandonar do todo a abordagem transcendental. O compreender é para Gadamer a forma originária de realização do está-aí. O conceito do compreender não é o conceito de um método, senão o da experiência. O compreender constitui o modo de ser do está-aí, algo originário na vida humana”. CONILL, Jesús. Hermenêutica antropológica da razão experiencial. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 132. 203 NICOLÁS, op. cit., p. 38. 199 52 “a linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo”.204 A “mediação” é o ponto fundamental desta nova abordagem filosófica de transformação transcendental, que constituirá toda pretensão de validade de sentido para todos os dialogantes de uma comunidade ilimitada de comunicação, e com pretensões de ideia regulativa para todos os indivíduos (universalidade). Apel, de Kant irá absorver, fundamentalmente, o caráter transcendental (contrafático); de Heidegger e Gadamer, a condição fática do compreender. Disto resulta que do “elemento contrafático (ideal de justificação consensual da validade) constitui o elemento complementário-alternativo da historicidade radical da história do ser heideggeriano”.205 Apel poderá, então, percorrer um caminho de complementaridade entre essas duas tendências e sem “abandonar o problema da fundamentação ou justificação racional, mantendo as exigências próprias de uma razão crítica”.206 2.2.1 O novo paradigma da filosofia: a fenomenologia-hermenêutica de Heidegger e Gadamer Já apresentado a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental por Heidegger e Gadamer, cabe agora, segundo Apel, explicitar, particularmente, a contribuição que esses dois pensadores deram para a nova filosofia. Apel irá apontar os elementos de transformação aplicados e desenvolvidos por Heidegger e Gadamer e, com isso, se apoiar no modo de pensar hermenêutico-fenomenológico, pautado pela experiência pré-científica da vida e do mundo, para superar a filosofia científica, sustentada pela racionalidade metódica.207 Para Apel, a fenomenologia-hermenêutica tem seu ponto de partida em Heidegger, e depois desenvolvida por Gadamer, particularmente na obra Verdade e método. Ao tentar superar a racionalidade metódica, a fenomenologia-hermenêutica procurou estabelecer a emancipação da experiência da metafísica dogmática, da filosofia das visões de mundo e das restrições científicas. Heidegger, na sua crítica à filosofia ocidental, recusa a racionalidade da lógica científica e da técnica moderna. Ao invés de recorrer às categorias de pensamento e à 204 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 571. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 39. 206 CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental, p. 51. 207 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 23. 205 53 técnica científica – a fim de fundar uma investigação sobre o conhecimento – recorre ao desvendamento da experiência cotidiana.208 “Ao descobrir primeiro a experiência cotidiana, se enfrenta com as coações categoriais do pensamento e, portanto, da conduta, que partem da estrutura científico-técnica”.209 Já na filosofia hermenêutica de Gadamer, como afirma Apel, “o pensamento fenomenológico ingressa em uma relação crítica mais estreita com a ideia do método”.210 A experiência está referida às condições existenciais, fenomênicas, de possibilidades do “compreender”, que fora esquecida pelas metodologias históricohermenêuticas. Em geral, conforme Apel, a fenomenologia hermenêutica (e aqui consiste uma das suas principais relevâncias) resiste ao modelo científico da teoria e da crítica do conhecimento instaurado pela filosofia moderna, particularmente de procedência kantiana. Ela descobriu (pelo “compreender”) as estruturas semitranscendentais que superam a relação sujeito-objeto fundada desde Descartes. Dentre elas, destacam-se as “pré-estruturas existenciais” descobertas por Heidegger: ser-no-mundo, que supera o idealismo epistemológico; ser-com (com o outro), que ultrapassa o solipsismo metódico; ser-que-se-antecipa do ser-aí, que implica no questionamento da ideia do conhecimento livre de interesse de algo como algo.211 E, com a estrutura da pré-compreensão212 (dada pela linguagem e a história), a fenomenologia hermenêutica colocou em questão, por meio do círculo hermenêutico, 213 a apriorismo e o empirismo.214 Como afirma Gadamer, “Heidegger fez uma descrição fenomenológica perfeita ao descobrir a pré-estrutura da compreensão no suposto ‘ler’ o que ‘está lá’”,215 quer dizer, 208 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 27-28. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 24. O pensamento de Heidegger, ao procurar associar a questão da filosofia e da verdade com a definição de homem, enquanto Dasein (ser-no-mundo), rompe com toda tradição metafísica, uma vez que coloca a questão da filosofia e da verdade em outro plano, diferentemente de uma abordagem subjetivista. Pois em Heidegger a questão sobre a verdade não mais se limita às “aspirações” do sujeito, mas seu fundamento pertence às condições históricas do modo de ser-no-mundo (Dasein). Heidegger apresenta um novo paradigma na história da filosofia, a hermenêutica do eis-aí-ser, como ser no mundo. Dessa forma, para Heidegger, a ciência deve sempre partir do Dasein, como um modo de ser do ser-aí, que está presente no mundo. Cf. Ibid., p. 24. 210 APEL, op. cit., p. 28. 211 Cf. Ibid., 29. 212 O conceito da pré-compreensão deve seu ponto de partida em Heidegger. Este mesmo conceito, para Gadamer, adquiriu o sentido de pré-juízo. Cf. COSTA, op. cit., p. 25. 213 Heidegger, em Ser e Tempo, pode ser considerado o primeiro pensador a abordar a ideia de “círculo hermenêutico” como elemento fundamental para a compreensão. Até então, a estrutura da compreensão estava consolidada na relação entre o particular e o todo, dado pelo conteúdo objetivo. Assim, o particular era entendido no geral e o geral no particular. Com Heidegger, a compreensão realiza-se pelo sujeito mesmo que compreende, pois este abarca o todo do seu mundo, aberto ao conteúdo individual de sentido. Gadamer, a partir do “círculo hermenêutico”, aborda a historicidade da compreensão e a inserção do sujeito no seu contexto histórico, necessários para o compreender e que ditam toda compreensão histórica. Cf. COSTA, op. cit., p. 26. 214 Cf. APEL, op. cit., p. 29. 215 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 359. 209 54 “trata-se de manter afastado tudo que possa impedir alguém de compreendê-la [a tradição] a partir da própria coisa em questão”.216 Neste sentido, segundo Apel, com a descoberta da pré-estrutura do compreender, surgiu a possibilidade de desenvolvimento dos pressupostos quase transcendentais, que implicam “a possibilidade de fundar a verdade dos enunciados na descoberta do sentido que eles encobrem”.217 Nota-se que no horizonte da radicalização existencial-ontológica, a partir da ideia hermenêutica de Heidegger, sobretudo pelo “compreender”, foi possível uma nova investigação sobre o conhecimento das coisas. Pois, como sustenta Heidegger, em Ser e Tempo, “a abertura do compreender diz respeito, de maneira igualmente originária, a todo serno-mundo”.218 Aquilo que se compreende é o ser mesmo que existe, porque “no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença enquanto poder-ser”219 (por não ser algo dado, a presença é possibilidade de ser). Enquanto a lógica científica utilizava o “compreender” como método do processo investigativo, a “nova ‘hermenêutica’ pôde demonstrar que o ‘Compreender’, como maneira de ser-no-mundo peculiar ao homem, já é pressuposta, na epistemologia, na constituição dos dados da experiência”.220 Dessa forma, segundo Apel, o problema que envolvia o “compreender”, na sua dimensão transcendental, se junta à problemática empregada por Heidegger acerca do sentido da verdade. Depois, verificou-se que a ideia do “Compreender” não mais poderia subordinar-se à problemática da elucidação científica, mas assumida numa dimensão comunitária, do acordo mútuo pelo uso da linguagem. O acordo, pela via da linguagem, deve sempre estar pressuposto em toda e qualquer tentativa de explicação.221 Também, afirma Apel, o desenvolvimento da fenomenologia-hermenêutica contou, substancialmente, com a séria investigação filosófica de Gadamer. Pois ele, criteriosamente, radicalizou a ideia hermenêutica como autocompreensão filosófica das ciências humanas; colocou em xeque a objetividade científica do compreender, ao sustentar que tal perspectiva imprimia uma deformação abstrativa do problema hermenêutico do acordo mútuo. Para Gadamer, como sustenta Apel, “o problema hermenêutico original é o acordo com os outros 216 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 359. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 26. 218 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 203. 219 Ibid., p. 203. 220 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 30. 221 Cf. Ibid., p. 30. 217 55 acerca do sentido e da verdade linguística de algo enquanto algo”. 222 Assim atesta Gadamer em verdade e Método: “o problema hermenêutico não é, pois, um problema de domínio correto da língua, mas de correto acordo sobre um assunto, que se dá no medium da linguagem”.223 Dessa forma, o “compreender” hermenêutico se prescreve por uma relação sujeito-sujeito, pela condição do acordo mútuo sobre algo (assim uma hermenêutica entendida como arte de interpretação),224 em detrimento de uma objetivação descrita ou explanativa de atos psíquicos. Gadamer, então, questiona a abstração metódica sobre a pergunta pela verdade e sua validação e procura pensar uma hermenêutica filosófica onde a “fusão de horizontes” (da mediação do presente com seu passado) possa ser examinada em qualquer caso do “compreender”.225 Segundo Apel, a descoberta desses pressupostos da fenomenologia hermenêutica, depois desenvolvida pela filosofia do século XX, instaurou a superação do idealismo epistemológico e do solipsismo metódico, assim como do conceito do espírito e da consciência transcendental, já apontado por Gadamer (por mérito de Heidegger) na obra Verdade e Método.226 Esta tarefa fora também executada, de maneira aguda, com a filosofia semiótico-pragmática de Charles S. Peirce (na ideia de uma comunidade interpretativa de comunicação) e, despertada, com a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein. À medida que se supera a filosofia analítica, na sua condição sintático-semântica – quando sentido e verdade são reconhecidos como declarações assertivas, e não por sentenças, e quando tais asserções passam representar respostas aos problemas mais instigantes – podese apostar numa filosofia hermenêutica portadora de linguagem, na condição do acordo mútuo entre os interlocutores de uma comunidade. Também, neste mesmo sentido, pode-se pensar na superação da abstração lógico-científica, na medida em que a sintaxe e a semântica são substituídas por uma teoria científica transcendental-pragmática. Esta atua na tentativa de banir o sujeito cognoscente em busca de uma transformação da problemática kantiana do sujeito transcendental.227 222 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 28. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 376. 224 Para Gadamer, como apresentado em Verdade e Método, a compreensão sempre implica acordo, pois toda e qualquer compreensão e consenso estão fundados na concepção do acordo. E sempre foi papel da hermenêutica garantir este pressuposto. Neste sentido, a hermenêutica se propõe explicar a compreensão a partir de uma comunidade linguística, onde cada indivíduo está sempre em entendimento com os outros. Cf. COSTA, op. cit., p. 28. 225 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 31-33. 226 Cf. GADAMER, op. cit., p. 346. 227 Cf. APEL, op. cit., p. 33-34. 223 56 Portanto, como afirma Apel, o novo contexto da fenomenologia hermenêutica desqualifica e, por isso, rejeita a concepção empírico-psicológica de uma ciência particular, como também a condição de não justificação metacientífica para consolidar-se como uma filosofia transcendental-hermenêutica, ou horizonte de sentido, capaz de pensar os problemas referentes à constituição dos novos jogos de linguagem.228 Por isso, a fenomenologiahermenêutica, fundada na dimensão histórica da epistemologia, demonstra ser “capaz de cumprir uma função corretiva diante do estreitamento científico-metodológico da problemática acerca da verdade”.229 Essa nova perspectiva filosófica se efetiva ao perceber que as descrições empíricas e elucidações são irrelevantes para fundar o conhecimento e a compreensão da filosofia da ciência; e ao perceber que descrições de coisas, sem juízo de valor, não possibilitam a cognição da história. Como afirma Gadamer, a partir de Heidegger, o “compreender” não pertence à lógica do sujeito, ou seja, não se limita às maneiras de se comportar do sujeito, mas à maneira de ser do próprio ser-aí. Como afirma Gadamer na obra verdade e Método, ao fazer menção à crítica de Heidegger ao rigorismo metodológico e à idealidade: “compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana”. 230 Assim, a dimensão hermenêutica, fundada no ser-aí, atua na história e envolve o todo da experiência do mundo. 2.2.2 A perspectiva crítica de Apel à filosofia hermenêutica de Heidegger e Gadamer Após explicitar a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental por Heidegger e Gadamer e, com isso, apontar, particularmente, a contribuição que eles deram para a nova filosofia, Apel, a partir de uma perspectiva crítica, procura apontar o erro cometido por Heidegger e Gadamer, no âmbito da filosofia hermenêutica, apesar de reconhecer a extraordinária contribuição que eles deram para a filosofia hermenêuticopragmático-transcendental. 228 É importante notar a menção que Gadamer faz a Apel na obra Verdade e Método. Para Gadamer, Apel corretamente percebeu que os “jogos de linguagem” apenas descrevem a continuidade da tradição e de maneira descontínua. A hermenêutica, então, tem o ofício de atuar criticamente contra o positivismo e, com isso, superar a ingenuidade positivista. No entanto, Apel, ao postular que a hermenêutica direciona-se a uma teoria transcendental, parece controverso. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II – Complementos e índice. 7 Ed. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 133. 229 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 37. 230 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 348. 57 Segundo Apel, embora Gadamer e Heidegger tenham contribuído para o novo pensar filosófico – em detrimento da racionalidade científica – ainda não conseguiram estruturar uma filosofia de fundamentação última, na perspectiva da transformação da filosofia transcendental. Apel, então, apresenta três argumentos que atestam sua crítica a esses pensadores. a) Gadamer refere-se erroneamente a Kant e à ideia da filosofia transcendental. Na questão sobre a justificação da validação do conhecimento (questio juri) é incorreto simplesmente presumir que Kant não pretendia impor qualquer prescrição às ciências naturais e que recusasse a pretensão (quanto à descoberta de princípios metódicos) de justificação de uma validação normativamente relevante (pois sem tal pretensão seria impossível diferenciar o válido do elucidável). É impossível recorrer à Crítica da razão pura sem pressupor a pergunta pelas condições de validade da ciência e pelas condições de sua possibilidade. Por isso, Kant diferencia-se dos representantes da filosofia metodológica pelo fato de pretender fundamentar a justificação da validação em base à dedução transcendental das condições de possibilidade e de validade do conhecimento em geral. Com essas observações, sustenta Apel, não se quer tirar o mérito da reviravolta hermenêutico-fenomenológica, ao apresentar as condições de possibilidades do conhecimento e, com isso, recusar os princípios normativos do cientificismo,231 mas postular uma hermenêutica-transcendental capaz de corrigir o modo de “compreender” no âmbito científico e pré-científico.232 b) Gadamer faz uma leitura historicamente correta dos conceitos “compreender”, “verdade” e “abertura” do ser aí heideggerianos. Fundamentalmente, trata-se de assegurar o “compreender” como modo de ser do próprio ser-aí, e não simplesmente um dos modos de agir do sujeito: “compreender como tal não é um modo de comportar-se do sujeito, senão um modo de ser do ser-aí”.233 Essa, que é a tese central da filosofia de Heidegger, assemelha-se à ideia da pré-estrutura do compreender, que reagiu fugazmente contra a atrofia do processo de conhecimento de origem kantiana. Foi Heidegger quem possibilitou a reflexão sobre as estruturas humanas fundamentais, em decorrência das estruturas semitranscendentais. A figura de pensamento, estruturada nos conceitos como “ser-que-se-antecipa”, “ser-aí como ser-no-mundo”, marca uma nova maneira de reflexão transcendental. Com ela fora substituída 231 A fim de demonstrar a relevância do pensar hermenêutico-fenomenológico, enquanto fator corretivo do cientificismo, Apel a compara com a fase tardia de Wittgenstein. Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 44. 232 233 Cf. APEL, op. cit., p. 41-44. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 33. 58 a forma de explicar o problema da “constituição” transcendental (como em Husserl) a partir de uma consciência pura, subjetiva. Ao contrário, as coisas do mundo estão constituídas e se apresentam desde sempre para o homem; a resposta do homem é sempre uma maneira de falar do mundo constituído. O ser-que-se-antecipa, onde se inscrevem os fatores semitranscendentais da “pré-estrutura” do compreender, é iniludível (como o a priori linguístico).234 Não obstante, questiona Apel, o desde sempre, nas condições de possibilidades do compreender, não afirma carecer de justificação enquanto condições de validação do compreender?235 c) Heidegger, de um lado, trouxe uma excelente contribuição para o problema transcendental-hermenêutico da constituição de sentido, de outro, não conseguiu avançar na reflexão quanto ao problema da verdade e sua validação. Pois, como afirma na sua obra Ser e tempo, “a verdade não se deixa provar em sua necessidade, porque a presença não pode ser colocada para si mesma à prova”.236 Por isso, segundo Apel, a filosofia deve retornar à Kant, mas na tentativa de transformação da filosofia transcendental, a partir de Heidegger e de Gadamer, na perspectiva de uma filosofia transcendental-hermenêutica. Ainda, em ser-quese-antecipa (de Heidegger), não foi possível abandonar por completo uma filosofia transcendental da subjetividade de procedência kantiana. Pois Heidegger aproximou o caráter projetivo do “compreender – que “constitui o ser-no-mundo no tocante à abertura do seu pre, enquanto pre de um poder ser”237 – com a “espontaneidade” da “imaginação” transcendental, no sentido kantiano. Também, Heidegger não estabeleceu nenhuma relação entre a “préestrutura do compreender” e uma subjetividade “pré-consciente”. Ora, a virada heideggeriana consiste no factum apriorístico do “estar-aberto do ser-aí”: da análise semitranscendental do ser-aí se busca um pensamento que provém do fato de pertencer à história do ser, isento de 234 Heidegger procura mostrar que o método fenomenológico tem parentesco com o método transcendental, mas que há uma diferença singular entre eles. Na obra Ser e Tempo, Heidegger faz notar que os enunciados emanados do método fenomenológico advêm do Dasein (na sua condição de ser-no-mundo) e não da subjetividade. A verdade em Heidegger, como verdade transcendental, não se confunde como o “eu de consciência” kantiano, mas fundamenta-se no Dasein, onde se dá o velamento e o desvelamento e onde se apresenta a questão sobre a verdade. Com isso, Heidegger pretende instaurar uma filosofia que se apropria da questão sobre a verdade além do a priori da subjetividade kantiana, uma vez que tal perspectiva (kantiana) rompe com a verdade sobre o ser do ser-aí. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 33-34. 235 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 44-46. Apel, então, distingue (em contraposição à filosofia hermenêutica) as questões sobre a constituição do sentido e sua justificação, questões que para ele não se excluem, mas que também não se confundem. Eis uma das grandes contribuições de Apel para a filosofia hermenêutica. 236 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 300. 237 Ibid., p. 205. No caráter da projeção do compreender, a presença já sempre se projetou e determina-se (é) no ato de estar se projetando. Ao ser, a presença se compreende e permanece a se compreender na possibilidade. Quer dizer, não há um plano previamente concebido sobre os atributos do ser. 59 qualquer normatividade metodológica. Para Apel, o “estar-aberto do ser-aí” pode ser interpretado como “um acontecimento anônimo da ‘clareação’; e tal acontecimento poderia não ter qualquer relação com um ‘ser-que-se-antecipa’, passível de reflexão face a sua validação conceitual, e pertinente à ‘intelecção pré-ontológica do ser’”.238 Tal concepção caracteriza a virada de Heidegger ao pensamento kantiano, denominada transcendentalfilosófica de sentido. Entretanto, Heidegger desenvolveu uma virada que, em certo sentido, apenas averiguou a problemática da constituição do sentido do mundo, dada na “préestrutura” do compreender. E, não menos redutível, apenas transmitiu o problema da validação do sentido a uma filosofia transcendental subjetiva, concernente à metafísica. 239 Por isso, conforme Apel, Heidegger se equivocou ao indagar que a abertura de sentido pudesse preceder a conformidade dos enunciados, como prescrita pela hermenêutica do ser-aí: o problema está em entender a abertura do sentido com a verdade no sentido de desocultamento.240 Como afirma Heidegger, “o sentido deve ser concebido como o aparelhamento existencial-formal de abertura pertencente ao compreender”.241 Ora, o sentido não pode ser definido no ato de julgar, ao contrário, ele é um existencial da presença. E o enunciado (que por muito tempo fora compreendido como o lugar próprio da verdade), ao mostrar algo a partir de si mesmo e por si mesmo se comunicar, dá-se somente na abertura do compreender. Assim, “o enunciado necessita de uma posição prévia do que se abriu, a fim de mostrá-lo a partir de si mesmo e por si mesmo segundo os modos de determinação”.242 Para Apel, Heidegger não percebeu que a abertura de sentido possibilita a verdade do enunciado em certo sentido, mas se distingue da verdade porque somente esta está fundada no ser do ente, mostrado e enunciado: “a constituição do sentido é uma condição da verdade, porém não a verdade mesma; prejulga o espaço da possível verdade ou não verdade dos enunciados, porém é no discurso argumentativo que se pode avaliar a justeza desses através 238 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 47. Apel, ao se referir a “virada” heideggeriana, comenta: “e se essa filosofia (tal como a ontologia do ‘estarpresente’, fundamentada anteriormente por Aristóteles) pensa ser capaz de superar ou ‘suplantar’ a metafísica da Era Moderna, fundamenta sobre a autonomia do sujeito que pensa, quer e age, então se deve pelo menos suspeitar de que aqui ‘auto-nomia’ – que o ser humano conquistou por meio do ‘Esclarecimento’ [Aufklärung], sob o signo da autonomia da razão – pode vir a ser dissipada sob a forma de uma nova credulidade no destino, em benefício de uma nova ‘alienação’ (tal como disse J. P. Sartre sobre o Heidegger da fase tardia).” APEL, op. cit., p. 48. 240 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 34-36. 241 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 213. 242 Ibid., p. 219. 239 60 da justificação de pretensões de validade”.243 A constituição de sentido só poderá encontrar lugar próprio e justificação da validade no acordo, como a priori dialético. Ainda, para Apel, Heidegger “não se deu conta de que unicamente no caso dos enunciados há uma diferença entre a instância subjetiva e a objetiva, diferença que possibilita comprovar ou justificar o quanto temos da coisa”.244 Heidegger, portanto, ao separar o problema da constituição de sentido do compreender com a problemática da validade de sentido, deixa em dúvida sua pretensão de uma nova filosofia, de virada do pensamento kantiano.245 Ao prosseguir com sua análise crítica sobre a transformação da filosofia transcendental pela filosofia hermenêutica, Apel observa que a pergunta gadameriana como é possível compreender? deve ser proposta ao todo da experiência do mundo e da vida do homem. Pois este enfoque hermenêutico “supera tanto a epistemologia como a filosofia da reflexão, ao propor uma ‘teoria da experiência real’, na qual a compreensão se entende como um acontecer experiencial, pertencente à história”.246 Para Apel, este questionamento é fundamental para a hermenêutica transcendental, “de uma filosofia transcendental que reflita a pré-estrutura do Compreender para todas as formas de cognição científica e pré- 243 RUEDA, Luis Sáez. Facticidade y excentricidad de la razón. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 237. Para Apel, não há dúvida que a averiguação sobre a constituição de sentido pode lhe trazer um avanço para a filosofia: a pertença à história e à finitude da existência (Heidegger e gadamer); o a priori corporal, como pontos de vista da posse do mundo (Merleau-Ponty); os interesses do conhecimento; formas de vida associadas com a compreensão linguística ordinária (Wittgenstein). Cf. Ibid., p. 237. 244 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 36. 245 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 46-48. Segundo Apel, as investigações de E. Tugendhat trouxeram excelentes contribuições sobre o conceito de verdade em Heidegger: a concepção de verdade em Heidegger (herdada por Husserl), entendida como verdade declarativa – verdade enquanto descobrimento do ente tal como ele é – foi ampliada e entendida no sentido do seu conceito do estar-aberto do ser-aí (ou “clareação” do ser). Heidegger compreendeu que uma declaração é verdadeira quanto ela des-cobre. Não obstante, Heidegger comparou a verdade à eletheia (no seu sentido próprio de desocultação). E como o descerramento de sentido sempre se refere ao ocultamento de sentido, Heidegger não percebeu a distinção entre ele e a verdade declarativa. Pois somente essa se refere ao ser-em-si do ente, como também somente nela encontra-se o diferencial entre as instâncias subjetiva e objetiva. E é nessa condição que se tornará possível averiguar ou justificar nossas asserções. Ora, no caso da clareação (ao mesmo tempo desocultamento e ocultamento) não há diferença entre sujeito e objeto, como também não existe possibilidade de justificação imediata. Assim, a verdade, na concepção de clareação, não pressupõe qualquer ato de responsabilidade. Dessa concepção acerca da verdade, Apel extrai as seguintes consequências: a) Heidegger não desenvolveu um novo conceito de verdade, mas apenas o desvelamento da pré-estrutura da problemática da verdade. A pré-estrutura assemelha-se ao “compreender”, enquanto estar-aberto do ser aí, que já precedente toda compreensão da subjetividade; b) o estar-aberto do ser aí, que precede toda subjetividade, não imprime verdade em si mesmo e, por isso, não há qualquer motivo para consentir a “virada” de Heidegger e nem para pensar na resolução da problemática da constituição e justificação em sentido kantiano. A filosofia do ser ainda não conseguiu superar a filosofia transcendental. Deve, também, ser extinto a separação, imposta por Gadamer, entre a possibilidade do compreender e a justificação dos resultados do compreender. A filosofia, então, roga por uma reviravolta de caráter pragmático-transcendental-hermenêutico; c) na historicidade da pré-estrutura hermenêutica do compreender é apresentado o particular desafio para a transformação de uma filosofia transcendental. Cf. Ibid., p. 49-51. 246 CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental, p. 52. 61 científica”.247 Mas esta pergunta não pode ser realizada sem a pergunta sobre a validade do compreender. Ora, como propõe Gadamer, tal questionamento deve ser respondido pela fusão de horizontes ou mediação do presente com o passado. Ao contrário, segundo Apel, para responder tal pergunta é necessário estabelecer um critério de diferenciação entre o “compreender” adequado e o “compreender” inadequado (ou seja, distinguir o “compreender” do “mal entendido”). Neste sentido, a exigência de uma hermenêutica filosófica normativometodologicamente deve ser garantida independentemente da demonstração dos limites da possibilidade do compreender. Sem uma criteriologia relevante, o discernimento transcendental-hermenêutico não pode se diferenciar da “elucidação” empírico-analítica. Para Gadamer, os pré-juízos e opiniões dados na consciência do interpretante não estão à disposição dele (do interpretante). Ainda mais, como ele não está em condições de distinguir os pré-juízos que possibilitam a compreensão daqueles que obstruem a compreensão, “se faz necessária mediação entre o presente e o passado para que aconteça o discernimento acerca da validade dos pré-juízos”.248 Segundo Apel, este critério é irrelevante para discernir a validade dos pré-juízos, uma vez que seria necessária uma distância temporal como também reflexiva e crítica para avaliar os pré-juízos e, dessa maneira, possibilitar o julgar da compreensão e dos pré-juízos pela dimensão crítico-normativa, capaz de validar seu julgamento e de se auto-avaliar como instância crítica. Também, para Apel, é impossível considerar a fusão de horizontes como critério relevante para validação: ainda que seja necessária a fusão de horizontes para a compreensão, ela, por si só, não possibilita reflexão crítico-reflexiva, pois somente possibilitará o compreender diferente, e não ao compreender melhor. 249 Segundo Gadamer, na obra verdade e Método, o sentido de um texto sempre estará superior ao seu autor. O ato de compreender nunca se tornará uma reprodução, mas sempre produção. No entanto, como afirma Gadamer, a compreensão não pode pautar-se por um compreender melhor, mas sempre de forma diferente: “quanto se logra compreender, compreende-se de um modo diferente”.250 Gadamer sustenta sua proposição com a sentença: 247 APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 52. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 39. 249 Cf. Ibid., p. 39-40. 250 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 392. Gadamer, com esta proposição, está fazendo uma crítica ao Historicismo, que acredita na objetividade da verdade, ou seja, que toda análise deveria retornar ao espírito da época e utilizar-se dos conceitos e representações próprios daquele momento histórico, em detrimento da originalidade do pensar de um intérprete. Dessa maneira, poder-se-ia alcançar a objetividade histórica. Cf. Ibid., p. 393. 248 62 “o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, visto ser um processo infinito”.251 Para Apel, se o compreender simplesmente resulta no compreender diferente, porque está condenado à infinitude da interpretação (pois, segundo Gadamer, “não pode haver uma interpretação correta ‘em si’, justamente porque em cada um está em questão o próprio texto”252), toda situação histórica somente suscita mais uma compreensão (diferente), porém não capaz de sustentar uma argumentação entre os dialogantes, que seja sustentável ou incontestável. Neste sentido, como afirma Apel, a máxima gadameriana entender um autor melhor do que ele mesmo compreende a si parece apenas apontar outra maneira de entender, e nada mais. Este cânon “somente pode entender-se desde a radical finitude que reivindica a hermenêutica experiencial e o enfrentamento não menos contundente contra a filosofia do espírito que se impute o protagonismo da história universal”.253 Pois Gadamer entende que a hermenêutica, ao romper com o saber absoluto e admitir que cada interpretante tem legitimidade no ato de interpretação referente à história, pode atribuir superioridade a um intérprete, a capacidade de “compreender melhor” (como entende Gadamer, a hermenêutica caracteriza-se por ser uma “hermenêutica da finitude”: a consciência humana é determinada pela história254), e que, portanto, “haveria um progresso e consequente superioridade das interpretações tardias sobre as precedentes, sendo capazes de entender as gerações anteriores melhor do que estas entenderam a si mesmas”.255 Sobre essa sentença, para Apel, apenas é possível considerar, como relevante, a possibilidade de verdade do interpretando, uma vez que tal possibilidade compõe o elenco dos pressupostos constitutivos da hermenêutica. No entanto, “deduzir a inferioridade de quem compreende acaba por cair na legitimação conservadora da tradição através da reabilitação do argumento de autoridade anterior ao Iluminismo europeu”.256 Nesta perspectiva, para Apel, além da superioridade do interpretando, há necessidade de um autoprevalecimento reflexivo do espírito (no sentido hegeliano), que derive em um primado judicativo do intérprete. Este, por sua vez, caso não atribua a si mesmo um julgamento crítico e verdadeiro, não passará de um instrumento eficaz a serviço do dogmatismo (segundo alguns “racionalistas críticos”, a 251 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 395. Ibid., p. 514. 253 MORATALLA, Agustín Domingo. Gadamer y Apel: hermenéutica experiencial o hermenética trancendental? ANTHROPOS 183 (1999), p. 74. 254 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-pragmática, p. 227. 255 SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 61. 256 Ibid., p. 61. 252 63 hermenêutica deve fundar-se numa dimensão dogmática e distanciar-se de qualquer reflexão crítica).257 Dessa forma, a contradição entre o racionalismo crítico e a ideia hermenêutica pode ser superada caso entenda a hermenêutica como princípio normativo, sustentada pela ideia transcendental-filosófica do compreender. Somente dessa maneira será possível postular resposta ao problema da possibilidade do compreender.258 “O que Apel propõe é uma dialética em que identidade e alteridade possam compor a um só tempo a síntese do compreender”.259 Mas uma dialética que supere o idealismo metafísico e o materialismo, a saber, uma dialética mediada entre hermenêutica e a crítica da ideologia, em constante busca pelo progresso do acordo mútuo entre os indivíduos, como tentativa de correção por meio da crítica.260 Conforme Apel, não é necessário abandonar a perspectiva alemã do Compreender, como autoprevalecimento do Espírito e autoconhecimento por meio do outro, para assegurar a historicidade e superioridade do interpretando.261 Todavia, tal perspectiva requer a introdução do princípio regulativo em sentido kantiano. Como afirma Apel, “trata-se hoje, primeiro, de fixar a concepção do Idealismo alemão do saber-se do Espírito a si mesmo na alteridade como condição de possibilidade para algo próximo do Compreender-o-sentido; e, segundo, de conferir a tal concepção uma validação teórico-científica e metodológica”.262 Conforme Apel, a máxima compreender melhor um autor do que ele compreende a si mesmo parece relevante e inevitável e pode até ser interpretada como princípio normativo. O compreender um autor melhor que ele mesmo não quer dizer que o autor esteja 257 No sentido hermenêutico de Gadamer, a verdade não é refletida de uma maneira crítica. Pois não há averiguação sobre a veracidade ou falsidade da compreensão. Dessa forma, não há questionamento pela objetividade da verdade, mas somente pela efetivação histórica, pelo fato da verdade consolidar-se como um acontecer efetivo-histórico. Gadamer, então, funda um dogmatismo acrítico, que se expressa na sua própria expressão “antecipação da perfeição” ou “pré-juízo da perfeição”, que é o pressuposto formal que guia toda compreensão. Tal pressuposto sustenta que o compreensível representa uma unidade perfeita e que o dito pelo texto é uma perfeita verdade: um texto é aquilo o que exatamente diz o “pré-juízo” e, por isso, este só pode falar de uma perfeita verdade. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 42. 258 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 54-57. 259 SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 62. 260 Cf. Ibid., p. 62-63. Segundo Apel, o progresso do acordo mútuo pode ser admissível a partir de uma crítica transcendental do sentido. Assim, a pré-estrutura transcendental hermenêutica considera que os indivíduos estão inclinados (ou “condenados”), na dimensão a priori, ao acordo intersubjetivo, condição de todo entendimento e conhecimento válido sobre as coisas e o mundo social. Somente nesta perspectiva se poderá superar o solipsismo metódico, instaurado desde Descartes. Cf. Ibid., p. 63. Não há dúvida que esta concepção de Apel, ao pressupor que os homens estão “condenados” ao entendimento, seja assunto para divergências e longas discussões no seio da Ética do Discurso. Pois a condição transcendental, ainda que ancorada na hermenêutica e na interação entre sujeitos, é um ponto de extrema aproximação entre Apel e Kant e que, por isso, assegura Apel como portador de uma ética universal, o que para muitos vem a ser mais um representante do nominalismo, já instaurado por Kant. 261 Este foi o ponto de partida da discordância de Apel com Gadamer. Cf. MORATALLA, Agustín Domingo. Gadamer y Apel, p. 74. 262 APEL, op. cit., p. 57. 64 desqualificado de compreensão, mas que a tarefa da hermenêutica estará sempre radicada na superioridade de um autor (outro), enquanto a tarefa do compreender for possível, quer dizer, compreender sempre um autor melhor do que ele compreende a si mesmo. Eis, então, um postulado necessário para a filosofia hermenêutica.263 No entanto, como analisa Apel a partir de uma perspectiva crítica, tal postulado está comprometido devido à distância temporal, prescrito por Gadamer em Verdade e Método: a distância temporal permite “distinguir os verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal-entendidos” (fusão de horizontes).264 Pois ao pressupor uma identificação com o autor, Gadamer reduz o entendimento a um campo ilusório, uma vez que a identificação com o autor esteja pautada por mecanismos cognitivos no sentido psicológico. Para Apel, uma mediação só pode ocorrer nos atos intencionais separados espaçotemporalmente no “pensamento”, em detrimento de conceitos temporais de ocorrência.265 Resulta, então, que Gadamer, ao garantir que a compreensão consista no compreender melhor um autor do que ele compreende a si mesmo, apenas confere superioridade à compreensão por pautar-se de modo diferente, como também reduz a automediação progressiva da compreensão, assim como impossibilita o questionamento sobre a objetivação da verdade pela efetivação histórica. Neste sentido, não é possível afirmar que o modo de compreender diferente encerre a compreensão para a hermenêutica filosófica, que ela baste em dizer que se compreende de maneira diferente. Mas somente no caso e na medida do compreender melhor se pode dar segurança da compreensão:266 no âmbito da 263 Segundo Apel, “é possível aplicar esse postulado até mesmo no caso-limite da compreensão [Verstehen] de teorias matemáticas. Pois à medida que esse Compreender, como Compreender histórico, pertence à história espiritual, então o pensamento matemático não é apenas reconstruído de forma idêntica, mas sim inserido em um contexto mais abrangente da Matemática. Sob esse ponto de vista, talvez se possa afirmar que a geometria euclidiana não tenha sido entendida por completo pelos muitos matemáticos que se limitaram a reproduzi-la; entenderam-na, sim, e melhor do que o próprio Euclides, os que mais tarde vieram a relativizá-la. Einstein, nesse sentido, afirmou de modo sagaz só ter realmente entendido, em Física, as coisas que tinha sido capaz de aprimorar.” APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 58. 264 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 395. Gadamer está preocupado em garantir a “originalidade” do intérprete ao compreender um texto e, para isso, ele deve livrar-se de todo preconceito, de requisitos pré-estabelecidos para sua análise. Por isso, a distância temporal pode ser necessária para uma crítica da hermenêutica. Também atesta Gadamer (em Verdade e Método) que alguns críticos atacam a hermenêutica filosófica por ela não referir-se à universalidade científica das coisas (e, por isso, ser a-científica) e por atacar a tradição (pelo fato dela imprimir preconceitos acerca da verdade), reduzindo-a simplesmente como algo secundário. Neste sentido, Gadamer afirma que Apel, ao fazer a crítica à hermenêutica, não conseguiu entender a hermenêutica filosófica na sua dimensão de aplicação, ou seja, ao criticar a tradição, a hermenêutica combate toda “aplicação consciente” que determine o compreender e que favoreça a corrupção ideológica do conhecimento. Apel e todos os outros críticos, segundo Gadamer, deveriam considera seriamente esse princípio da hermenêutica filosófica. Cf. Ibid., p. 303. O texto segue com uma plausível análise de Gadamer (a favor e contra) sobre o pensamento crítico de Apel, particularmente nas páginas 304-309 da mesma obra. 265 Cf. APEL, op. cit., p. 60. 266 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 41. 65 hermenêutica transcendental deve-se postular que “a razão humana não somente se pensa como finita e empiricamente condicionada, senão que pode adotar, não sem um disciplinado esforço, a perspectiva da universalidade”.267 Por isso, torna-se necessário uma mediação por meio daquilo que é idêntico ao pensamento, a linguagem (que alcança o mérito de instrumento de identificação). Ao conceber que identidade e alteridade estejam sempre pressupostas no compreender, deve-se pensar, então, numa fundamentação a partir do pensamento e mediada com a natureza: uma fenomenologia dialética iniciada “no ponto da mediação dos momentos de espírito e matéria, que são para nós ‘equiprimordiais’. Tal fenomenologia corresponderia à ‘pré-estrutura do Compreender’ descoberta por Heidegger”.268 Fundamentalmente, para Apel, a filosofia hermenêutica deve-se pautar por uma dimensão crítica, fundada no questionamento kantiano pelas condições de possibilidade e validade do conhecimento, que se traduz como critério de toda validade e fundamento do conhecimento, pressupostos tais de toda interpretação com sentido269 e, com tudo isso, guiada por um princípio regulativo.270 Por isso, Apel procura construir uma filosofia capaz de pensar o problema hermenêutico da constituição do sentido, via à reflexão transcendental, interpretado pela linguagem. Apel, portanto, identifica a contribuição de Heidegger e Gadamer ao problema da constituição do sentido, mas também procura superá-los, por meio de uma análise crítica, pelo fato de eles não conseguirem dar uma resposta plausível ao problema da verdade e de sua validade. 267 MORATALLA, Agustín Domingo. Gadamer y Apel, p. 74. Ainda sustenta Apel que a “produtividade do distanciamento temporal” (do entender de outra maneira) parece “ser possível de concretização através do momento materialista da motivação de interesses de todos os atos humanos, insondada tanto pelo autor como pelo intérprete [...] uma dialética situada aquém do idealismo metafísico e do materialismo”. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 61. 268 APEL, op. cit., p. 61. 269 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 43. Dessa forma, segundo Apel, a filosofia transcendental deve tratar das condições de possibilidades e validade do conhecimento. Essa condição permite à filosofia transcendental assegurar-se da dimensão crítica, ao estabelecer critérios para distinguir o verdadeiro do falso. Ao contrário, Gadamer reduz a hermenêutica à pergunta pelas condições de possibilidade. E, ainda que ele (em Verdade e Método) utilize termos como adequação, interpretação correta, validade de opiniões prévias, pré-juízos legítimos, exame de opiniões, legitimidade dos pré-juízos, não consegue desenvolver satisfatoriamente a problemática da validade da compreensão, a problemática da verdade. Cf. Ibid., p. 32. 270 Cf. MORATALLA, op. cit., p. 74. 66 2.3 A transformação semiótica da lógica transcendental kantiana Segundo Apel, Charles S. Peirce instaurou a transformação da filosofia transcendental kantiana ao postular uma semiótica tridimensional.271 Esta empreitada (já acenada por Charles Morris na logic of science moderna) consolidou-se como reconstrução crítica da Crítica da Razão Pura. Na interpretação de Apel, de um lado, em Peirce encontramse as principais características da lógica da ciência analítica, por tratar do problema de validação ou justificação e por substituir a crítica cognitiva pela crítica de sentido; de outro, nota-se em Peirce uma contraposição à logic of science, ao renunciar a sintática e a semântica como condições de possibilidade e validade de conhecimento em favor de uma dimensão pragmática trivalente de interpretação de signos. Uma vez que o conhecimento agora deve está mediado pelos signos, a crítica da metafísica não se limita à crítica do conhecimento, mas à crítica de sentido, por descobrir a falácia do conhecimento pré-semiótico (na sua relação diádica) e a limitação da lógica científica (sintático-semântico).272 Peirce desconsidera a relação bivalente entre teoria e fatos e, ao contrário, funda uma base trivalente ancorada numa lógica científica semiótica. Peirce, então, inaugura uma lógica triádica da interpretação dos signos,273 o que permite, para Apel, “recorrer a um elemento intersubjetivo análogo à unidade transcendental da consciência kantiana”.274 Fundamentalmente, para Apel, este esforço peirceano remete a uma transformação semiótica da “lógica transcendental” kantiana, que consiste no fato de Peirce deduzir, a partir da semiose, “os três tipos de conclusão de sua lógica da pesquisa, bem como os três tipos de signos, como ilustrações de suas três categorias fundamentais”.275 A semiose, como afirma Peirce, pode ser explicada como: “um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo 271 Charles Sanders Peirce (1839-1914) é conhecido como o pai do pragmatismo, pensador de aguda capacidade intelectual e escritor de uma vasta obra filosófica. No entanto, alguns de seus discípulos como Willian James e John Dewey ficaram mais conhecidos que o próprio mestre. Peirce, por muito tempo em vida, permaneceu isolado e sem muito prestígio acadêmico e grande parte da sua obra fora reconhecida somente entre 1931 e 1935, quando ordenada sistematicamente e, depois em 1958, com a publicação dos oito volumes do Collected Papers. Apel foi um grande estudioso da obra de Peirce e dele absorveu os fundamentos para o seu pensamento e estruturação da Ética do Discurso. Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 78-79. Como entende Apel, Peirce, no seu itinerário filosófico, obteve quatro períodos fundamentais: 1) da crítica do conhecimento à crítica do sentido (1855-1871); 2) o surgimento do pragmatismo da crítica de sentido (1871-1878); 3) do pragmatismo à metafísica da evolução (1885-1898); 4) do pragmatismo ao pragmaticismo (1898-1914). Cf. APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce. Madrid: Gráficas Rogar, S. A., 1997. 272 Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. 273 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 187. 274 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 50. 275 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 194. 67 aspecto ou modo, representa algo para alguém”.276 Eis as três categorias postuladas por Peirce e interpretadas por Apel: na qualidade (primeiridade) algo como algo é expresso em seu serassim, por meio de um signo. O “ícone” (signo que não tem conexão com o objeto que representa. Suas qualidades somente se assemelham a do objeto277) é próprio desta categoria e deve estar explícito “em todo predicado de um juízo experiencial, a fim de que se integre à síntese da representação o teor imagético de uma qualidade universal”;278 na relação diádica (segundidade) há uma interação entre o signo e o objeto. Nesta categoria o “índice” (signo que está fisicamente conectado com o seu objeto, que independe de uma mente interpretante279) “deve estar representado em todo juízo experiencial, a fim de garantir a identificação espaço-temporal dos objetos a serem determinados por predicados”;280 na relação triádica (terceiridade) há uma mediação de algo para um interpretante. O “símbolo” (signo que mantém uma relação com o objeto por força de um interpretante, sem a qual essa conexão não existiria281) corresponde a esta categoria “e tem a principal função da síntese como ‘representação’ em conceitos de algo como algo”.282 Tais conceitos dependem da função do ícone e do índice. E esses, sem a função da representação, tornam-se cegos. Pois somente a interpretação pode atribuir sentido à função do índice e do ícone. Segundo Apel, para entender como estas três categorias e signos contribuem para o esclarecimento de condição de possibilidade e validade da experiência é necessário, como sustenta Peirce, ordenar os três tipos de conclusão às três categorias ou signos: “à terceiridade corresponde à dedução, como mediatização racionalmente necessária; à secundidade, a indução, como confirmação do que é geral pelos fatos representáveis aqui e agora; e à primeiridade, a abdução, como cognição de novas qualidades do ser-assim”.283 Conforme Apel, a descoberta da abdução (hipótese) possibilitou reais efeitos para a lógica pragmática de Peirce, “pois a hipótese, segundo Peirce, é a conclusão que amplia nossa cognição, em sentido kantiano, e que já está inconscientemente presente no juízo perceptivo”. 284 Ora, a abdução pressupõe uma premissa geral e necessidade de ser provada empiricamente com o apoio da indução. Com isso, abdução e indução possibilitam responder a pergunta kantiana sobre a 276 PEIRCE. Charles S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 46. Cf. Ibid., p. 73. 278 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 194. 279 Cf. PEIRCE, Charles S. Semiótica, p. 73. 280 APEL, op. cit., p. 194. 281 Cf. PEIRCE, op. cit., p. 73. 282 APEL, op. cit., p. 195. 283 Ibid., p. 195. 284 Ibid., p. 196. 277 68 possibilidade e validade da experiência. Nesta perspectiva, a abdução tem a função de possibilitar a experiência (“aqui é preciso que se mediatize, em primeira linha, a função de ícone dos predicados proposicionais com o significado intencional dos predicados como símbolos”285); e a indução, de elucidar a validação empírica dos pressupostos universais, sejam eles explícitos nos juízos perceptivos ou nas hipóteses normativas (“aqui é preciso que se mediatize, em primeira linha, a função de índice da linguagem como identificação dos objetos apresentáveis aqui e agora como significado extensional dos predicados como símbolos de classe”286). Uma vez que a hipótese, dada em um juízo, possa ser testada empiricamente (por indução), tal constatação empírica pode ser realizada mesmo antes da validação empírica do juízo questionável, por meio da dedução. Neste procedimento, conforme Apel, Peirce explicita seu método do aclaramento de sentido e da crítica de sentido, que consiste em sua máxima pragmática. Para Peirce, na concepção de Apel, esse método é aplicado ao conceito de real, sob a sentença: o objeto de minha experiência é real, e não mera ilusão.287 Com isso, Peirce chega ao “ponto mais alto” de uma unidade da consistência possível da cognição:288 o real é aquilo que os raciocínios, mais cedo ou mais tarde, explicitam o que ele é e, por isso, não depende de caprichos individuais. Ao contrário, a concepção de realidade envolve a noção de uma comunidade ilimitada de investigação. Fundamentalmente, nisso consiste a máxima de transformação peirceana da lógica transcendental kantiana: na concepção de uma comunidade ilimitada “convergem o postulado semiótico de uma unidade supra-individual da interpretação, de um lado, e o postulado próprio à lógica da pesquisa de um asseguramento experiencial da experiência ‘in the long run’, de outro”.289 Com isso, como entende Apel, Peirce distancia-se de toda dedução transcendental, no sentido kantiano. No lugar dos princípios constitutivos da experiência, como requerido por Kant, postula os princípios regulativos, “o que faz com que ele desloque a universalidade e validade das proposições científicas para a meta do processo de investigação”,290 apoiado pelo 285 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 196. Ibid., p. 196. 287 Cf. Ibid., 197. 288 Segundo Apel, a unity of consistency, que representa o ponto mais alto da transformação semiótica filosofia transcendental kantiana, não consiste na unidade objetiva das representações de um sujeito “consciência”, mas nas representações dos objetos semioticamente validadas por uma comunidade interlocutores, que somente pode ser alcançada pela interpretação dos signos. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética Discurso e Verdade em Apel, p. 51. 289 APEL, op. cit., p. 197. 290 COSTA, op. cit., p. 51. 286 da de de do 69 caráter falibilista de toda proposição.291 Ainda mais veraz, segundo Apel, é a crítica de Peirce à concepção kantiana de “coisas em si” incognoscível, e mais ainda contundente é a inversão de Peirce sobre esta questão: “ao invés de distinguir entre objetos cognoscíveis e incognoscíveis, Peirce distingue, sim, entre reais cognoscíveis ao longo do tempo e o já factualmente conhecido, sob a ressalva de falibilidade”.292 Segundo Apel, o “idealismo transcendental”, compreendido pela distinção entre coisas em si incognoscível e cognoscível, é o pressuposto basilar para a transformação da filosofia kantiana por Peirce, o que representa uma nova “reviravolta copernicana” na filosofia ocidental.293 Peirce, ao conferir fusão dos princípios da ciência à prática, aponta sua definitiva transformação da filosofia kantiana, pois tal condição rejeita a distinção kantiana entre razão teórica e prática, entre princípios regulativos e postulados morais. Esta acepção permite entender que “o próprio processo cognitivo ilimitado, como processo social real, cuja saída factual é incerta, constitui-se ao mesmo tempo em objeto da lógica e da ética”.294 Com isso, Peirce chega ao cume de sua transformação da filosofia transcendental kantiana: aquele que almeja se comportar de maneira lógica deve sacrificar todos os seus interesses particulares em prol de uma comunidade ilimitada de comunicação, onde somente nela poderse-á alcançar a verdade das coisas.295 O interlocutor, no estado de consciência finita e de suas convicções subjetivas, deve adotar as atitudes da auto-renúncia (frente aos próprios 291 Segundo Apel, Peirce fundamentou o princípio falibilista da ciência empírica ao mesmo tempo em que fundamentou uma teoria da verdade como consenso, assegurada por este mesmo princípio. Importa, para Apel, pensar o falibilismo de Peirce numa profunda relação ao falibilismo de Popper: para Peirce e Popper o falibilismo corresponde a uma teoria evolutiva do saber, quer dizer, uma teoria do melhoramento do saber, a longo prazo (mas sem qualquer proximidade com o ceticismo); também tem o caráter de, numa única experimentação, refutar uma hipótese por mais importante que ela represente. No entanto, diferente de Popper, o falibilismo peirceano acende, além de pressupor a validade das hipóteses, uma teoria normativa e está referenciada ao consenso. E isto ocorre porque em Peirce o falseamento está associado, diferente de Popper, dentro de um contexto mais amplo de verificação, estruturado pelos raciocínios abdutivos, dedutivos e indutivos. Assim, em Peirce o falibilismo do conhecimento sintético se apóia nos raciocínios abdutivos que, por sua vez, têm sua confirmação empírica nos raciocínios indutivos. E pelo fato desses raciocínios não pretenderem uma conclusão obrigatória, é possível postular que todo conhecimento sintético deve ser falível. Para Apel, esta teoria falibilista em Peirce leva a entender que toda convicção, particularmente aquelas advindas de raciocínios sintéticos, deve estar assegurada por uma reserva falibilista. Neste sentido, ao incluir o princípio falibilista nos raciocínios sintéticos, Apel considera que o princípio peirceano está referido a priori a certas ideias reguladoras. Peirce, então, reconhece uma dedução transcendental de validade in the long run, diferente da dedução transcendental kantiana, de todos os raciocínios sintéticos. Assim, interpreta Apel, que a convergência dos raciocínios sintéticos, numa comunidade de comunicação, possibilita não somente o conhecimento progressivo, mas um conhecimento profundo do real, e tal conhecimento, dado pelo falibilismo, implica numa teoria realista da correspondência para a verdade dos enunciados. O falibilismo tem o caráter de oferecer o conhecimento sobre o real. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 340-344. 292 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 200. 293 Cf. Ibid., 200. 294 Ibid. p. 201. 295 Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 76-77. 70 interesses), do reconhecimento (de todos os direitos dos demais interlocutores de uma comunidade real de investigação), do compromisso (na busca da verdade) e da esperança (por um consenso definitivo). Este, que é o ponto supremo da transformação semiótica da filosofia transcendental kantiana, foi chamado (um pouco mais tarde) de “socialismo lógico”. 296 Dessa forma, segundo Apel, Peirce superou definitivamente o solipsismo metódico, ao considerar que o indivíduo não pode servir-se a si mesmo ou servi-se de uma comunidade em benefício próprio, mas somente a uma comunidade de interlocutores, em busca da verdade e do consenso.297 Apel, na construção da Ética do Discurso, irá absorver este legado do socialismo lógico por entender não ser possível estruturar uma ética solidária sem considerar as atitudes da auto-renúncia, do reconhecimento, do compromisso e da esperança. Não obstante, procurará superar este legado, “porque a comunidade de investigadores será estendida para alcançar a humanidade em seu conjunto e porque o socialismo lógico científico se converterá em socialismo pragmático e hermenêutico”.298 Portanto, a transformação semiótica da lógica transcendental, já criticamente reestruturada por Apel, substitui o eu penso kantiano pelo nós argumentamos; a comunidade dos investigadores peirceana pela pragmática transcendental em uma comunidade ideal de comunicação;299 o princípio de universalização do imperativo categórico e o “reino dos fins” pela ideia consensual regulativa da comunidade interpretativa; o factum kantiano da razão pela argumentação entre os dialogantes.300 2.3.1 O postulado da comunidade de experimentação e interpretação Para Peirce, como afirma Apel, a cognição de algo só pode acontecer em uma relação trivalente. A essencialidade da cognição consistirá na interpretação de algo como algo, mediatizado pelos signos (terceiridade). “O essencial do conhecimento não é a relação fática de um objeto intramundano frente a outro (categoria da segundidade), mas a interpretação de algo como algo, a qual deve estar mediada por signos (categoria da terceiridade).”301 Neste processo cognitivo não pode faltar nenhum dos elementos da relação 296 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 201. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 77. 298 Ibid., p. 77. 299 Cf. Id. La transformación de la filosofía transcendental kantiana. In APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidos, 1998, p. 20. 300 Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiotica filosófica y ética discursiva, p. 53. 301 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 53. 297 71 triádica caso se postule a cognição das coisas. Com isso, Peirce rejeita, como já mencionado, toda e qualquer cognição baseada na relação bivalente sujeito-objeto, teorias-fatos, como também advinda de meros dados sensoriais ou de conceitos puros, no sentido da síntese transcendental da apercepção kantiana. Tal perspectiva alcança o ponto mais radical da transformação semiótica da filosofia kantiana. Os signos, como entende Apel a partir de Peirce, no processo de entendimento e conhecimento entre os dialogantes, não somente determinam a linguagem falada ou escrita, mas ditam os dados da experiência exterior e interior, pois os conteúdos individuais da consciência como também os elementos do mundo exterior são veículos de signos. Como afirma Peirce, “o ser humano deve conceber-se como um pensamento-signo”.302 Segundo a interpretação de Apel, três elementos decorrem da relação trivalente dos signos, fundada por Peirce, e que são fundamentais para a constituição da ética do discurso:303 a) não há nenhuma cognição de algo como algo sem uma mediatização sígnica real com base em veículos sígnicos materiais. Os símbolos, índices e ícones estão inclusos aqui. Esses dois garantem a referência situacional do discurso e sua estrutura e expressão, bem como também possibilitam ao indivíduo integrar a natureza e a técnica à função sígnica da linguagem e, com isso, alcançar a cognição. A linguagem convencional dos símbolos está em estreita relação com os objetos identificáveis. Nesta primeira dimensão ocorre, segundo Apel, a transformação semiótica da epistemologia em sentido estrito; b) não há qualquer função de representação do signo para a consciência sem um mundo real, que em princípio precisa ser pensado como representável em aspectos, isto é, cognoscível em aspecto. Para Peirce, a suposição kantiana da coisa-em-si incognoscível é um absurdo, pois já concebe como incognoscível aquilo que pode ser cognoscível. Ora, para ele todas as “qualidades” da coisa incognoscível já pressupõem a existência de um real cognoscível. Uma sensata distinção somente pode acontecer, como já explicitado, entre as coisas que ainda podem ser cognoscíveis daquelas já cognoscíveis faticamente (o que torna possível Apel entender que cognoscibilidade e ser são a mesma coisa). Essa distinção corresponde ao falibilismo e ao convencionalismo crítico, que regulam a validação do conhecimento dos indivíduos.304 Nesta segunda dimensão ocorre, segundo Apel, a transformação semiótica da crítica cognitiva; c) 302 APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 70. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. 304 Uma vez que distingue aquilo já conhecido por uma comunidade finita de investigadores e aquilo que pode ser conhecido por uma comunidade ilimitada de comunicação, tal distinção, juntamente com o terceiro elemento da relação trivalente, representa o ponto decisivo para a ética apeliana. Cf. CORTTINA, op. cit., p. 73. 303 72 não há nenhuma representação de algo como algo por meio de um signo sem que haja interpretação por um intérprete real. O processo de cognição, por um lado, imprime a invalidade da consciência pura por um sujeito real portador de signos; por outro, promove a substituição da consciência objetual pela interpretação dos signos, que confere transcendência a toda subjetividade finita pelo processo de cognição como processo de interpretação. Nesta terceira dimensão ocorre, segundo Apel, a transformação semiótica da crítica de sentido do real.305 Nesta perspectiva, a pergunta pelo sujeito da cognição só pode ser respondida no sentido peirceano de uma comunidade ilimitada de comunicação, promotora de um crescimento definitivo da cognição (como desenvolvida por Peirce em 1868). Tal comunidade apropria-se de uma interpretação ilimitada (não é refém de um sujeito isolado ou de uma consciência finita) “e tem como consequência que não podemos conhecer o real definitivamente, pois isto implicaria reduzir a categoria de terceiridade, que refere o universal do conceito ou da lei ao processo ilimitado de interpretação, à categoria de segundidade”. 306 Peirce, então, substitui a síntese transcendental kantiana pelo postulado de uma convicção última, que somente pode se sustentar em uma comunidade de comunicação, contrária ao sujeito (solitário) do conhecimento. A comunidade real de comunicação não está fadada a uma função factual e a uma descrição meramente empírica, mas à criticidade da realidade e validação das verdades alcançadas a partir de um processo interpretativo da comunidade dos cientistas, e com inclinação normativa das suas proposições validadas: “o consenso postulado de maneira senso-crítica é a garantia da objetividade da cognição que surge em lugar da ‘consciência geral’ kantiana”.307 Tal objetividade tem caráter de ser normativo e postula ser ideal numa comunidade real de comunicação. A comunidade tem o dever de converter sua compreensão dos símbolos em regras de comprometimento realmente eficazes. Esta condição real de possibilidade de sentido será admissível na medida em que as “condições materiais do conhecimento” forem pressupostos reais de definição de sentido.308 Como entendido por Apel, este postulado de 305 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 213-117. Fundamentalmente, “a crítica de sentido exige supor uma comunidade ilimitada de investigadores, que dará conta do cognoscível num processo indefinido de conhecimento, e que garanta a objetividade e verdade do acordo nos consensos fáticos mediante um consenso ideal, que funciona como ideia regulativa”. CORTINA, Adela. La transformación de la filosofía transcendental kantiana, p. 20. 306 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 55. 307 APEL, op. cit., p. 218. 308 Cf. Id., El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 53. 73 uma comunidade científica (peirciana) rompe com os pressuposto de uma filosofia transcendental da consciência pura para admitir o reconhecimento do a priori do conhecimento comprometido, que pressupõe uma mediação com o real.309 E sua possibilidade de aplicação das normas alcançadas só pode acontecer por um postulado ético de engajamento e de esperança, que se sustenta no princípio peirciano do socialismo lógico. É neste horizonte que Peirce, segundo Apel, mediatiza o problema das razões prática e teórica, ao ponto de não cogitar qualquer possibilidade de não relação necessária entre o caráter transcendental e o normativo; de não possibilidade de mediatização entre o ideal e o real.310 Não obstante, segundo Apel, tal perspectiva veio alterar-se com a fundação do pragmatismo, particularmente a partir da divulgação das obras The Fixation of Belief e How to Make Our Ideas Clear (1877/78), de Peirce. O processo cognitivo dado pela interpretação e mediação dos signos fora substituído pelo comportamento das coisas, o que provocou a substituição do consenso alcançado pelos cientistas pela “fixação de uma convicção”, confirmada pelo estabelecimento de um hábito comportamental, identificado na experiência. Pois como afirma Peirce em The Fixation of Belief, “o sentimento de acreditar é mais ou menos uma indicação certa de se haver estabelecido em nossa natureza algum hábito que determinará nossas ações”,311 perspectiva tal acentuada em How to Make Our Ideas Clear, ao considerar que “a essência da crença é o estabelecimento de um hábito, e diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes modos de ação a que dão origem”.312 Conclui Peirce, ainda nesta obra que “a realidade do real depende do fato de que a investigação, se prolongada suficientemente, está destinada a finalmente levar a uma crença nela”.313 Diante desta nova abordagem peirciana, Apel observa, entretanto, que a linguagem também tem competência para ler os significados dos símbolos a partir do comportamento dos interlocutores que estão se comunicando em uma comunidade interpretativa. E tal interpretação não pode estar fundada em descrições vindas da observação. Por isso, requer algumas pressuposições necessárias para assegurar seu estatuto hermenêutico: os interlocutores devem estar em condições de entender o uso correto das regras da linguagem e utilizá-las na comunidade de comunicação como meio de entendimento com os demais. E, junto a isto, renunciar “que a regra atribuída de fora aos dados da observação a fim de 309 Cf. APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 53. Cf. Id., Transformação da Filosofia II, p. 218-219. 311 PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da Lógica da Ciência. Trad. Renato Rodrigues Kinouchi. Aparecida: Ideias e Letras, 2008, p. 43. 312 Ibid., p. 70. 313 Ibid., p. 85. 310 74 ‘elucidá-los’ linguisticamente, nesse caso, seja a mesma pela qual se orientam os objetos comunicantes”.314 Mas, para Apel, o aclaramento de sentido peirciano não está referido à constituição linguística do uso de linguagem e, por isso, torna impossível um aclaramento pelo uso factual da linguagem, justamente por entender que a linguagem pode estar baseada sobre mal entendidos.315 Isto vem sinalizar, para Apel, que a máxima pragmática do aclaramento de sentido parece não se distanciar muito de uma possível substituição da compreensão do sentido das ideias pela descrição de consequências dessas ideias, dadas factualmente. Assim como também sinaliza que os hábitos (disposições comportamentais) não podem ser identificados e entendidos simplesmente a partir da observação empírica, “mas como regras que – no sentido da ‘terceiridade’ – podem mediatizar nosso agir subjetivo autocontrolado com fatos da observação possíveis”.316 Entende-se, portanto, como interpreta Apel, que no pragmatismo semiótico de Peirce (particularmente desenvolvido por volta de 1903) “não se substitui aqui intelecção de sentido por observação de dados experimentais, mas trata-se de referenciá-la, no experimento intelectual, à experiência experimental possível”.317 Não obstante, para Apel, esta máxima pragmática-semiótica de Peirce (do aclaramento de sentido) enfrenta um sério problema, pois ao tentar determinar as disposições comportamentais (hábitos) para explicar o sentido de um pensamento, já pressupõe (o que leva a entender) o entendimento do pensamento a ser explicado, e isso somente gera um círculo lógico. 318 Em todo caso, como entende Apel, a máxima pragmática do aclaramento aborda o esclarecimento conceitual a partir da experiência experimental possível. Já na sua fase tardia (1905 em diante), como entende Apel, Peirce distingue três tipos de interpretantes de símbolos: emocional, energético e lógico.319 Os dois primeiros interpretantes correspondem aos efeitos empiricamente constatáveis dos símbolos sobre o intérprete, ao passo que o terceiro corresponde à própria tradução aplicável ao comportamento humano. Ora, ao visar sempre o autocontrole em direção a um fim possível, o pragmatismo está sempre direcionado para o futuro, porque lança sentido para o futuro, prescrito num autocontrole. E, por isso, “é ao ‘ultimate logical interpretant’ que cabe concluir o processo 314 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 220. Cf. Ibid., p. 220-221. 316 Ibid., p. 222. 317 Ibid., p. 222. 318 Cf. Ibid., p. 222. 319 Cf. Ibid., p. 224. 315 75 interminável de interpretação, praticamente em favor de uma conclusão real viva’”. 320 E essa conclusão, para Peirce, está fundada numa disposição comportamental (hábito).321 Para Apel, todo este processo explorativo em busca da cognição demonstra como Peirce desenvolveu sua teoria pragmático-semiótica ao longo do tempo: ele constrói uma filosofia de mediatização normativa entre teoria e praxis, direcionada para uma filosofia de caráter transcendental,322 em busca do consenso em uma comunidade ilimitada de interpretação (como entendido no Peirce de 1968); e mais adiante, ao desenvolver a ideia do pragmatismo, apropria-se de uma nova perspectiva de racionalização empregada na ideia do autocontrole dos hábitos. É relevante constatar aqui, como concebe Apel, que em nenhum momento o “sujeito” do conhecimento está reduzido à observação e descrição empírica, como também não está em referência a uma consciência pura e transcendental. Ao contrário, ele está em referência a uma comunidade real de interpretação, que pressupõe, como telos, uma comunidade ideal ilimitada de comunicação. Nesta perspectiva, para Apel, “essa comunidade é experienciável, mas não como um objeto da ciência, e sim como um meio intersubjetivo de 320 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 224. Cf. Ibid., p. 224. 322 Para Apel, Peirce, ao recusar uma consciência geral e fundamentar a objetividade das ciências no processo de acordo mútuo entre os cientistas, inaugura o consensus ominium que, semioticamente, corresponde à “consciência transcendental” e garantia da objetividade. Dessa forma, a partir do acordo mútuo (dado por uma comunidade) toda compreensão de sentido (realizada pela via dos signos) alcançaria a verdade intersubjetiva possível. Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 234. E naquilo que se refere aos signos, “devese notar, antes de tudo, que o fato de que Peirce conceba a relação sígnica ao mesmo tempo como relação do conhecimento mediado por signos remete à necessidade de uma interpretação semiótico-transcendental”. APEL, Karl Otto. Semiótica filosofica, p. 165. No prefácio da obra El camino del pensamiento de Charles S. Peirce (tradução espanhola de 1997, depois de duas décadas da publicação do texto original Der Denkweg von Charles S. Peirce), Apel faz algumas importantes considerações sobre sua análise e interpretação acerca do pensamento de Peirce. Como ele mesmo afirma: “no caso de Peirce quero negar mesmo que ele tenha posto em juízo o suposto fundamento de toda filosofia transcendental: o suposto das condições de possibilidade necessárias e universalmente válidas da validade intersubjetiva do conhecimento” (p. 13). Segundo Apel, Peirce distancia-se de uma possível fixação de princípios sintéticos a priori da ciência, como em Kant. Porém, “confia a fundamentação da validade das ‘inferências sintéticas’ com base à investigação em uma sorte da ‘lógica transcendental’, que é também uma lógica normativa da interpretação dos signos”. APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 13. Entretanto, esta interpretação de Apel é combatida pelos peircianos, por entenderem que Apel equivocamente entendeu o pragmatismo de Peirce como um princípio transcendental. Dessa forma, Apel, assim como Habermas, parte do pressuposto que a relação necessária entre o geral e o particular, prescrita na máxima do pragmatismo, só pode ser justificada a priori, o que não representa a perspectiva semiótica de Peirce, uma vez que esta relação não é necessária, mas necessariamente modal: “admitindo-se que ser é ser cognoscível, segue-se que um geral, seja possível ou necessário, deve ter o seu ser dado fenomenologicamente, conforme explicita a máxima do Pragmatismo na sua versão metafísica. O núcleo da Metafísica, a Cosmologia de Peirce, mostrou, por sua vez, como evolucionariamente se urdem as relações entre o particular e o geral”. IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 132. 321 76 acordo mútuo quanto às condições de possibilidade e de validade conceituais próprios às descrições dos dados da observação”.323 2.3.2 A crítica de Apel ao cientificismo de Peirce Karl Otto Apel está convicto de que uma teoria pré-semiótica somente pode pensar o processo de cognição numa relação sujeito-objeto. Os signos, neste horizonte, nada mais representam que um instrumento de comunicação, daquilo que já está conhecido, o que implica na desconsideração de toda ação intersubjetiva da linguagem e na negação de que todo processo de cognição sujeito-objeto está mediado por signos e, portanto, pela relação sujeito-sujeito no processo de cognição.324 Por sua vez, esta visão instrumental da linguagem postula, como se auto-compreende, uma intervenção convencional (agregada à dimensão sensorial e racional) no processo de cognição de algo como algo. Para Apel, tal convenção nada mais representa que uma decisão efetiva do sujeito isolado sem qualquer relação de acordo com os interlocutores, pois ignora uma comunidade hermenêutica transcendental de validade de todo conhecimento objetivo. Com isso, observa Apel, uma teoria pré-semiótica apenas pode propor uma explicação científica dos dados observáveis.325 Conforme Apel, em nenhum momento uma concepção semiótica pode substituir o acordo intersubjetivo, mediado pelos signos, pela observação do comportamento (observação objetiva). Torna claro, então, que somente a semiótica-transcendental pode assegurar o acordo de uma comunidade linguística interpretativa e superar a tradição pré-semiótica solipsista.326 Neste sentido, como afirma Apel, ainda que Peirce tenha contribuído para a superação do pensamento transcendental kantiano e solipsista, não é possível encontrar nele uma transformação profunda pelo fato de ainda ficar preso num cientificismo objetivo. Pois, não parece haver em Peirce “qualquer diferença entre o processo de pesquisa experimental em ciências naturais e o processo de acordo mútuo na comunidade interpretativa dos seres 323 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 225. Segundo Apel, a desconsideração da linguagem como medium de todo entendimento e possibilidade de cognição intersubjetiva, dado pelo consenso numa comunidade de comunicação, corresponde ao chamado nominalismo, próprio das filosofias pré-semióticas, daquelas que se utilizam dos signos apenas como instrumentos para conhecer o já conhecido, numa linguagem lógica e solipsista. Por isso, nega que a linguagem intersubjetiva em prol do acordo mútuo é condição de possibilidade e validade transcendental hermenêutica de toda cognição. Cf. APEL, Ibid., p. 226-227. 325 Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 57-58. 326 Cf. Ibid., 59-60. 324 77 humanos”.327 Para Peirce o consenso está ancorado no estado de coisas, mediado pela experiência. Ainda que a pragmática arquitetada por Peirce, enquanto lógica normativa, não esteja reduzida à “elucidação” das ciências empíricas, ainda está referenciada à experiência experimental, o que faz do método pragmático “refém” da experiência possível. Neste sentido, só pode haver semiose via experiência; só há comprovação e sentido dos símbolos na experiência. Portanto, o sentido dos símbolos depende da experiência experimental, o que implica afirmar que o acordo mútuo só pode ser alcançado ao longo do tempo. Dificulta, com isso, a distinção entre o processo de pesquisa experimental e o acordo mútuo da comunidade interpretativa. Também, ao referir-se exclusivamente à experiência, o sujeito corre o perigo de isolar-se (no sentido solipsista) e negar a intersubjetividade de uma comunicação, assim como a relação com a história. Por isso, a máxima pragmática do aclaramento de sentido não consegue fundamentar uma hermenêutica orientada para as ciências humanas e mediadora de sentido entre a tradição e a comunidade de interlocutores.328 Ora, como analisa Apel, Royce abandona esta perspectiva de um “acordo” fundado na observação dos fatos e sob os dados da experimentação ou comprováveis experimentalmente (elucidação). Ao contrário, para Royce o acordo deve estar ancorado numa comunidade de comunicação, usuária da linguagem como medium de todo entendimento e interpretação. Enquanto Peirce criou o paradigma da interpretação na terceiridade, Royce aplicou este horizonte no processo da história do espírito.329 Segundo Apel, também é possível identificar em Gadamer uma contraposição ao cientificismo de Peirce: não tem sentido postular a verdade nas ciências do espírito referindo-se à objetividade científica. Para Gadamer, o sujeito da compreensão está edificado na abertura de sentido do ser-aí histórico e, por isso, não concebe a verdade a partir de uma aproximação metódica ao ideal de objetividade. Ao contrário, como interpreta Apel, Peirce entende que o consenso da comunidade científica é a garantia da objetividade. Assim, “graças à relação que todo acordo de sentido guarda com a possível experiência, toda a compreensão, enquanto interpretação de 327 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 231. Não obstante, para Apel, o aclaramento de sentido – em seu estado bem sucedido – surge como “transição histórica que parte da mediatização histórica da tradição, feita pela comunidade interpretativa atenta à interação, rumo à clareza dos conceitos relacionados à experiência experimental, que são indiferentes à história”. Ibid., p. 240. 328 Cf. Ibid., p. 230-231. 329 Cf. Ibid., p. 231-232. 78 signos, alcança também a verdade intersubjetiva que é acessível mediante o consenso dos cientistas referido a sua matéria”.330 Apel critica o cientificismo peirciano na tentativa de também superá-lo em busca de uma filosofia transcendental-linguístico-pragmática. Segundo ele, o cientificismo já parte do pressuposto que o acordo é sempre uma auto-afirmação de algo já dado, o que pode levar ao perigo de manipulação empírica e auto-afirmação de um “eu” em busca de seus fins. Por isso, a linguagem, que numa comunidade de comunicação é medium de todo entendimento e acordo entre os dialogantes, não pode ser considerada apenas a instituição das instituições, mas a meta-instituição, ou seja, “a instância crítica de todas as normas sociais refletidas; e também [...] uma instância normativa obrigatória que não abandona os indivíduos ao arbítrio dos seus próprios pensamentos, mas os abriga [...] a um acordo mútuo intersubjetivo sobre as normas sociais”.331 A linguagem tem a função fundamental de romper com os raciocínios subjetivos dos indivíduos e integrá-los num diálogo em busca de um consenso e, por isso, possibilitar um acordo intersubjetivo. Ao contrário, “o método pragmático para aclarar o sentido se apresenta com a intenção de relacionar todo o sentido com operações e experiências que qualquer sujeito isolado pode levar a cabo em qualquer momento independente da sua interação histórica com outros”.332 Esta perspectiva, segundo Apel, rompe com o papel fundamental do diálogo e do acordo, pois não pressupõe uma pré-compreensão intersubjetiva da linguagem, o que dificultaria qualquer explicação sobre a experiência. Para Apel, “esta pré-compreensão intersubjetiva pressuposta em toda interpretação é uma lei fundamental que rege a operação pragmática operacionalista do sentido e a linguagem ordinária histórica”. 333 Neste horizonte, a linguagem deve ser interpretada como constituída de linguagem científica e relacionada com a experiência experimental, condição básica para conferir sentido a conceitos como “verdade”, “justiça”, “dignidade humana” etc. Para Apel, é possível, junto com Peirce, postular uma comunidade ilimitada de interpretação em busca do acordo e, contra Peirce, recusar o reducionismo cientificista da experiência, uma vez que se almeja o relacionamento com o mundo histórico, mediado pelo 330 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 61. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 238. E, por isso, a linguagem não pode ser considerada como mera disciplina especial da semiótica, com instrumento de interpretação dos signos, mas via necessária de interpretação simbólica no processo cognitivo válido em busca do consenso. Somente ela pode possibilitar tal alcance. Cf. APEL, Karl Otto. Semiótica Filosófica, p. 166. 332 COSTA, op. cit., p. 63. 333 Ibid., p. 63. 331 79 sujeito de interpretação sígnica. Conforme Apel, a superação da proposta pragmática peirciana só pode ser alcançada na conjugação complementar da hermenêutica gadameriana com a semiótica de Peirce: “a partir da hermenêutica inspirada na análise existencial, fazer frente à redução cientificista da mediação histórica da tradição distinguindo entre a práxis e a experiência científico-técnica e a práxis e a experiência da interação”.334 Este legado possibilita a superação da abstração hermenêutica, assim como do cientificismo experimental. E, fundamentalmente, rompe com o rigorismo científico ao pressupor a mediação da précompreensão hermenêutica como critério normativo relevante para a comunidade dos interlocutores e para toda compreensão humana. Por isso, ao invés da comunidade dos experimentadores (no sentido peirciano, limitada cientificamente) Apel propõe a comunidade histórica de interação, que surge como possibilidade última de realização do princípio regulativo do processo ilimitado. Nesta comunidade, o sujeito de interpretação sígnica é histórico. Ela tem a natureza de conjugar-se à historicidade (mundo real) em uma praxis engajada e unida à comunidade dos investigadores, a fim de transformar o mundo social por meio de um princípio regulativo. Caso o ideal do acordo mútuo seja assumido como método da hermenêutica, poder-se-á eliminar qualquer problema de conjugação entre o compreender subjetivo e o compreender histórico-objetivo. Portanto, o acordo mútuo deve pressupor e garantir a fundação da verdade e da ética.335 Para Apel, a comunidade peirciana de investigadores, no seu processo de investigação, não somente está constituída pela opinião teórica verdadeira in the long run, mas também pela concretização prática da razão nos hábitos de conduta que correspondem à crença verdadeira, ao entender que toda regulação lógica converte-se em correção moral, que todos os postulados da investigação devam se converter numa crítica de sentido com garantia do agir ético. No entanto, conforme Apel, este processo de investigação não consegue garantir e estender seus postulados normativos para o mundo enquanto tal e, por isso, não consegue ter êxito para todos os humanos. Pois a realidade, como entende Apel, só pode definir-se meio a um consenso realizado pela comunidade ilimitada de comunicação, o que pode garantir um ideal eticamente relevante para os investigadores: “a ideia do caráter fundamental social do conhecimento possível do real, força a solidariedade ética entre os investigadores particulares e a comunidade, pois somente nela pode alcançar-se o fim da sua investigação,”336 como 334 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 64. Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 245. 336 Id., El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 149. 335 80 pensada por Peirce na perspectiva do socialismo lógico. Segundo Apel, a ética de Peirce, então, deveria definir-se em termos da seguinte regra hipotética: “todos os membros da comunidade dos investigadores devem fazer da ‘necessidade lógica da completa autoidentificação do próprio interesse com o interesse da comunidade’ máxima de sua ação”.337 Na compreensão de Apel, o modelo cientificista impossibilita uma interação entre a comunidade real de comunicação (limitada) e a comunidade ideal de interpretação (ilimitada): a primeira está sujeita, devido seu reducionismo à experiência, aos interesses dos cientistas e jogos de poder. Portanto, segundo Apel, a comunidade ilimitada de comunicação, além de tornar-se condição de sentido e interpretação, “é também condição de possibilidade e validade não só da interpretação auto-reflexiva (filosófica), mas das explicativa (ciências da natureza) e hermenêutica (ciências do espírito)”.338 2.4 O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel Segundo Karl Otto Apel, o jogo de linguagem transcendental de Wittgenstein caracteriza a concepção fundamental, por um lado, da filosofia linguístico-analítica e da crítica à metafísica e, por outro, da transformação da filosofia transcendental clássica, ocorrida pela inserção da linguagem ordinária no mundo. Como crítica à metafísica, a filosofia de Wittgenstein, ao postular-se pela concepção normativa do jogo de linguagem, junto à comunidade ilimitada de comunicação, supera a concepção platônica da unidade ideal dos significados das palavras dados num mundo supraceleste (sustentado pela essencialidade das coisas). Esta reviravolta acontece em Wittgenstein pela descrição do uso da linguagem. Todavia, para Apel, ainda que seja justo substituir a concepção ontológica platônica pelo método do uso das palavras (pela descrição do uso factual da linguagem), não é possível, satisfatoriamente, entender termos como verdade e justiça. Ao contrário, somente pode ser possível uma solução – em detrimento da milenar tradição filosófica do uso de essências, conceitos, ideia, definição, significado – caso se considere o “postulado de um consenso intersubjetivo de todos os virtuais participantes do jogo de linguagem quanto à regra ideal do uso da palavra – postulado normativo, presente, a propósito, em todo e qualquer uso de palavras”.339 Neste sentido, uma definição filosoficamente relevante, não arbitrária, só pode ocorrer se relacionada ao uso da linguagem ordinária e, por isso, deve “incluir o novo estado 337 APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 150. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 66. 339 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 396. 338 81 da experiência e da discussão especializadas, e antecipar, no âmbito de um determinado jogo de linguagem, a estrutura do jogo de linguagem ideal, que todos os seres racionais pudessem e devessem jogar”.340 Como registra Apel, o problema da essencialidade das coisas é substituído pelo uso do pluralismo dos jogos de linguagem.341 Pois, para Wittgenstein, a essência não reside no uso da linguagem, mas na gramática dos jogos. Não obstante, segundo Apel, como conceber que este pluralismo dos significados linguísticos pode alcançar um consenso referido aos jogos de linguagem transcendental? Neste caso, pelo fato de não estruturar-se numa instância a priori de uma comunidade ilimitada de comunicação, o pluralismo somente pode alcançar consensos particulares ou caminhos diversos para a formação do consenso sem qualquer possibilidade de universalidade? A tendência relativista destas questões, como entende Apel, é reforçada pela reconstrução da perspectiva sintático-semântica (de fins científicos) que, ao invés de postular uma linguagem filosófica universal, somente concebe uma pluralidade de estruturas semânticas.342 Como resolver, então, tais questionamentos? Apel parte de uma observação histórico-antropológica ao constatar que, independentemente das diferentes formas de vida, estruturadas pela dimensão sintático-semântica, não se conservou nas sociedades modernas um caráter quase monádico das linguagens antigas.343 Ora, a diferença entre os jogos de linguagens não desapareceu, mas ela foi superada pelo jogo de linguagem científico, capaz de criar uma unidade comunicativa entre os diversos jogos. Nota-se, neste contexto, que os componentes semânticos não permaneceram intocáveis com a unificação relativa dos jogos de linguagens, mas interpretáveis e compreensíveis (de significação prática equivalente). 344 Para Apel, estas considerações apontam para a distinção e dialética “dos sistemas linguísticos sintático-semânticos, de um lado, e dos jogos de linguagens semântico-pragmáticos, de outro”.345 No entanto, ainda que admissível os sistemas linguísticos, no plano da competência linguística (como denominada por Chomsky346), não é possível esperar uma síntese das diferentes formas de comportamento. Ao contrário, somente no plano da competência comunicativa (dada pelas línguas particulares, mas na perspectiva de uma linguagem ideal) 340 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 397. Cf. Ibid., 397. 342 Cf. Ibid., 397. 343 Cf. Ibid., 398. 344 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 275-276. 345 APEL, op. cit., p. 399. 346 Cf. Ibid., p. 399. 341 82 poder-se-á garantir o acordo mútuo, através da linguagem, pelos participantes de várias comunidades linguísticas.347 Com isso, segundo Apel,348 em nenhum momento se quer contestar a relevância dos diferentes sistemas linguísticos, até porque eles permitem criar um mundo de acordo com o “espírito” de uma comunidade. Mas, fazer notar que a competência comunicativa dá possibilidades aos indivíduos de superar sua estrutura linguística particular em prol de toda comunidade, numa relação que envolve os diferentes sistemas (formas de vida) em busca da universalidade. Apel aponta que entre as condições empíricas da competência comunicativa “devem incluir-se principalmente certos ‘universais’ inatos da ‘capacidade linguística’ que representam o ‘instinto linguístico’”.349 Junto a isto, deve-se também incluir um inventário análogo de traços semânticos combináveis (de validade que ultrapasse as línguas particulares).350 Dados esses elementos, Apel acredita ter mencionado os principais pressupostos do conceito transcendental hermenêutico de linguagem. Agora, cabe elencar a função do conceito de linguagem, como tentativa de transformação da filosofia transcendental clássica. Para ele, não se pode tomar a linguagem como “cosmovisões” e, com isso, integrá-la na relação sujeito-objeto da epistemologia transcendental; e nem reduzi-la a uma consciência geral, no sentido transcendental kantiano; e muito menos identificar o sujeito transcendental da cognição com a limitação do mundo pela linguagem; ou também fazer desaparecer o sujeito em prol da semantical frameworks. “Não é satisfatório perder a problemática do sujeito, própria da filosofia moderna, em prol da redução cientificista da teoria do conhecimento e da ciência a uma lógica diática (sintático-semântica) das teorias científicas”.351 Para Apel, estas abordagens, que representam a tentativa de superação da prima philosophia, não alcançaram o estatuto de uma filosofia intersubjetiva, mediada pela linguagem e, portanto, dependente dela 347 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 398-399. Cf. Ibid., p. 400. 349 Ibid., p. 400. 350 Apel recorda que os gregos deram este passo ao direcionarem-se para o “pensar conceitual, pelo qual fundouse o anseio por uma condição eidética pura e simples, intersubjetivamente válida. Desde então, formou-se em todas as línguas de cultura a dimensão amplamente comum da linguagem conceitual. Ao meu ver, ela faz surgir como sensata a espera pelo cumprimento da exigência de definições eidéticas intersubjetivamente válidas – se não através de uma redução eidética monológica e, se possível, não-verbal, então ao menos, a longo prazo, através do acordo mútuo em linguagem conceitual, que se dá em meio à comunidade ilimitada de comunicação”. APEL, op. cit., p. 400. 351 COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 89. 348 83 e da comunicação. Ao contrário, ficaram presas numa filosofia solipsista: da “consciência”, cartesiano-kantiana, e bivalente (sintático-semântica), de Wittgenstein e Carnap.352 Segundo Apel, a filosofia clássica somente pode ser superada à luz do conceito transcendental-hermenêutico da linguagem, que implica na substituição do “ponto mais alto” da filosofia kantiana pela linguagem intersubjetiva: “da ‘síntese transcendental da apercepção’ enquanto unidade da consciência objetual, pela [e nisso consiste o seu conceito] síntese transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem – constituinte da validação pública da cognição – enquanto unidade do acordo mútuo quanto a alguma coisa em uma comunidade de comunicação”.353 Esta tarefa substitui a “consciência geral” kantiana pelo “princípio regulador” de formação crítica e consensual, mediado pela linguagem, numa comunidade ilimitada de comunicação. Tal tentativa de transformação da filosofia transcendental encontra em Ch. S. Peirce duas de suas mais importantes implicações, a saber: a) se o conhecimento é hipotético, mediatizado pela linguagem, é inválido o princípio kantiano da coisa-em-si “incognoscível”, bem como a “consciência isolada” (do mundo exterior) cartesiana. Ora, a noção da coisa-em-si é uma hipótese mediada pela linguagem e, por isso, já prescreve um conhecimento.354 Para Apel, esta empreitada também aponta para a superação do nominalismo dos universais por um realismo crítico dos universais, “pois com a ajuda da linguagem é provável que se possa, em cada caso, argumentar de maneira contrária à validação dos conceitos linguísticos universais, mas não contra a validação ontológica deles, em princípio”.355 Com isso, Apel afirma que “uma transformação transcendentalhermenêutica da ‘prima philosophia’ logra superar a diferenciação recíproca entre a ontologia clássica e a moderna filosofia da consciência, sem abrir mão do anseio cognitivo-crítico desta última”.356 Ou, ainda melhor, tal anseio alcança o ponto mais alto de superação numa “crítica de sentido”, sustentada na sua estrutura semântico-pragmática do jogo de linguagem, que jamais pode ser abalada por uma dúvida cognitivo-crítica. Para Apel, esta abordagem leva a afirmar que a transformação da filosofia transcendental não pode descartar o anseio reflexivo 352 Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 401-402. Ibid., p. 402. 354 “A mediação da filosofia transcendental como a reviravolta linguístico-pragmática e hermenêutica da filosofia do século XX permite superar o dualismo entre coisas em si e fenômeno existente na filosofia transcendental clássica da consciência. Deste modo, embora Apel faça uso do método transcendental, da reflexão transcendental, por considerá-lo o método próprio da filosofia, o expediente para evitar a aporia da dualidade kantiana (fenômeno/coisa-em-si) consistirá em recorrer não a uma filosofia da consciência, senão a uma filosofia da linguagem que assumiu o giro pragmático, na linha da semiótica de C. S. Peirce”. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 90. 355 APEL, op. cit., p. 403. 356 Ibid., p. 403. 353 84 da filosofia moderna da consciência, mas considerá-la mediada pela linguagem, numa comunidade ideal de comunicação, sob a concepção de uma autocrítica; b) na superação da distinção entre filosofia teórica e prática: por um lado, as normas consensuais alcançadas pela comunidade de comunicação devem substituir a necessidade da “consciência geral” kantiana (que garantia a objetividade das normas). Neste processo de conhecimento, pela comunidade linguística, deve-se sempre pressupor uma “ética mínima” e tal condição deve oferecer a fundamentação racional única e última da ética; por outro lado, corresponde à “superação da distinção de princípio em relação à filosofia teórica, também por parte da filosofia prática”,357 pois como apresentado pela ética da filosofia analítica, a filosofia prática está destinada a mediar sua justificação pela via do discurso teórico (da comunidade argumentativa) e valorativamente neutra dessa comunidade. Por sua vez, ao refletir a instância ética, o discurso prático retrocede, sem qualquer intervenção de uma decisão discricionária de uma ética normativa.358 Por isso, a partir dessas objeções, é possível concluir: “a reflexão transcendental-hermenêutica sobre as condições de possibilidade do acordo mútuo linguístico em uma comunidade ilimitada de comunicação parece fundamentar a unidade da prima philosophia como unidade da razão prática e teórica”.359 Neste horizonte, a partir de uma perspectiva transcendental-hermenêutica de linguagem, que implica o caráter pragmático, Apel irá arquitetar a Ética do Discurso. Ora, a perspectiva da pragmática transcendental, como concebido por Apel, está fundamentada na lógica transcendental kantiana e na semiótica tridimensional de C. S. Peirce: do primeiro, Apel absorve o método filosófico transcendental, o caráter crítico em busca da verdade e validade das coisas e a reflexão filosófica do sujeito do conhecimento; do segundo, a compreensão de que o logos não está referido a um monológico e nem é a-histórico no âmbito do sujeito transcendental. Ao contrário, o logos está referido a um sujeito histórico em constante diálogo com a realidade e sustentado por uma comunidade de comunicação. Decorre, então, que a metafísica crítica do conhecimento deve converter-se em crítica do sentido dos signos (em semiótica), já pressuposta por uma comunidade ilimitada de comunicação dos sujeitos do conhecimento e com a pretensão de consenso sobre a verdade dos conhecimentos. Tal pressuposto “deriva necessariamente desse realismo crítico do sentido, que vem substituir o idealismo transcendental, e em virtude do qual se identificam o 357 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 405. Cf. Ibid., p. 402-405. 359 Ibid., p. 405. 358 85 real e o cognoscível”.360 Com isso, na perspectiva de Apel, é possível afirmar que “a necessidade do acordo sobre o sentido dos termos e o consenso da verdade nos situa já em âmbito pragmático, e a adaptação do método kantiano justifica a pretensão transcendental”, de universalidade das proposições morais, de caráter a priori, mas alcançada por uma comunidade de comunicação, usuária de linguagem como medium de todo entendimento.361 Em suma, este capítulo procurou explicitar e analisar a transformação hermenêuticosemiótica da filosofia transcendental, tal como compreendida por Apel. Neste sentido, o texto partiu da perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão; depois, apresentou a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental, ao explicitar e criticar a fenomenologia hermenêutica de Heidegger e Gadamer; em seguida, discorreu sobre a transformação semiótica da filosofia transcendental instaurada por Peirce (o que representa o ponto basilar de fundamentação da Ética do Discurso), o postulado da comunidade de experimentação e interpretação e a crítica de Apel ao cientificismo de Peirce; e, por fim, o conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel. Ao explicitar e analisar este itinerário de transformação, o presente capítulo procurou sistematicamente demonstrar os fundamentos do pensamento moral de Apel, que tem a peculiaridade de construir-se num profundo diálogo (e crítica) com os principais pensadores da filosofia moderna e contemporânea. Por isso, Apel absorve das filosofias em discussão os elementos necessários, numa atitude de transformação, para construir o seu legado ético e, com isso, arquitetar sua proposta filosófica (com originalidade). Já superado os problemas que comprometem a fundamentação de uma ética racional na era da ciência e da tecnologia (primeiro capítulo); e postulado os fundamentos do seu pensamento ético, em uma atitude de assimilação, crítica e transformação (segundo capítulo); o texto agora (em seu terceiro capítulo) procurará demonstrar a arquitetura da Ética do Discurso de Karl Otto Apel, sua fundamentação última e sua aplicação e relevância no mundo contemporâneo. 360 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 113. Ibid., p. 113. Como prescrito por Peirce, sobre a máxima do pragmatismo: “a fim de determinar o significado de uma concepção intelectual, dever-se-ia considerar quais conseqüências práticas poderiam concebivelmente resultar, necessariamente, da verdade dessa concepção; e a soma dessas conseqüências constituirá todo o significado da concepção”. PEIRCE, Charles S. Semiótica, p. 195. 361 86 III CAPÍTULO ARQUITETURA DA ÉTICA DO DISCURSO Apresentado e analisado o percurso de construção da Ética do Discurso, o que ainda não representa o fim da empreitada, a saber, explicitar o problema de uma fundamentação ética na era da ciência – dado, particularmente, pela discussão apeliana com o pensar monológico e científico (primeiro capítulo); e ao expor as bases da transformação hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental, de onde Apel absorve, numa perspectiva de superação, os elementos fundamentais para a elaboração do seu postulado ético racional (segundo capítulo), pretende-se, agora (no terceiro capítulo), apresentar a arquitetura da Ética do Discurso: a sua compreensão pragmático-transcendental; a parte “A” e a parte “B”, que constituem sua estrutura, e a dialogicidade entre elas; a fundamentação última da filosofia, onde Apel demonstra a peculiaridade do seu pensamento ético-filosófico e, com isso, a contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva; e, por fim, a relevância da proposta ética apeliana para o mundo globalizado. Portanto, este terceiro capítulo explicitará o “projeto arquitetônico” de Apel, enquanto uma ética racional para o mundo contemporâneo, demonstrando, com isso, o ponto de chegada do esforço de Apel ao perscrutar e propor uma ética pós-convencional. 3.1 A compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso Karl Otto Apel está convencido que sua proposta moral, embora inicialmente nomeada como “ética da comunicação” e “ética da comunidade ideal de comunicação”, alcança maior significatividade e relevância no termo “Ética do Discurso”, particularmente por dois motivos: o primeiro, porque tal nomeação explicita o caráter próprio da ética, sustentado por uma forma especial de comunicação, que é o meio de fundamentação de todo postulado ético; o segundo, porque remete o discurso argumentativo a uma dimensão a priori racional de fundamentação para a ética.362 Do primeiro aspecto, Apel afirma não ser mais possível uma moral dos costumes, onde as normas são praticamente evidentes para todos os indivíduos. Este modelo não consegue mais se sustentar no mundo atual. Trata-se, agora, da necessidade de um novo 362 Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 147. 87 postulado ético capaz de responsabilizar o homem pelas consequências das suas atividades coletivas, em âmbito mundial. Nada que esteja ao alcance de uma ética convencional. Por isso, como atesta Apel,363 somente uma ética discursiva pode resolver o problema de uma ética pós-convencional da responsabilidade. Uma ética pautada pela cooperação solidária entre os indivíduos e sustentada pelo discurso argumentativo em prol do consenso normativo. Segundo Apel, esta perspectiva de uma ética da corresponsabilidade solidária parece já acenada pelas inúmeras tentativas de conferências nacionais e internacionais em discutir os problemas éticos da humanidade e prescrever normas para todos os indivíduos. Para Apel, esta tendência vem afirmar “que os discursos de uma macroética contemporânea se caracterizam como meio de organização cooperativa da responsabilidade solidária, e, assim, também da fundamentação ou justificação das normas jurídicas e morais”.364 Do segundo aspecto (que Apel considera esotérico, propriamente filosófico, sendo o primeiro exotérico), procede que o discurso argumentativo deva possibilitar a fundamentação última do princípio ético. Tal empreitada tem o dever de conduzir todos os discursos argumentativos, particularmente os discursos práticos de fundamentação de normas. Ora, para os representantes da ética de princípio (como Kant, por exemplo) os discursos práticos já pressupõem por si mesmos um princípio ético, que serve como critério formal para tais discursos.365 Por sua vez, este modelo ético não pressupõe convenções éticas, próprias da tendência do mundo atual, e muito menos o diálogo com os interlocutores e afetados numa comunidade de comunicação. Ao contrário, apoia-se em propostas vantajosas e, por isso, perigosas para o grupo social. No entanto, adverte Apel, não basta apenas garantir o consenso para fundamentar normas eticamente relevantes para a sociedade global. Pois o consenso pode estar sustentado por ideologias e desejo de manipulação. Por isso, todo discurso mediador de fundamentação das normas tomadas em consenso deve, necessariamente, estar assegurado por um princípio ético criteriológico: “um princípio que permite diferenças a priori entre seus procedimentos e os resultados aos que se aspira, por um lado, e as práticas discursivas e os resultados que são eticamente questionáveis, por outro”.366 Caso a Ética do Discurso estivesse fundamentada na mesma lógica da ética de princípios, afirmar-se-ia que a pergunta pelo seu princípio criteriológico dos discursos práticos estaria fundada no próprio princípio do discurso. Diferentemente, para Apel, a Ética do Discurso “merece seu nome somente porque 363 Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 148. Ibid., p. 149. 365 Cf. Ibid., p. 150. 366 Ibid., p. 151. 364 88 pode pretender descobrir, mediante o ‘discurso reflexivo-argumentativo’ no próprio discurso, um a priori inultrapassável para todo pensamento filosófico, que inclui também o reconhecimento de um princípio criteriológico da ética”.367 Para Apel, este princípio é estritamente filosófico-transcendental, caracterizado pela pragmática-linguística. Neste horizonte, a ética discursiva, fundamentada na transformação pragmáticolinguística da ética transcendental, vem demonstrar dois principais elementos: todo aquele que argumenta deve, em qualquer ocasião, pressupor as condições normativas do discurso ideal, como única possibilidade de validade e realização das normas tomadas em consenso; e, por isso, o reconhecimento do princípio da ética discursiva. Dado esses pressupostos básicos, Apel apresenta as teses fundamentais da ética discursiva, compreendida na sua dimensão pragmático-transcendental: a) “a argumentação – como o pensamento com pretensão de validade que se expressa nela – é inultrapassável”;368 b) o discurso filosófico é rigorosamente ilimitado. Cabe ao indivíduo, portador de discurso, levar em conta todas as possibilidades de entendimento numa comunidade de comunicação e, com isso, as soluções dos mais variados problemas do mundo histórico. No entanto, o discurso não pode ser resultado de um jogo, de uma estratégia política, mas meio de resolução dos conflitos e de validade das normas tomadas em consenso; c) os indivíduos devem estar realmente interessados em resolver todas as questões apresentadas numa comunidade ilimitada, sem qualquer instrumentalização da linguagem (de uma linguagem estratégica) para alcançar seus próprios fins; d) os interlocutores devem compartilhar das situações suscitadas numa comunidade e, com isso, estarem motivados para alcançar, a priori, as soluções necessárias e susceptíveis ao consenso.369 Apresentada as teses fundamentais da ética discursiva, Apel elenca os pressupostos eticamente relevantes para aqueles que procuram argumentar seriamente, a saber: a) reconhecer, desde sempre, sua participação numa comunidade real de comunicação; b) com isso, pressupor o uso da hermenêutica e da pragmática linguística acerca da pré-compreensão do mundo e do acordo entre os dialogantes (essas são as condições iniciais para todo discurso concreto); c) como também, reconhecer sua participação numa comunidade ideal de comunicação, onde é necessário observar os pressupostos ideais e universalmente válidos (moralmente relevantes, ou seja, normas ideais válidas) da comunidade de comunicação; d) e, 367 APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 151. Ibid., p. 154. 369 Cf. Ibid., p. 154-155. 368 89 na tentativa de pressupor normas universalmente válidas, pressupor também a corresponsabilidade no discurso e na pretensão de resolução dos problemas apresentados; e) e, junto à responsabilidade, pressupor ainda a igualdade de direito de todos os participantes.370 Segundo Apel, nestes pressupostos já está implicado um princípio ético-discursivo, compreendido, então, como transformação pós-metafísica371 do princípio de universalização da ética: no lugar da máxima da ação no sentido kantiano “aparece agora a ideia reguladora da capacidade de ser consensuadas todas as normas válidas por parte de todos os afetados”.372 Neste sentido, “se encontra a implementação de sentido e a concretização da determinação kantiana da adequação como lei no plano da intersubjetividade,”373 como também, “a interpretação (Dechiffrierung) pós-metafísica, porém fundamental pragmáticotranscendental, do ‘reino dos fins’ no sentido de uma ideia reguladora da comunicação humana.”374 Ainda mais, para Apel, a tentativa de uma fundamentação última do princípio de universalização da ética leva a constatar que o factum da razão, no sentido de um perfeito apriorístico, postula, na perspectiva de uma razão comunicativa, o reconhecimento (desde sempre) da validade da lei moral, como princípio necessário da Ética do Discurso. Junto ao princípio de universalização, como regra de argumentação, a Ética do Discurso caracteriza-se pelo seu legado de “corresponsabilidade pela aplicação do princípio ideal da formação discursiva do consenso ao mundo da vida, dito mais exatamente, pela aplicação deste princípio ideal em todos aqueles casos em que nossa ‘responsabilidade de reciprocidade’ como responsabilidade de risco permita a aplicação”.375 370 Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 156-158. “A transformação pós-metafísica proposta por Apel, tendo em conta a dimensão pragmática, consiste em advertir que cada vez que alguém argumenta já tem pressuposto também condições normativas de possibilidade da argumentação, e, entre elas, precisamente o princípio da ética discursiva. Outra de tais condições é [...] o reconhecimento de uma comunidade real e uma ‘ideal’ de comunicação”. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva. In APEL, Karl Otto. Semiótica filosófica, p. 52. 372 APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 158. 373 Ibid., p. 158. 374 Ibid., p. 159. 375 Id. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 204. É importante notar que a ética discursiva, caracterizada pela lógica da responsabilidade da reciprocidade, tem implicações efetivas no campo da ética prática. Assim, uma teoria moral a partir do discurso, de uma reconstrução do agir moral deontológico, não se configura como uma moral antropocêntrica (embora este seja um ponto de muitas discussões e críticas acerca do legal moral apeliano). Ainda que construída por uma comunidade de dialogantes, este caráter da reciprocidade, de uma ética discursiva, está ancorado pelo viés lógico (com total profundidade), que meras convicções ou orientações humanas. Neste horizonte, a ética discursiva é “uma ética realista – realista porque a consideração em princípio (a principiis) do parâmetro interno da reciprocidade pode (e tem) que levar a divergência entre o agir moral válido para o seguimento e normas meramente válidas do agir moral; por exemplo, em sociedades nas quais não são estabelecidas condições jurídicas ou naquelas em que a percepção de um monopólio geral da violência ruiu por um Estado juridicamente constituído”. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral. Trad. F. Javier Herrero e Nélio Schneider. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p. 20. Portanto, a 371 90 3.2 A estrutura da Ética do Discurso Apresentado o caráter pragmático-transcendental do seu projeto arquitetônico filosófico, em busca de uma filosofia moral, Apel, agora, explicita a estrutura da Ética do Discurso, formada pela parte “A” (de fundamentação ética) e pela parte “B” (de fundamentação referida à história).376 Na parte “A”, Apel propõe uma distinção entre o plano de fundamentação pragmático-transcendental de princípio das normas e o plano de fundamentação das normas situacionais nos discursos práticos. Na primeira parte, da parte “A”, realiza-se, como apresenta Apel, a fundamentação de valores que, por sua vez, fundamentam um discurso sobre a realidade. Para a execução desta tarefa, é necessária a existência de um princípio-ponte, que é o princípio de universalização. Ele tem a função de indicar a forma processual de derivação de valores, em discursos sobre a realidade fática. O princípio-ponte pertence à primeira parte da parte “A”, mas induz os discursos realizados na segunda parte da parte “A”. Na segunda parte da parte “A”, já está incluso o elemento da responsabilidade da ética, que prescreve os efeitos de uma ação moral (elemento assumido da perspectiva ética de Max Weber).377 Segundo Apel, esta distinção é derivada da transformação da filosofia transcendental kantiana.378 Pois, como o princípio da Ética do Discurso prescreve a formação de discursos reais para a formação do consenso, “o princípio se tem que determinar a si mesmo como um puro princípio procedimental discursivo, desde o qual não se podem deduzir normas ou obrigações situacionais”.379 Com isso, os afetados são os portadores da fundamentação concreta das normas, o que possibilita a adequação de tais normas com as situações apresentadas e com o princípio de universalização do discurso. Não obstante, as normas ética discursiva, neste sentido de uma teoria moral deontológica realista, pode contar não somente com a validade de suas normas consensuais, mas com a rejeição ou desconforto de suas obrigações morais, o que a faz distanciar-se, completamente, da teoria deontológica kantiana clássica. Cf. Ibid., p. 22. 376 Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 51. 377 Cf. HINKELAMMERT, Franz. Ética de discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica. In SIDEKUM, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação – Modelos complementares. São Leopoldo: UNISINOS, 1994, p. 89. Diferentemente de Kant, a Ética do Discurso é uma teoria moral deontológica de segundo tipo porque prescreve, na sua fundamentação, o caráter da responsabilidade, logicamente originária. Neste sentido, todo agir válido está sob a reserva de uma responsabilidade moral no mundo histórico, real. Cf. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 18-19. 378 Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 159-160. Ao contrário de Kant, a ideia transcendental de Apel se caracteriza por: “primeiramente, trata-se de um princípio normativo fundamentado reflexivamente, e não pressuposto de maneira não-crítica como o fato da razão; em segundo lugar, esse princípio explica as reivindicações de validade as quais são inerentes à comunicação; por fim, esse princípio não se encontra na lógica do imperativo categórico (princípio de contradição lógica), mas na lógica da consistência pragmática (princípio da contradição performativa). Cf. MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para uma Crítica da modernidade. Trad. Verrah Chamma. Brasília: Plano Editora, 2002, p. 230. 379 APEL, op. cit., p. 160. 91 situacionais estão regidas pelo procedimento de fundamentação falibilista. Em síntese: o princípio procedimental, ancorado pela dimensão pragmático-transcendental, conserva sua validade incondicional e a pretensão normativa permanente, como máxima necessária para a garantia de institucionalização dos discursos práticos de fundamentação das normas. “Neste princípio procedimental da Ética do Discurso, que entra no lugar do princípio de universalização kantiano, estão igualmente fundamentados os ‘deveres imprescindíveis’ – as normas fundamentais da moral ideal do discurso”.380 A parte “A” da Ética do Discurso se ocupa da fundamentação racional da correção das normas.381 Tem a finalidade de fundamentar a ética e, por isso, parte do pressuposto que é possível a fundamentação de uma ética para o mundo real. Na parte “A”, contrafaticamente antecipada, se pressupõe que todo aquele que dialoga precisa submeter suas pretensões argumentativas à validade universal; pressupõe também a responsabilidade do argumentante e do seu interlocutor em busca de possíveis soluções para as situações apresentadas no mundo histórico, a fim de que as normas tomadas em consenso sejam aplicadas no mundo real; assim como pressupõe a igualdade de direito de todos os falantes e a formação de consenso entre todos.382 Neste horizonte, a parte “A” está regida por um princípio que exige o consenso mediante discursos práticos. Este princípio, então, confere ao discurso a legitimidade das normas destinadas ao mundo da vida e tem um caráter procedimental, que “indica a obrigatoriedade de um procedimento para fundamentar normas situacionais, e põe em destaque que essa obrigatoriedade está automaticamente reconhecida com todo ato de argumentar”.383 Diferente de outras propostas éticas, a Ética do Discurso não parte de um princípio que postula a inferência de normas, mas confere aos interlocutores, pelo discurso prático, a fundamentação de tais normas. Por isso, não concebe a ética como portadora de uma abstração dedutiva da consciência geral, mas como uma ação reflexiva do pensar intersubjetivo. A fundamentação ou legitimação das normas requer a consideração de suas consequências diretas e indiretas. Por sua vez, a fundamentação será sempre falível, revisável. “O princípio do discurso, ao contrário, pode considerar-se ‘infalível’, porém é meramente 380 APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 203. (grifo do autor). 381 Cf. CORTINA, Adela. Ética del discurso y bioética. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 76. 382 Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 52. 383 Ibid., p. 54. 92 procedimental e constitui uma ideia regulativa para a institucionalização dos discursos práticos”.384 Fundamentalmente, a parte “A” da ética apeliana está assegurada pelo seu caráter a priori, de fundamentação última pragmático-transcendental, de uma comunidade ideal contrafática.385 Ora, se o a priori da comunidade de comunicação estivesse embasado no sentido metafísico, como em Kant – ao apelar para o “reino dos fins”386 – nada mais seria que uma utopia. Trata-se, ao contrário, “de um a priori dialético, em que se incorpora a ‘facticidade’ ou ‘historicidade’, embora a subordinando ao a priori não contingente, ‘universal’, próprio dos pressupostos racionais do discurso argumentativo”.387 Não obstante, ainda que não contingente, este a priori, como sustenta Apel, é histórico, uma vez que constitui a evolução cultural. Nesta perspectiva, a comunidade ideal não está desconectada da realidade histórica, mas ancorada pelos acontecimentos do mundo da vida e, por isso, não pode partir de um “ponto cego”. Este aspecto, uma vez por todas, supera o universalismo apontado por Kant.388 Uma vez que a parte “A” da Ética do Discurso está regida pelo princípio da universalidade e nele impresso o elemento da responsabilidade, não consegue resolver o problema completo de uma ética da responsabilidade, por não ser possível, na fundamentação das normas, averiguar todas as suas consequências, mesmo que de maneira provisória, o que permite pensar na aplicação das normas tomadas em consenso. Por isso, como observa Apel, surge a parte “B” da Ética do Discurso, como aquela capaz de responder pela responsabilidade e aplicação das normas consensuais, sob o princípio da universalidade presente na parte “A”.389 A parte “B” da Ética do Discurso examina e entende as dificuldades da situação histórica e seus desafios para a aplicação sistemática das resoluções tomadas pela parte “A”. 384 MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 54. Cf. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 88. 386 Cf. MALIANDI, op. cit., p. 57. 387 Ibid., p. 57. 388 Interessa à ética apeliana os discursos reais, como capazes de cooperação entre a filosofia e a ética: por avaliar as consequências diretas e indiretas das decisões morais e, com isso, a reconstrução da história, e por ativar o campo institucional do Direito e da consciência moral. MALIANDI, op. cit., p. 58. “Segundo Apel, assim como a parte A da ética se orienta pela ideia de fundamentação, a parte B se orienta pela de responsabilidade e a razão disso radica na tentativa de evitar cair no utopismo que sua ética poderia acusar-se por ser uma ‘ética kantiana’. De fato, o imperativo categórico exige cumprimento incondicionado, quer dizer, sem atender nem as consequências nem as circunstâncias da ação.” CORTINA, Adela. Ética del discurso y bioética, p. 77. 389 HINKELAMMERT, Franz. Ética de discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica, p. 89-90. 385 93 Na comunidade real, as condições históricas e contingentes são apresentas.390 A parte “B”, neste sentido, representa a ética da responsabilidade, referida à história. 391 Esta perspectiva possibilita a transformação do princípio kantiano da moral (chamada por Apel de pósmetafísica) por garantir responsabilidade ao princípio de universalização. Ao postular a correspondência com as formas de vida, assim como da tradição moral e jurídica, embora estas estejam regidas pelo princípio de validade universal (parte “A”), a parte “B” cumpre um princípio teleológico de complementação:392 por completar a parte “A” (ideal de fundamentação). Este princípio é “de significado decisivo para a preparação de uma possível resposta ao problema [...] das coerções objetivas, restritivas da moral das instituições ou subsistemas da sociedade”.393 Nesta perspectiva, a reflexão pragmático-transcendental “descobre não somente o princípio da universalidade da ética pura, senão também um princípio estratégico-moral394 de complementação, para fundamentar uma ética da responsabilidade, que constitui a ‘parte B’ da ética discursiva”.395 Assim, enquanto as condições normativas ainda não estão dadas na história, a parte “B” exige a conciliação da disponibilidade para a solução de conflitos com a disponibilidade da ação estratégica; e procura eliminar a diferença entre a comunidade real e ideal (contrafaticamente antecipada).396 Da diferença entre a parte “A” e a parte “B” surge um duplo princípio regulativo para a ética da responsabilidade,397 a saber: em qualquer situação, é necessário assegurar a sobrevivência da humanidade; e realizar os postulados da comunidade ideal de comunicação. 390 Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 51-53. A parte “B” da Ética do Discurso se fortalece, em particular, com a proposta de H. Jonas, ao substituir o princípio da esperança pelo princípio da responsabilidade. Cf. CORTINA, Adela. Ética del discurso y bioética, p. 77. 392 “Tal aproximação não pretende realizar a pretensão hegeliana de uma substituição da ‘eticidade social’ (Sittlichkeit) concreta pela ‘moral formal’ (Moralität), mas buscar mediações históricas de superação de obstáculos à realização de uma ética universal, o que corresponde a uma ética da responsabilidade ou parte B da ética do discurso.” SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 145. 393 APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 205. (grifos do autor). Sem esta complementação da parte “B”, segundo Apel, seria impossível a fundamentação última pragmático-transcendental da Ética do Discurso. Ibid., p. 205. 394 “O princípio estratégico moral não é um agir maximizador de utilidade (ou otimizante) – como que classificamente auto-interessado –, nem está submetido às condições de uma teleologia de auto-realização individual de atores ou de uma teleologia coletiva, normativamente compromissiva da boa vida. O agir estratégico-moral é agir racional final situado sob as condições da escolha de fins e meios limitados normativomoralmente”. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 93. 395 MALIANDI, op. cit., p. 56. 396 Cf. Ibid., p. 59-61. 397 Cf. Ibid., p. 56. 391 94 A comunidade ideal é a condição necessária da comunidade real. Esta, por sua vez, dá sentido à comunidade ideal, o sentido que já é antecipado em cada argumento.398 Mas a Ética do Discurso, como adverte Apel, não está isenta de um possível dilema, naquilo que se refere à participação do indivíduo em uma comunidade de comunicação: como o consenso real dos afetados tem caráter normativo, referido à sua facticidade e validade das normas, o indivíduo não pode substituir (e, com isso, questionar) tal princípio simplesmente pelas suas representações mentais, assim como não pode questionar sua autonomia de consciência ao buscar o consenso. Diante deste aparente dilema, Apel responde que a formação do consenso encontra sua solução procedimental entre o coletivismo e a autonomia de consciência do sujeito: o coletivismo dá sustentabilidade e validade às normas tomadas em consenso; e a autonomia, compreendida no interior da intersubjetividade, sustenta e visa um consenso definitivo na comunidade de comunicação. “O procedimento recomendado pela ética do discurso se move entre a posição dialógica e a posição monológica da consciência”.399 Neste sentido, “o indivíduo pode e deve comparar e, possivelmente questionar no experimento mental, cada resultado fático de uma formação real do consenso com respeito a sua concepção de um consenso ideal”.400 Porém, em nenhum momento ele deve negligenciar a linguagem para a formação de consenso, como também interrompê-la em troca de suas convicções de consciência. 3.2.1 A dialogicidade entre a comunidade ideal (parte “A”) e a comunidade real (parte “B”) da Ética do Discurso Já apresentados os princípios reguladores da Ética do Discurso, que são os pressupostos básicos da sua fundamentação e estrutura, Apel sublinha, e com isso intensifica, três elementos básicos que norteiam a existência e pretensão de uma ética para o mundo contemporâneo: a) promover uma fundamentação racional da sua universalidade por meio da racionalidade reflexivo-transcendental-comunicativa; b) proporcionar uma ética da corresponsabilidade, assegurada por uma comunidade de comunicação portadora de uma 398 Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 145. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 55. 400 APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 162. “Isso não significa a negação de nenhum direito ou interesse individual, apenas que as carências e anseios vitais devem ‘se transformar em uma aspiração da comunidade de comunicação, de modo que sejam conciliáveis com as carências de todos os demais, pela via da argumentação”. SILVA, op. cit., p. 143. 399 95 meta-instituição; c) e proporcionar um princípio regulador capaz de mediar entre a racionalidade ética e a estratégica (que consiste na parte “B” da Ética do Discurso).401 A fundamentação da parte “A” e da parte “B” da Ética do Discurso está alicerçada na argumentação, entendida na sua dimensão pragmático-transcendental.402 Com isso, Apel apresenta a máxima de superação da filosofia da consciência, ao substituir o eu penso pelo eu argumento, tarefa esta que permite alcançar uma fundamentação última da ética. Surge, entretanto, o questionamento sobre o porquê pressupor uma comunidade de comunicação ideal (parte “A”) e uma real (parte “B”). Apel responde que o indivíduo é um ser empírico que, ao fazer uso de uma linguagem, apresenta-se como sujeito de uma comunidade particular, mas também, ao usar argumentos com pretensões universais, está obrigado a transcender seu ambiente particular e pressupor uma comunidade ideal, como via segura de validação das pretensões universais de validade. Como afirma Apel: “eu sou obrigado a me referir à audiência real de um modo como se ela já representasse a ideal”.403 Segundo Apel, esta dupla estrutura dialética da comunidade de comunicação, levada seriamente por qualquer indivíduo, supera o problema do comunitarismo e da hermenêutica relativista. Nesta perspectiva, todo aquele que argumenta pressupõe uma comunidade de comunicação real (atingida pelo processo de socialização) e uma comunidade de comunicação ideal (portadora de sentido e veracidade). A dialética consiste “em que a pessoa que argumenta de certa maneira já pressupõe a comunidade ideal na comunidade real, ou seja, 401 Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso. In VILLLA, Mariano Moreno. Dicionário de pensamento contemporâneo. Trad. Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2000, p. 282. “A única forma de falar de uma mediação entre interações comunicativas e estratégicas e, ao mesmo tempo, responder negativamente a estas perguntas, radica em afirmar que esta mediação deve ser capaz de consenso moral. Desta maneira, a ética discursiva adquire uma configuração arquitetônica: à parte A de fundamentação do princípio básico, devemos adicionar uma parte B de fundamentação dedicada a sua aplicação em situações históricas onde, precisamente, não se dão as condições próprias para tal aplicação. A pergunta é agora se ambas as partes podem manter a mesma incondicionalidade e, portanto, normatividade. Apel pensa que sim. A seu juízo, a norma básica ética não somente deve oferecer um critério intersubjetivo de validade moral, senão também uma estratégia moral dirigida a estabelecer uma reconciliação entre racionalidade comunicativa e estratégica. A metodologia para explicar esta estratégia em forma de princípio moral reside de novo na reflexão transcendental sobre as condições de sentido de nosso atuar e argumentar.” MARZÁ, Domingo Garcia. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura de la ética discursiva y su contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 97. 402 “A tese da pragmática transcendental da linguagem [...] significa a obrigação de mediar as condições da comunidade de comunicação real e ideal, justamente porque assim, como aqueles que argumentam significamente, sempre pressupomos a comunidade de comunicação real (a qual pertencemos enquanto membros), mas também antecipamos a comunidade ideal, que talvez tenha a possibilidade de julgar melhor a reivindicação de validade já estipulada.” MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para uma Crítica da modernidade, p. 231. 403 APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 282. 96 como possibilidade real da sociedade real”.404 Por um lado, o indivíduo pode e deve aceitar os argumentos de cunho linguístico-hermenêutico-pragmático de sua comunidade particular, assim como uma pré-compreensão histórica de mundo; por outro lado, deve não somente aceitar as situações de contingência, mas também recorrer a uma meta-instituição que ultrapassa o caráter contingente das situações apresentadas. E é por isso, pela meta-instituição, que as situações contingentes (do mundo da vida, das tradições, etc.) podem ser questionadas. Caso isso não fosse possível, não haveria qualquer desenvolvimento crítico e reflexivo sobre os perigos do relativismo e do historicismo.405 Cabe, então, elencar os pressupostos não-contingentes que dão sustentabilidade à argumentação da ética discursiva em prol do consenso: a) o compartilhamento de um significado intersubjetivamente válido entre todos; b) alcance da verdade universal, validamente aceita; c) pretensão de veracidade (ou sinceridade) dos atos de fala; d) e de correção moralmente relevante dos atos de fala, por meio do diálogo entre os interlocutores. Esta quarta pretensão implica na condição de uma comunidade ideal de comunicação (parte “A”) e que representa a transformação pós-metafísica da ética kantiana, da comunidade dos seres racionais puros. Ora, a comunidade ideal não existe no mundo real. Ela é uma antecipação contrafática e princípio regulador do mundo histórico. Tal comunidade requer o direito de fala de todos os participantes, assim como a corresponsabilidade de todas as resoluções e possíveis problemas propostos pelo mundo histórico à comunidade discursiva.406 Um indivíduo, ao perguntar pela fundamentação racional que o justifica ser moral ou corresponsável pelos seus atos, já pressupõe – se pergunta seriamente – uma resposta: “pois tu deves averiguar, por meio da reflexão radical sobre os pressupostos daquilo que fazes, que já assumiste corresponsabilidade no nível do discurso argumentativo e, assim, reconheceste as normas fundamentais da comunidade ideal de comunicação que tracei”,407 afirma Apel. Entretanto, reconhecer as normas fundamentais de uma comunidade ideal de comunicação “significa, precisamente, que as soluções concretas dos problemas morais referidos à situação não deveriam ser antecipadas ao nível da fundamentação pragmático transcendental”.408 Caso contrário, a Ética do Discurso estaria fadada aos princípios do racionalismo metafísico clássico, ao deduzir soluções concretas de princípios axiomáticos. Por isso, como postulado 404 APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 487. Cf. Id. Ética do Discurso, p. 282-283. 406 Cf. Ibid., p. 283. 407 Ibid., p. 283. 408 Ibid., p. 283. 405 97 por Apel, as soluções morais devem, e somente, ser delegadas ao discurso prático, onde os afetados ou seus representantes podem, numa comunidade de comunicação, estabelecer racionalmente normas valorativas para o mundo real. Neste horizonte, há necessidade de institucionalização do discurso prático, o que garantirá a resolução dos problemas práticos e a responsabilidade em âmbito global.409 Segundo Apel, esses pressupostos da Ética do Discurso sinalizam sua natureza própria: uma ética inicialmente formal e procedimental, mas portadora de conteúdos substancias. Pois os princípios reguladores da Ética do Discurso favorecem a realização do discurso prático e institucionalização das normas. Por um lado, as normas fundamentais da ética discursiva propõem a tolerância e a proteção da pluralidade das formas de vida; por outro, a Ética do Discurso, pelo seu princípio regulador, prescreve que todos os indivíduos e formas de vida particular submetam suas decisões morais em função de normas universalmente válidas da justiça e de corresponsabilidade, naquilo que se refere aos problemas comuns da humanidade.410 Para Apel, no nível da racionalidade discursiva, que é meta-institucional, cada membro de uma comunidade de comunicação reconhece sua responsabilidade, o que vem a ser uma corresponsabilidade, uma vez que o indivíduo assume, como todos os demais integrantes de uma comunidade linguística, a responsabilidade pela validade das normas tomadas em consenso, “pois a corresponsabilidade estritamente simétrica já está inclusa em todo discurso que delibera sobre a responsabilidade da aplicação, das consequências ou do futuro de um modo geral do agir”.411 O sentido desta corresponsabilidade funda uma solidariedade original, capaz de aliviar a sobrecarga do indivíduo, mas sem deixar que ele se isente de qualquer ação moral responsável. Para alcançar tal corresponsabilidade e requerer a resolução dos problemas concretos do mundo hoje é necessário, segundo Apel, criar e apostar nos diálogos e conferências, comissões em âmbito nacional e internacional, na sua dimensão política, econômica, etc.412 409 Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 283. Cf. Ibid., p. 283-284. 411 NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p.13. 412 Cf. APEL, op. cit., p. 284. Segundo Apel, diante dos problemas do mundo hoje e das tendências políticodemocráticas, esta via é a mais possível e aceitável para a resolução dos problemas e transferência da corresponsabilidade em âmbito global. No entanto, sabe-se que muitas conferências ou debates parlamentares nem sempre visam discursos práticos ideais, mas discursos estratégicos de negociação e defesa de interesses particulares. “Entretanto, é interessante observar que, à luz da publicidade, todas estas conferências e debates são obrigados, ao menos, a pretender que estão tratando os seus problemas com argumentos razoáveis, e representando com eles os interesses de todas as pessoas às quais concernem. Este fenômeno é, evidentemente, 410 98 Não obstante, a Ética do Discurso não está isenta de um problema que assola sua relevância: quais as condições que permitem sua aplicabilidade no mundo real? Ou melhor, como o indivíduo pode agir, se as condições morais ainda não foram apresentadas a ele, ainda mais quando o estado de direito não funciona ou ainda não estabeleceu normas morais para toda a comunidade? Neste caso, como responde Apel, a parte “A” “agora tem que ser suprida pela parte B, que explicitamente se refere ao fato de que, dentro da comunidade real humana as condições da ideal não estão (ou ainda não estão) realizadas, mas unicamente – de fato – antecipadas pela razão ética”.413 Apel, então, elenca duas principais características desta suplementação, realizada pela parte “B”: como não há possibilidade de manter total distância entre a racionalidade dialógica e a racionalidade estratégica na parte “B”, é necessário um método de mediação414 entre elas, que pode ser alcançado pelo avanço do discurso e observação do grau de responsabilidade que ele imprime. “Enquanto este primeiro princípio da parte B equivale a uma derivação do princípio da parte A, o segundo princípio, de algum modo, tem que compensar pelas implicações problemáticas do primeiro”. 415 Agora, a mediação entre essas duas racionalidades deve não somente se pôr a serviço do problema, mas deve “orientar-se para a realização das condições de aplicabilidade para a ética do discurso; ou, em outras palavras, para a realização da comunidade ideal de comunicação, dentro da real”.416 E em nenhum momento a parte “B” deve isentar-se de desenvolver o diálogo em busca do entendimento, mas – como na parte “A”, em certa medida – fazer atuar uma ocasião para a investigação e a análise à luz da teoria discursiva; e sim, sugiro que não é somente uma ocasião para sorriso irônico, mas também para certo sentimento de satisfação, pois não há outro modo de organizar a responsabilidade coletiva pelos efeitos de nossas ações coletivas, por não ser por meio da rede de diálogos e conferências em escala mundial.” APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 413 APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 414 Sobre a mediação entre a comunidade ideal e a comunidade real, Apel afirma: “Eu considero o termo emancipação melhor definido como a realização da comunidade de comunicação ideal [...] na comunidade real.” Apud. MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para uma Crítica da modernidade, p. 251. Porém, recentemente, Apel convenceu-se que este princípio conduzia a uma proposta extremamente utópica, substituindo-a pelo princípio de complementação. Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 56. 415 APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 416 Ibid., p. 285. “O princípio básico da ética discursiva não exige, como confunde por exemplo A. Pieper, ‘atuar como se fosse membro de uma comunidade ideal de comunicação’. Se assim fosse, de nada adiantaria termos abandonado as consequências do rigorismo kantiano, pois no âmbito privado das máximas não podemos contar com contextos ‘descarregados’ dos problemas de ação. Dito de outra forma, não podemos confiar que estão garantidas as condições de reciprocidade e simetria que subjazem à exigência de participação. Nas palavras de Apel, não somente não seria exigível senão imoralmente irresponsável aturar na situação real como si estivéssemos na ideal. Em suma, utilizar como único critério de orientação a incondicionalidade do princípio moral.” MARZÁ, Domingo Garcia. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura de la ética discursiva y su contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 97. 99 este princípio regulativo como uma estratégia moral a longo prazo.417 “As partes A e B da ética pragmático-transcendental do discurso formam uma unidade. A ética do discurso assim concebida possui estrutura holística – e é esta estrutura holística do dever ideal-moral e estratégico moral que representa e marca o passo decisivo”418 da ética apeliana. Fundamentalmente, a parte “B” da Ética do Discurso prescreve a corresponsabilidade entre os dialogantes, que se dá na pertença de cada indivíduo a uma comunidade de comunicação real e antecipadamente ideal.419 E em nenhum momento se pode separar inteiramente, o que seria um regresso moral, os problemas da parte “B” da moral pessoal. Dessa forma, a ideia de corresponsabilidade apresentada pela Ética do Discurso vai muito além da compreensão de responsabilidade, que pode ser atribuída individualmente por uma instituição, como acentuado pelas éticas tradicionais. 3.3 A reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia Segundo Karl Otto Apel, desde o início da história da filosofia há uma confusão quanto ao paradigma propriamente salutar da racionalidade filosófica: um paradigma consiste na prova lógico-formal, particularmente exposto por Aristóteles. Desde então este paradigma, de Frege a Russell, com o desenvolvimento da lógica-simbólica-matemática, alcançou uma validade quase que inquestionável, o que representou o suporte substancial da filosofia analítica do Ocidente. Ora, segundo Apel, este paradigma, embora apontado como racionalidade filosófica, não foi senão o da racionalidade matemática, principal adversário de uma fundamentação última para uma ética racional. A racionalidade matemática se caracteriza pela pretensão (e natureza) de alcançar a objetividade das coisas mediante as estruturas da razão e controle dos argumentos, “já que faz estritamente abstração da possibilidade de autorreflexão do pensamento real na realização da autoreflexão do sujeito responsável do pensamento”.420 Este paradigma da filosofia analítica e de abstração autorreflexivo pode ser compreendido por três fatores, a saber: a) a admissão da autorreflexão como produto do pensamento humano, estruturado pela lógica proposicional e, por isso, caracterizada pela 417 Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 207. 418 NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 95. 419 Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 286. 420 Id. Estudios Éticos, p. 142. (grifo do autor). 100 introspecção empírica dos indivíduos, o que revela seu viés estritamente psicológico. Assim, desde Agostinho, Descartes até Husserl e ao passar por Kant e Hegel, esta perspectiva de autorreflexão foi entendida como fundamento da argumentação; b) o acento na perspectiva lógico-metodológica, de caráter fundamentalmente lógico, em prol de uma racionalidade técnico-metemática, que pode ser caracterizada como objetivação da moderna semântica lógica. Esta segunda perspectiva de autorreflexão é um complemento da primeira, aqui apresentada; c) dessas duas compreensões negativas, sobre a autorreflexão, Apel aponta uma terceira, porém positiva, ainda que limitada: a autorreflexão admite um logos ou a “razão humana” e, por isso, admite a possibilidade de uma validade universal das proposições, além de postular um discurso performativo e de possibilidades infinitas de metalinguagens.421 Dessas considerações, que isentam uma real fundamentação última da filosofia, mas que sugerem tal fundamentação, Apel conclui que somente uma “autorreflexão realizada de maneira linguisticamente responsável – quer dizer – em enunciados performativos e proposicionais implicitamente autorreferenciais – do pensamento e de sua pretensão de verdade, apresenta o paradigma genuíno da racionalidade filosófica”.422 Pois a tentativa de fundamentar a argumentação pelos jogos de linguagem do pensamento, como prescrito pela perspectiva psicológica pós-cartesiana do conhecimento, nada mais acentuou que o caráter introspectivo e solipsista do conhecimento, o que pouco vem representar para a racionalidade propriamente filosófica.423 Nesta perspectiva, como afirma Apel, ao recorrer à dimensão pragmática da linguagem e, com isso, considerar sua dimensão interpretativa e performativa pelo sujeito responsável do pensamento e do conhecimento, o que caracteriza a dimensão própria da autorreflexão transcendental – na sua peculiaridade de conceber que “uma demonstração filosófica se faz enquanto explicitação das condições de possibilidade e validade daquilo que 421 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 142-147. “A primeira dificuldade, que se explicita hoje, sobretudo nas objeções do racionalismo crítico, é a concepção vigente de que toda fundamentação é uma dedução no quadro de um sistema axiomático no modelo articulador da lógica formal. Aqui está para Apel o cerne das dificuldades: a lógica formal, como Fichte já percebera, fundamenta ‘a partir de’ princípios e, portanto, não pode ser uma demonstração ‘de’ princípios”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 280. Ao contrário, “o discurso argumentativo, medium linguístico intranscendível, pressupõe uma racionalidade do entendimento que precede, porque é ela que possibilita, a validação de todo tipo de racionalidade, de toda teoria científica e de toda fundamentação científica ou filosófica”. HERRERO, Javier. O problema da fundamentação última. KRITERION 91 (1995), p. 13. 422 APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 148. 423 Ao contrário, “só por estrita autorreflexão [no âmbito da argumentação, constitutiva de toda fundamentação filosófica e científica] podemos tomar consciência da relação necessária que existe entre o conteúdo afirmado e fundamentado pela argumentação e as condições transcendentais de possibilidade dessa mesma argumentação, e perceber assim porque ela não pode, por sua vez, ser fundamentada de modo lógico-dedutivo.” HERRERO, op. cit., p. 13. 101 o homem faz, quando ele age linguisticamente”424 – se pode falar, com precisão, “de uma reflexão pragmático-transcendental como método da filosofia. Nela é possível sustentar o paradigma propriamente dito da racionalidade filosófica no sentido da fundamentação última de validade”.425 Ora, como entende Apel, se a racionalidade matemática é a forma legítima de pensar filosoficamente, então se pode afirmar que a racionalidade pragmático-transcendental, a partir do viés matemático, só venha ser coerente se concebida como estrutura de demonstração dedutiva. Dessa maneira, deveria a racionalidade pragmático-transcendental sustentar suas sentenças propositivas pelo viés lógico-semântico de validade intersubjetiva, em detrimento da não-contradição performativa, que é um pressuposto básico da sua estrutura argumentativa. Neste sentido, é impossível sustentar a racionalidade pragmático-transcendental nos moldes da racionalidade lógico-proposicional.426 Ao contrário, todo discurso que pressupõe uma contradição performativa e que não se pauta pela demonstração lógica de suas sentenças, no sentido da lógica matemática, e, com isso, postule a pretensão de verdade pelo diálogo, caracteriza a fundamentação última da filosofia, que vem a ser a racionalidade pragmáticotranscendental.427 Segundo Apel, “a contradição não se dá em nível semântico [...] mas entre o que é afirmado e as condições necessárias de possibilidade dessa afirmação, ou seja, entre o conteúdo e o ato de afirmar: o ato implica e pressupõe verdade, enquanto o conteúdo afirma não haver verdade”.428 Daí, pode-se presumir que o ato tem o caráter de desmentir e destruir o conteúdo. Este só adquire sentido se a verdade for pressuposta. A natureza da demonstração filosófica consiste, então, numa prova indireta, sendo que o contrário (numa prova direta) só pode desembocar num regresso infinito. Ela é indireta porque transita pela demonstração de falsidade do seu contraditório. Assim, a dúvida se apresenta como instância substancial para sua própria saída: ela, radicalmente exposta, se converte em certeza. Segundo Apel, este 424 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 280. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 153. 426 Cf. Ibid., p. 154-155. 427 Cf. Ibid., p. 156-157. 428 OLIVEIRA, op. cit., p. 282. “O ser-com os outros no mundo enquanto seres humanos e a sua estrutura de reciprocidade se mostram como autêntico transcendental de todas as atividades e funções humanas, por isso, quem negasse ou tentasse negar, em princípio, esta estrutura, de reciprocidade de todo sentido e de toda validade, estaria se autodestruindo. É por isso que o critério da autocontradição performativa é último, porque ninguém pode negar explicitamente em alguma atividade teórica ou prática com sentido que ele é ser humano, i.é, ser-com os outros no mundo na reciprocidade dialógica, ética e discursiva, sem auto-contradizer-se no ato mesmo de sua expressão humana com pretensão de sentido.” HERRERO, Javier. O problema da fundamentação última. KRITERION 91 (1995), p. 13. 425 102 argumento constitui a peculiaridade da reflexão filosófica, pois é o caminho que dá possibilidades à fundamentação última da filosofia. Portanto, a filosofia só pode perscrutar uma fundamentação última por meio da forma da negação, revelada na contradição performativa.429 Para Apel, o ponto máximo de fundamentação última da filosofia, na sua perspectiva pragmático-transcendental, consiste no a priori situacional, de explicação do “feito da razão”, como postulado por Kant.430 Porém, este “feito”, além de Kant, só adquire relevância se derivado de “uma condição normativa da possibilidade da argumentação que, ao mesmo tempo, é fundamento normativo da derivação de todas as normas éticas”.431 A partir dessa observação basilar, Apel explicita os principais elementos do discurso normativo, enquanto ética da responsabilidade: todo aquele que argumenta deve pressupor, através da autorreflexão, uma norma ética básica, que a razão é prática. Ela deriva da atuação humana e se propõe, pelos argumentos, postular a pretensão de verdade e validade. Neste horizonte, as regras ideais numa comunidade ilimitada de comunicação – reciprocamente comungadas entre os interlocutores de direitos iguais – representam as condições normativas de toda validade ética, com pretensão de consenso432 em referência a qualquer questão eticamente sugerida. Dessa forma, a comunidade humana de argumentação parte do pressuposto que “estão eliminadas a priori todas as limitações concebíveis à competência de conteúdo e da validade intersubjetiva. Pois qualquer que seja o conteúdo de interesse que possa ser analisado [...] só pode fazer-se sob o pressuposto do reconhecimento prévio da norma ética básica já pressuposta no discurso argumentativo”.433 Este legado confere obrigatoriedade à validade da norma básica para todo aquele que argumenta com pretensões de verdade e validade na comunidade de comunicação. Ao contrário, sem o respeito à norma básica, não há qualquer possibilidade de pretensão à verdade ética.434 Essencialmente, segundo Apel, a 429 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 282-283. Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 162. 431 Ibid., p. 162. (grifo do autor). 432 Para Apel, “a possibilidade de entendimento e acordo excede toda fronteira de tradição e contexto e alcança todos aqueles que possuem competência comunicativa”. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y Responsabilidad, p. 25. 433 APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 168. (grifo do autor). 434 Nesta perspectiva, Apel assinala a diferença entre seu postulado ético com o de Peirce. Ao contrário do que a ética discursiva pragmático-transcendental propõe, como que exposto no parágrafo acima, “a ética da comunidade de investigadores de Peirce trata efetivamente de uma ética especial para pessoas que, enquanto membros de uma comunidade de investigadores da verdade, têm, segundo Peirce, que realizar um ‘selfsurrender’ no sentido da subordinação de todos os interesses individuais ao interesse na formação de um 430 103 norma ética básica tem o caráter de um princípio metódico, o que permite a realização de sua potência normativa.435 Nesta empreitada em discorrer sobre a fundamentação última da filosofia, o que dá fundamento a uma ética racional para o mundo contemporâneo, Apel afirma que o discurso argumentativo representa, sobretudo, uma meta-instituição, cuja tarefa é a de agir reflexiva e criticamente sobre toda e qualquer instituição humana. No jogo de linguagem “tem que estar dado a priori o passo possível ao discurso argumentativo, especialmente ao discurso prático, como instância possível da fundamentação crítica das normas, quer dizer, da sua legitimação”.436 Enfatiza Apel que os pressupostos normativos do discurso argumentativo não pertencem somente às condições ideais, já antecipados, da comunicação e da formação de consenso, mas à pressuposição que os problemas, de fato, devem ser resolvidos pelo consenso entre os interlocutores de uma comunidade. Sem esta pressuposição, o discurso entre os indivíduos perde seriedade.437 Ainda que um indivíduo tente negar tais pressupostos, ele já estará no âmbito do argumento. E isso já o coloca incluso nos pressupostos requeridos.438 O discurso prático, de fundamentação e legitimação de normas, está regido pelo princípio de universalização. Pois toda pretensão de validade normativa e verdade argumentativa deve obedecer a este legado, uma vez que se busca o consenso na comunidade ilimitada de comunicação. Portanto, segundo Apel, o discurso prático deve realizar-se sob o princípio da universalização “através da via de interpretação e mediação das pretensões de todos os afetados, representadas mútua e reciprocamente no discurso”.439 consenso acerca da verdade no sentido da ciência, que somente é realizável ‘in the long run’ na ‘indefinite community’. Neste sentido, é possível reduzir aqui com razão a validade intersubjetiva da norma básica àqueles que se tenham decidido expressamente pelo ‘self-surrender’ que exige Peirce. Também materialmente esta ética está limitada à comunidade de investigadores na medida em que não fundamenta nenhuma norma para a defesa e mediação dos interesses e necessidades individuais sob a forma de pretensões éticas ou jurídicas. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 167. Segundo Apel, a reciprocidade entre os dois postulados éticos consiste no pressuposto de que o conhecimento científico só pode ser alcançado numa comunidade de comunicação, em detrimento de um sujeito isolado do conhecimento ou de uma “consciência geral”. Cf. Ibid., p. 166. 435 Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 163. 436 Ibid., p. 169. 437 Cf. Ibid., p. 169-171. 438 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 281. 439 APEL, op. cit., p. 163, p. 174. Para Apel, não há dúvida que aqui surge a dificuldade de adequadamente realizar o discurso, com todas as suas pressuposições e pretensões, em vista das pretensões dos não participantes numa comunidade, mas afetados, como, por exemplo, dos marginalizados sem chances de voz, de menores indefesos, como no aborto, ou também diante da situação ecológica, até mesmo das futuras gerações. Essas são algumas dificuldades que surgem na realização do discurso prático. Não obstante, é possível identificar sua relevância nas inúmeras tentativas públicas deste princípio regulativo na realização de fóruns, conferências, como já apontado, que se propõem em discutir os problemas reais da humanidade. Cf. Ibid., p. 175. 104 Ainda, na tentativa de atender seu propósito, sobre as bases sólidas da fundamentação última filosófica, Apel aponta a compatibilidade entre a fundamentação última e a teoria consensual da verdade. Segundo Apel, o conhecimento não pode ser fruto de uma evidência privada, mas de um “a priori público, quer dizer, tem que estar impregnado de linguagem. Aí está já implicada a necessidade de uma capacidade de consenso ilimitada por parte de qualquer pretensão válida de conhecimento”.440 Com isso, Apel acredita ser necessário o consenso para o alcance e validade do conhecimento. Mas como, no ato do conhecimento, postular se as proposições são verdadeiras ou não? Mas elas também não podem ser negadas se advindas de uma autocontradição performativa? Diante de tais questões Apel responde que, embora elas postulem sentido e verdade, precisam de consenso. Dessa forma, estão impregnadas de linguagem e, por isso, podem ser explicadas pela linguagem. Portanto, “na medida em que o conhecimento é impregnado linguisticamente e, por conseguinte, é intersubjetivo, temos como implicação a necessidade de uma capacidade ilimitada de consenso como critério normativo de validade”.441 3.3.1 A contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva Em busca de uma fundamentação pragmático-transcendental da Ética do Discurso, como fundamentação última da filosofia, Apel analisa “a reconstrução, empreendida por Kohlberg, da ontogênese da competência do juízo moral, no sentido de uma correspondente reconstrução da filogênese, isto é, da evolução sociocultural da consciência moral”.442 Kohlberg estabelece uma hierarquia de seis estágios (pré-convencional 1; pré-convencional 2; convencional 3; convencional 4; pós-convencional 5; pós-convencional 6) “partindo de uma moral heterônoma e egocentrada na direção de uma maior autonomia e universalização do juízo moral, correspondentes ao desenvolvimento da autonomia intelectual das crianças e jovens”.443 Com isso, Apel estuda o princípio pragmático-transcendental com referência aos estágios da compreensão do juízo moral (nas suas dimensões psicológico-descritivoexplicativa e de fundamentação filosófica), desenvolvido por Lawrence Kohlberg.444 440 APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 137. (grifo do autor). COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 400. 442 APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 217. 443 SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 151. 444 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 228. 441 105 Para Kohlberg, na compreensão de Apel, o processo de desenvolvimento da ontogênese do juízo moral pode ser compreendido a partir da, ou como, “hierarquia” de formas de integração moral, no sentido da justiça crescente. Quatro teses sustentam tal empreendimento de Kohlberg: a) o ato de julgar moralmente repousa sobre um processo do role taking (assumir uma função); b) em cada estágio ele aponta para uma nova estrutura lógica; c) a estrutura pode ser concebida como estrutura-de-justiça; d) e em cada estágio seguinte a estrutura é mais abrangente e diferenciada que no estágio anterior. Estas teses estão comprovadas, segundo Apel, nos seis estágios da competência do juízo moral prescritos por Kohlberg.445 No estágio pré-convencional 1, o indivíduo (a criança) ainda não está em condições de realizar uma operação mental concreta, no sentido de reciprocidade lógica, pressuposto necessário para a reciprocidade do juízo moral. Como também ele não está em condições de conceber “justiça”, no sentido de uma reciprocidade entre indivíduos ou de relação de troca, mas somente no sentido de uma “ordem social”, imperativo.446 No estágio pré-convencional 2, o indivíduo (a criança) já atinge condições, ainda que não suficientes, de executar uma operação mental concreta, de reciprocidade. Como também já consegue definir “justiça”, como polidez, no sentido de reciprocidade concreta de troca de serviços (agrados ou ofensas). A criança percebe que não deve agredir a outra e vice-versa.447 No estágio convencional 3, o indivíduo (criança ou jovem) já se encontra em condições de assumir uma função, no ato de julgar. Assim ela pode analisar dois diferentes papeis e relacioná-los entre si. Agora o indivíduo tem consciência de uma reciprocidade ideal, que ordena tratar os outros como ele gostaria de ser tratado, e não como é tratado pelo outro (o que representa a “regra de outro” da Bíblia). Ora, a questão o que fazer se um indivíduo bater no outro? suscita as seguintes respostas: devolver o tapa, pois é necessário fazer com o outro a mesma coisa que ele fez para mim (estágio 2); relevar o insulto, pois agir com violência, na mesma medida da agressão, não possibilita uma relação de reciprocidade entre as pessoas. Assim pensaria o indivíduo do estágio 3. Mas esta condição ainda é muito limitada, pois se certifica particularmente dentro de relações já estabelecidas, como de família, amizades, etc. Por isso, ainda não há qualquer possibilidade, no estágio 3, de universalização do role taking, como também ainda não há possibilidade de formulações mais precisas de deveres e direitos da função. 448 Somente no 445 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 229. Cf. Ibid., p. 229. 447 Cf. Ibid., p. 230. 448 Cf. Ibid., p. 230-231. 446 106 estágio convencional 4 é possível tal condição, que é o estágio do law and order (lei e ordem), estreitamente relacionado com a ordenação estatal, social e jurídica. A relação recíproca positiva de justiça agora se realiza em função da recompensa entre indivíduos e sistemas, e não mais na troca interpessoal de bens e serviços. E a relação recíproca negativa de justiça agora se realiza segundo a medida de igualdade perante a lei, e não mais no sentimento de vingança ou reparação entre as pessoas.449 No estágio pós-convencional 5, surge a perspectiva do legislador, de fundamentar a ordem social pela aquisição de contratos. Este estágio se configura como o de direitos prioritários ou de contrato ou utilidade social. Utilidade, aqui, significa utilitarismo regulador, que tem o caráter de conferir validade às regras e leis se consideradas as mais úteis para os indivíduos (ao contrário das leis pressupostas como sacrossantas, como no estágio 4). Neste estágio, para Apel,450 a moral interior é superada pela garantia do estado de liberdade de todos os indivíduos e pela tentativa de contrato entre os cidadãos. Ora, no estágio 4, a justiça é entendida como defesa da ordem social; no estágio 5, como portadora de legislação em vista do bem-estar de todos e como mediadora entre os vários interesses (que vem a ser uma democracia constitucional, portadora de direitos iguais e de formação de consenso). Mas o estágio 5, como observa Apel a partir de Kohlberg, ainda não pode ser considerado o estágio mais alto de desenvolvimento da competência de juízo moral, pois nele ainda não está disponível o ponto de vista moral e o princípio moral que orienta o indivíduo a agir.451 No estágio pós-convencional 6, o indivíduo alcança a capacidade de agir em consonância com o outro, porque sua decisão, que prima pela conservação da vida, se baseia na necessidade do outro e, por isso, é universal, válida em qualquer situação. Neste estágio, a ação do indivíduo não está regida por uma avaliação utilitarista de vantagens e nem por um acordo social de direito positivo, mas pelo respeito igualmente legítimo a cada pessoa e em qualquer situação. Por isso, este estágio faz valer dois princípios morais que definem uma “lei moral maior”: o “princípio kantiano, de que pessoas, como seres de fim autônomo (Selbstzweckewesen), possuem um valor moral incondicional, e o princípio, de todo correspondente, da igualdade moral de direito de todas as pretensões (jurídicas) das pessoas em todas as situações”.452 Esses dois princípios morais estão sempre vinculados a qualquer indivíduo de razão e, ao mesmo tempo, são universais; também estão acima de toda lei jurídica e, por isso, devem fundamentar toda e qualquer pretensão de 449 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 231-232. Cf. Ibid., p. 233. 451 Cf. Ibid., p. 232-234. 452 Ibid., p. 240. (grifo do autor). 450 107 validade das leis. Neste horizonte, na interpretação de Apel, os princípios de moral do estágio 6 de Kohlberg não estão regidos apenas por uma condição formal e precedural, quanto à formulação de normas e leis. Mas por princípios formais e deontológicos que prescrevem os princípios da universalidade e da validade de deveres a qualquer pessoa e, com isso, a conservação da vida humana e o tratamento ao outro como fim e não como meio.453 Segundo Kohlberg, na compreensão de Apel, uma possível relação entre o estágio 6 e a teoria de Rawls aponta para uma extraordinária análise: a teoria de Rawls preenche uma função normativa que a teoria de Kohlberg não consegue alcançar, “a de prescrever a uma pessoa racional os princípios de seus juízos morais e de, ao mesmo tempo, justificá-los”.454 Por isso, como afirma Kohlberg segundo Apel, a filosofia de Rawls pode demonstrar que os estágios cada vez mais altos, são moralmente melhores. Neste sentido, como deduz Kohlberg na interpretação de Apel, a passagem do ponto de vista utilitarista-regulador para o da justiça, em Rawls, consolida a mudança do estágio 5 para o estágio 6. E isso possibilita Apel fazer uma relação entre a teoria de Kohlberg e a ética discursiva.455 Nesta perspectiva, percorridos e analisados os seis estágios da competência de juízo moral em Kohlberg, Apel agora se propõe relacioná-los, e com isso, analisá-los à luz da ética discursiva. Segundo Apel, o princípio do role taking corresponde, na Ética do Discurso, ao postulado de que todas as normas morais, asseguradas pelo discurso argumentativo e discussão entre todos os interlocutores de uma comunidade de comunicação, devem alcançar um real consenso. Para Apel, tais concepções (da teoria de Kohlberg e da ética discursiva) podem ser entendidas como transformações do princípio de universalização kantiana. Fundamentalmente, ambas as concepções estão sustentadas pelo princípio de justiça. Os princípios do role taking e da compreensão de fala podem ser considerados complementares porque clareiam outros aspectos de uma só realidade: postulam uma estrutura de reciprocidade moral, que integra os sujeitos e ascende uma consciência pós-convencional.456 Esta perspectiva rompe com o estágio 4, pois a autoridade normativa da justiça social particular sede lugar para uma reciprocidade do role taking numa ilimitada comunidade de comunicação ideal. Dessa forma, se consolidará uma racionalidade ética onde um sujeito autônomo discutirá com outros membros de uma mesma comunidade o sentido e validade das normas, sempre sob os princípios do direito de fala entre todos e da formação de consenso. 453 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 238-241. Ibid., p. 245. 455 Cf. Ibid., p. 254. 456 Cf. Ibid., p. 254-255. 454 108 Segundo Apel,457 até aqui consiste a contribuição de Kohlberg para a Ética do Discurso,458 de fazer pensar os pressupostos da Ética do Discurso na relação com os estágios da consciência moral desenvolvidos por Kohlberg. Neste horizonte, Apel reforça a tese de que a consciência pós-convencional combate, na tentativa de extinguir, a possibilidade do mau uso estratégico-egoísta da competência do role taking. Essa mesma pretensão se encontra na ética discursiva. E ambas estão regidas pelo princípio da justiça, uma vez que toda ação resultante do experimento mental do role taking leve à realização de consenso. Segundo Apel, poder-se-ia, a partir desta abordagem, deduzir a seguinte máxima para a ética discursiva: age de tal forma, como se tu fosses membro de uma comunidade ideal de comunicação.459 Esta fórmula, aparentemente válida, parece apontar a resolução de todos os problemas morais, a partir do uso dos princípios reguladores da formação de consenso. No entanto, ela não oferece qualquer relevância e, por isso, se legítima, seria no mínimo ingênua e moralmente irresponsável. 460 Para Apel,461 tal análise o leva a seguinte constatação: há necessidade de um estágio superior e mais maduro que o estágio 6 da competência do juízo moral elaborado por Kohlberg. Conforme Apel, a teoria de Kohlberg, ainda que relevante, enfrenta o problema de déficit de concretude metodológica, identificado nos seus estágios pós-convencionais, problema tal também identificado nas éticas de princípio, de Kant e de Rawls.462 Portanto, como observa Apel, no estágio 6 não há condições específicas para o emprego da moralidade. Aí reside o déficit apontado por Apel. “Se isto for entendido, resultará formalmente um problema especial da competência de adoção da moralidade dos estágios pós-convencionais, 457 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 256. Segundo Habermas – na compreensão de Apel – Kohlberg não alcançou um estágio pleno de desenvolvimento da consciência moral. Por isso, Habermas postulou um novo estágio, o estágio 7, onde se supõe que o ideal de universalização seja estabelecido como norma não somente pela experiência mental do indivíduo, mas pela interação entre os interlocutores de um discurso. Não há dúvida, como entende Apel, que esta empreitada de Habermas venha consolidar a crítica e transformação da máxima de universalização moral kantiana. O estágio 7 representa o estágio final de uma evolução da competência comunicativa, caracterizado pela interação real entre os dialogantes de uma comunidade de comunicação. Mas Kohlberg, conforme Apel, embora tenha aceitado a interpretação e proposta de Habermas sobre a criação do estágio 7, declarou (em Moral Stages: a Current Formulation and a Response to Critics, 1982), supérfluo tal postulado. Cf. APEL, op. cit., p. 256-257. 459 Cf. APEL, op. cit., p. 272. 460 “Nesse caso [como apresentado na máxima age de tal forma, como se tu fosses membro de uma comunidade ideal de comunicação], a ética do discurso se tornaria uma ética da convicção como em Kant, em que a correção da ação do indivíduo está completamente desvinculada dos efeitos da ação. Uma ética da responsabilidade deve estar atenta às consequências da ação e inclusive fazer uso da ação estratégica em determinadas circunstâncias em que se torna legítima a transgressão da norma”. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 163. 461 Cf. APEL, op. cit., p. 273. 462 Cf. Ibid., p. 273. 458 109 sobretudo do estágio 6”.463 O problema se intensifica ao se constatar que o estágio 6, ainda que ancorado no princípio da justiça, se constitui por uma “moral intrínseca” de sistemas de autoafirmação social.464 Ora, como entende Apel, uma ética responsável exige a garantia de discursos práticos, onde se pode garantir a responsabilidade coletiva (e não individual) mediada pelo ato de comunicação entre os indivíduos de uma comunidade. Com isso, constata-se que em toda comunidade de comunicação ideal, onde são estabelecidos os pressupostos para a participação do discurso, já se pressupõe a competência formal-abstrata apontada pelo estágio 6, particularmente pela formação do consenso e princípio de justiça. Mas não pode, como no estágio 6, ocorrer uma moral isolada, isenta de uma mediação entre parceiros de comunicação.465 Portanto, o possível estágio 7 (necessário para a fundamentação última da ética discursiva) consiste no postulado de uma ética de responsabilidade da consciência moral (de intermediação eticamente responsável da racionalidade ética), onde se pressupõe a participação dos interlocutores, amparados pelo princípio da justiça e no mesmo nível de discurso, numa comunidade de comunicação. 3.4 A relevância da Ética do Discurso Diante dos desafios do mundo globalizado, como a economia excludente, o darwinismo social, o perigo do desenvolvimento tecnológico e científico em massa, que atingem toda a humanidade e a biosfera – embora também se reconheça o benefício que a globalização trouxe para o homem, como a ruptura das fronteiras, em certa medida, o comprometimento da técnica em função da vida, o progresso do conhecimento, particularmente das ciências técnicas e sociais – como mensurar a relevância da Ética do Discurso, enquanto uma proposta democrática de alcance universal? Se a Ética do discurso é uma proposta ética racional, como, então, pensar as relações humanas a partir da razão? Ou, de outra forma, o que pressupõe a configuração racional da convivência humana? Ora, estaria então a Ética do Discurso disposta a combater o mero arbítrio ético ou relativismo moral? Como também, empenhada a combater a neutralidade axiológica das ciências? O fato é que “a razão tem a ver com o que é comum, universal; aqui, com o que possibilita a unidade da convivência na diferença. Assim pode-se dizer que uma sociedade é racional quando resolve 463 APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 276. Cf. Ibid., p. 276. 465 Cf. Ibid., p. 281-282. 464 110 seus conflitos a partir do reconhecimento de regras comuns, universais”.466 A universalidade se efetiva quando se opta pela responsabilidade de todos e, por isso, pela negação da arbitrariedade moral ou de sua privacidade e relativismo. Neste sentido, a filosofia é convidada a colocar-se no nível do discurso transcultural (global), numa esfera, como denominada por Apel, da “globalização de segunda ordem”. “Isso significa fundamentar princípios universais que possibilitem o encontro entre seres humanos, indivíduos, grupos e instituições, mesmo Estados nacionais, justificado por razões, por sentido e não pelo arbítrio e pela força”.467 Trata-se, então, de uma ética universal e de uma teoria normativa das instituições políticas globais, capaz de discutir, em rede internacional, os problemas da humanidade enquanto um todo; uma ética apta a tratar os problemas mais urgentes da humanidade e de fundamentar o agir humano, a justiça e o direito pelo viés do discurso, ao ter como referência a própria humanidade; “uma macroética universalista da humanidade, ou seja, uma ética política da solidariedade universal, uma macroética da corresponsabilidade planetária que fundamente uma ordenação jurídica em nível mundial”.468 E é justamente no contexto de ceticismo, no qual impera o relativismo, onde não é possível a validade objetiva da ética e, por isso, de uma ética universal capaz de reger as relações humanas – como também do realismo e do comunitarismo469 implacáveis, ao desconsiderar uma ética de alcance universal – que a Ética do Discurso revela sua proposta de uma ética solidária, fundamentada na justiça e guiada por um princípio normativo, dado pelo consenso entre os interlocutores de uma comunidade de comunicação.470 Não obstante, os desafios acima apresentados não deixam de oferecer um dilema para a filosofia: ou ela se estrutura e se desenvolve imersa na historicidade do pensar, nos jogos contingentes de linguagem e nas formas de vida contextualizadas, cultural e tradicionalmente; ou ela, a partir da historicidade – ao mostrar que esta não encerra o problema filosófico – procura tematizar 466 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 177. Ibid., p. 178. 468 Ibid., p. 179. 469 Os realistas abnegam uma ética de alcance universal por apontar a injustiça imperante nas relações internacionais, assim como a fraude e rompimento de acordos. Ao contrário, a política, no seu estado de liberdade, deve, exclusivamente, buscar o interesse nacional. Dessa forma, o realismo radica sua absolutização no fático e desqualifica o ético, em âmbito universal. Os comunitaristas afirmam a possibilidade de uma validade moral somente no seu ambiente social próprio, particularmente determinada pela sua tradição cultural. Como se observa, ambas as teorias defendem um particularismo normativo, fruto das necessidades de cada lugar. Dessa forma, negligenciam a existência de uma ética universal, por resistir à observância de normas comuns para todos os homens e, por isso, sustentar uma ética contextualizada a partir e no regime de cada tradição. Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 180-183. 470 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 180. 467 111 de maneira reflexiva, as questões contingentes e a validade do conhecimento. Segundo Karl Otto Apel, não há dúvida de que a filosofia deve percorrer o segundo caminho, o que significa adotar a linguagem – no sentido da reviravolta linguístico-hermenêutica – como médium instransponível e irrecusável de todo sentido e validade.471 Uma vez que os indivíduos, nesta perspectiva, reciprocamente se comunicam e, pela linguagem, alcançam consenso, como via segura de conhecimento e validade das normas, constituem, então, uma comunicação intersubjetiva mediada. A argumentação (ou discurso), desenvolvida e significada na reviravolta linguística, adquire o significado de razão e, por isso, também obtém uma dimensão social: “razão é, então, essencialmente, intersubjetividade, ou seja, tem a ver com funções e produções que remetem diretamente à interação e à cooperação,”472 o que leva a concluir que “a razão se efetiva essencialmente na cooperação entre sujeitos; possui em si mesma um nexo interno à relação sujeito-sujeito”.473 Ora, a linguagem surge como condição necessária para a reflexão transcendental que, particularmente, se caracteriza pelo questionamento acerca das condições de possibilidade e validade do conhecimento. E somente por meio de uma autorreflexão se pode alcançar o consenso, via linguagem. Essas considerações levam a afirmar que a filosofia é reflexão transcendental, autorreflexão pela linguagem, com pretensão de tematizar as questões intransponíveis de possibilidade e validade do conhecimento. Neste sentido, a filosofia tem a tarefa particular de explicitar as condições formais da argumentação e, com isso, alcançar a universalidade própria da razão, já acenada na sua busca constante pelo entendimento numa comunidade de interlocutores.474 Em torno dessa tarefa, aparece, como entende Apel, a necessidade de fundamentação de um princípio de justiça universalmente válido, responsável, dado pelo discurso racional, de caráter formal-procedimental.475 Esta, que consiste na primeira parte da Ética do Discurso, se caracteriza pela reciprocidade dialógica universal e pela igualdade básica de direitos na 471 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 185-186. Ibid., p. 187. 473 Ibid., p. 187. 474 Cf. Ibid., p. 187-188. 475 No legado procedimental da Ética do Discurso se reconhece o acordo entre todos os indivíduos em uma comunidade de comunicação, vinculados por uma participação simétrica. Assim, se a norma básica da ética discursiva remete ao consenso, a ética, então, atende um critério de legitimação democrática: “para a ética discursiva a democracia representa a realização, no âmbito político, da comunidade ideal de comunicação necessariamente pressuposta em todo atuar com sentido. Desta forma, a democracia deixa de ser uma última e resignada solução ao problema do poder político para converter-se em uma medida crítica de toda ordem social”. MARZÁ, Domingo García. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura de la ética discursiva y su contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 35. 472 112 argumentação. O que revela a natureza própria da racionalidade discursiva, a capacidade de estabelecer uma relação dialogal, cooperativa, entre os interlocutores na busca pelo consenso, em detrimento de qualquer violência ou predomínio de fala. Isto leva a afirmar que “a política é o esforço de efetivar a razão comunicativa na esfera da solução dos problemas coletivos e seu sentido é, então, o de instaurar uma comunidade baseada na razão, entendida discursivamente”.476 No viés da racionalidade (fundamentação) pragmático-transcendental, se podem discutir os problemas mais agudos do mundo globalizado, como a institucionalização dos direitos humanos, o ataque aos valores morais circunstanciais, etc. Nisso consiste a segunda parte da Ética do Discurso: uma ética de responsabilidade coletiva, que percebe a necessidade de uma fundamentação de normas materiais para o mundo histórico: “quem argumenta pressupõe, não só, necessariamente, condições ideais de uma comunidade ilimitada de comunicação, mas também condições históricas e contingentes da situação da comunidade real de comunicação”.477 Para Apel, somente mediado pela linguagem, onde o discurso alcança sua forma específica de reflexividade – na pressuposição de institucionalização do discurso real e mediação do princípio moral e situação real – se pode intervir no atual sistema econômico do mundo e transformá-lo na direção da justiça social global. Pois, diante do quadro estratégico das políticas nacionais e internacionais e do uso emergente da força de poder, há necessidade – na tentativa de uma solução dos conflitos pelo discurso – de um “complemento entre uma moral deontológica e uma moral teleológica que tem a ver com a mediação necessária entre o princípio moral [...] e as situações reais, na medida em que o princípio deôntico de universalização transforma-se em valor-fim”.478 Com isso, nota-se não poder existir uma ética da responsabilidade, como prescrita pela Ética do Discurso, sem condição teleológica, particularmente porque o princípio de universalização, já concebido na comunidade ideal, exige condições históricas de sua aplicação.479 Neste horizonte, surge o direito como esfera de criação das condições históricas para a efetivação da norma básica fundamental, ao impor leis que sugiram a responsabilidade dos indivíduos na vida social. Não obstante, “a coerção só se legitima na medida em que está a serviço da possibilidade de tornar efetiva a liberdade a partir da diferença entre as condições 476 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 191. Ibid., p. 196. 478 Ibid., p. 199. 479 Cf. HERREO, Javier. Ética do Discurso, p. 184. 477 113 ideais e reais do discurso e a obrigação de transformação das condições reais”. 480 O direito tem a função – diferente da política, que confere aos indivíduos a responsabilidade de suas sentenças – de tornar a moral efetiva, como pressuposta na parte “A” da Ética do Discurso. Por isso, a Ética do Discurso exige a efetivação de uma ordem de direito global. 481 Ora, não pode a Ética do Discurso isentar-se do direito e da política, como na concepção tradicional da ética de princípio, “pois isso infligiria claramente o imperativo moral da corresponsabilidade discursiva pelas consequências de todas as atividades humanas. Esse imperativo exige justamente a mobilização e a organização da corresponsabilidade em todos os âmbitos do mundo da vida”.482 Portanto, a relevância da Ética do Discurso consiste no fato de Apel, rigorosamente, pensar a natureza própria da ética filosófica, como uma ética racional, normativa e examinadora de suas próprias proposições quanto à verdade; de postular a verdade da sentença moral não a partir de fatos empíricos, descritivos, mas de princípios de ordem ideal, a priori; que a filosofia, na sua dimensão a priori, é uma reflexão transcendental e não dedutiva, como prescreve a lógica matemática; e de sustentar a normatividade ética no consenso, dado a partir da relação recíproca entre os dialogantes numa comunidade de comunicação, em detrimento de qualquer pretensão subjetiva ou solitária do pensar moral.483 Em suma, o presente capítulo procurou explicitar e analisar a arquitetura da Ética do Discurso, o que representa o ponto de chegada de todo percurso apeliano em busca de uma 480 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 200. Como entende Apel, as instituições se regulam por outras instituições ou por meta-instituições. O Direito pode ser concebido como uma meta-instituição capaz de regular a ação de várias outras instituições. Neste sentido, a partir do ideal da Ética do Discurso, o Direito desempenha três funções: “1) Da relação com a moral ideal do discurso (...) deriva a exigência relevante, em termos de legitimação, de fundar o Direito em consonância com o princípio da capacidade de consenso das normas a serem genericamente observadas para todos os afetados, ou seja, no sentido da ideia reguladora da identidade dos legisladores e dos destinatários do direito, o que significa também: sob a consideração do postulado moral dos Direitos Humanos universalmente válidos. 2) Da relação com o poder político – portanto, da utilização do monopólio estatal da força para fazer vigorar as normas jurídicas e impor a sua observância – deriva a exigência de limitar as obrigações jurídicas dos cidadãos, restringir a arbitrariedade quanto ao comportamento externo e impor a sua observância, nesse sentido, de modo tão efetivo que se garanta a mais completa desoneração possível, dos cidadãos, da auto-ajuda forçada no que se refere à responsabilidade recíproca. 3) Da relação com a Economia, por fim – compreendida como forma de assegurar o provimento material dos seres humanos por meio do concurso entre os comerciantes e os prestadores de serviços no mercado – deriva a exigência de que o Direito garanta, na forma de uma ordem que circunscreve a economia de mercado (...), a autonomia (dispor de propriedade), bem como a liberdade, de todos os participantes do mercado, de negociar e contratar, no sentido de estrategicamente perseguirem o próprio interesse e coibirem distorções da concorrência livre”. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 165. (grifo do autor). 482 HERREO, Javier. Ética do Discurso, p. 184. Em contrapartida, não pode a Ética do Discurso aceitar a independência do direito em relação à moral. Pois o direito deve contar com a racionalidade argumentativa, no processo de formação de consenso entre indivíduos de direitos iguais e responsáveis, para fundamentar suas normas. Caso o direito leve em conta tais pressupostos, estará arraigado na moralidade. Cf. Ibid., p. 185. 483 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 202. 481 114 ética racional para o mundo da ciência e da tecnologia. Verificou-se que Apel, à medida que vai elaborando seu “projeto arquitetônico”, o faz sempre em uma perspectiva de superação da filosofia tradicional, particularmente transcendental kantiana, o que revela o “fio condutor” de toda esta dissertação: o itinerário formativo da ética discursiva de Apel. Por isso, mesmo ao apresentar os suportes da Ética do Discurso, identificados na parte “A” e “B”, Apel conserva o seu legado de transformação da filosofia. Neste sentido, foi possível investigar a compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso, sua estrutura, composta por uma comunidade ideal (parte “A”) e real (parte “B”) de comunicação e a dialogicidade entre elas. E, com isso, a peculiaridade da filosofia apeliana, como uma ética filosófica de reflexão transcendental e de fundamentação última, o que caracteriza a substancialidade do pensamento de Apel. Também, verificou-se a contribuição de Kohlberg para fundamentação da Ética do Discurso. E, por fim, a relevância da proposta ética de Apel para o mundo contemporâneo, enquanto ética de responsabilidade solidária, regida pelo princípio da universalidade e assegurada pelo princípio de justiça. 115 CONCLUSÃO O objetivo desta dissertação foi explicitar e analisar, por via de uma leitura crítica, o itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. Com isso, procurou apontar os elementos principais que nortearam Apel no caminho e elaboração do seu “projeto arquitetônico”, de uma ética pós-convencional para o mundo contemporâneo. Durante toda esta empreitada foi possível perceber a grandeza e a nobreza do espírito filosófico de Karl Otto Apel. Um filósofo de alto nível reflexivo, de pensamento ousado e crítico, capaz de instaurar uma nova perspectiva do pensar filosófico e, com isso, propor um método de filosofar, que não se prende a uma “abstração filosófica”, mas que atinge o agir do homem, enquanto ser social e moral. Ainda que esta dissertação tenha se comprometido a fazer uma legítima interpretação do pensamento apeliano, ao apresentar seu arcabouço filosófico em busca de uma ética racional, seu escopo ainda é limitado e, por isso, permanece como um convite à investigação e conhecimento deste filósofo que, sem dúvida, é um dos maiores pensadores da filosofia contemporânea. A grandeza e nobreza de Apel se mensuram não somente pela sua ousadia em arquitetar uma filosofia ética que, como ele mesmo afirma, é um projeto inacabado. Mas, fundamentalmente, pela sua astúcia em discutir, o que revela seu profundo conhecimento da filosofia, com os mais insignes filósofos do mundo Ocidental. Apel não rejeita ou desconsidera o legado filosófico construído e desenvolvido ao longo da história, mas parte da história da filosofia, com seus grandes sistemas e questionamentos, para dela absorver, numa atitude de superação, os elementos principais para o seu pensar filosófico. Por isso, é um pensador de extrema cultura filosófica, imerso nos grandes dilemas e correntes da filosofia, atento às mudanças da própria filosofia e do mundo real, histórico. Esta dissertação de caracterizou por uma perspectiva analítica e crítica, história e hermenêutica. Essas características, que aos poucos foram se explicitando ao longo de todo trabalho, nada mais representaram que a própria maneira de pensar de Apel, o que faz de tal pesquisa uma identificação com o filosófico estudado, que se revela não somente no plano da pesquisa – na investigação pelo seu método filosófico – mas com a própria proposta apeliana, de filosofia e ética moral. 116 O primeiro capítulo explicitou o problema de uma fundamentação ética na era da ciência. Partiu da afirmação de Apel que a situação humana é um problema ético para o ser humano. Com isso, apresentou a gênese da moral, radicada na mitologia bíblica, e seu desenvolvimento na história, do homo faber ao homo sapiens. Seguiu com a análise sobre a paradoxalidade da condição ética, ora marcada pela carência de uma ética universal, ora pela abnegação de uma fundamentação filosófica para a ética. Daí, a pesquisa apresentou o pertinente diálogo de Apel com as posições teóricas que, segundo ele, desmobilizam a fundamentação de uma ética racional, a saber: a moderna filosofia analítica (de análise lógicosemântica, o que corroborou com as teses do positivismo cientificista e do racionalismo crítico); a lógica da ciência de Wittgenstein (de caráter lógico-propositivo, como no primeiro Wittgenstein, mas que depois fundou os jogos de linguagens, como perspectivas formas de vida, como no segundo Wittgenstein); o decisionismo de Hans Albert (ao fundar uma ética sustentada em hipóteses e, por isso, dependente da experiência para sua veracidade e efetivação); as racionalidades e postulados éticos de Max Weber (ao pensar as racionalidades do mundo ocidental e instaurar uma ética da responsabilidade, em detrimento da ética da convicção); e o solipsismo metódico (de linguagem formal-objetiva, onde revela o modo solitário, monológico e autossuficiente de atuar do cientista). Nesta perspectiva, o primeiro capítulo demonstrou que o pensar monológico, racionalista, cientificista e positivista – de caráter sintático-semântico, lógico-formal-matemático – negligenciam a fundamentação de uma ética racional. Não obstante, em meios a esses problemas, Apel considera que a ética da responsabilidade (como acenada por Weber) e os jogos de linguagens (como postulado por Wittgenstein) adquirem, ainda que limitados, relevância para a fundamentação da Ética do Discurso. O segundo capítulo apresentou a transformação hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental, como pressuposto de investigação das bases para a fundamentação da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. Neste sentido, o capítulo analisou a perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão, ao mostrar o método transcendental kantiano e sua relevância, em uma atitude de superação, para a ética discursiva, particularmente de uma filosofia da consciência para uma unidade da interpretação, linguisticamente mediada; depois, apresentou a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental, instaurada por Heidegger e Gadamer, fundamentalmente pela substituição do método transcendental pela condição fática do compreender; com isso, abordou o novo paradigma da filosofia, na sua vertente hermenêutico-fenomenológica, como o modo de pensar pautado pela 117 experiência pré-científica da vida e do mundo: no desvelamento da experiência cotidiana em Heidegger e nas condições existenciais do compreender em Gadamer; e, a partir dessas considerações, analisou a perspectiva crítica de Apel acerca das filosofias hermenêutica de Heidegger e Gadamer, ao apontar que Heidegger não atingiu uma relevante transformação da filosofia kantiana, por separar o problema da constituição do compreender com a problemática da validade de sentido e, na mesma medida, Gadamer não estabeleceu uma criteriologia relevante para avaliar as condições do compreender; em seguida, analisou a transformação semiótica da lógica transcendental kantiana, instaurada por Peirce, ao postular uma semiótica tridimensional e, com isso, substituir a sintática e a semântica pela dimensão pragmática trivalente de interpretação de signos; em seguida, apresentou o postulado da comunidade de experimentação e interpretação, onde a mediação dos signos adquire total importância para a interpretação de algo como algo, sustentada em uma comunidade ilimitada de comunicação, como também pelo próprio comportamento das coisas, identificado na experiência; e, por conseguinte, refletiu a crítica de Apel ao cientificismo de Peirce, ao perceber que Peirce substitui o acordo intersubjetivo, dado em uma comunidade ilimitada de comunicação, pela observação do comportamento das coisas, o que representa um reducionismo cientificista da experiência; e, por fim, demonstrou o conceito transcendentalhermenêutico de linguagem segundo Apel, que vem a ser o caráter filosófico singular de Apel, de uma reflexão transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem, portadora de consenso e realizada pelos dialogantes de uma comunidade ilimitada de comunicação. Neste sentido, o segundo capítulo apresentou os fundamentos da Ética do Discurso, as bases sólidas que possibilitaram Apel arquitetar sua proposta ética filosófica. Mas, como observado, Apel procura superar aqueles que representam a base para sua fundamentação filosófica, o que vem a demonstrar o caráter particular da Ética do Discurso, uma proposta singular, caracterizada pelo viés transcendental-hermenêutico-linguísticopragmático. Não há dúvida que Kant, embora Peirce seja vital para a fundamentação da Ética do Discurso, seja o pensador mais influente na configuração de todo pensamento de Apel. O terceiro capítulo apresentou a arquitetura da Ética do Discurso. Partiu da compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso, enquanto uma proposta ética argumentativa, que tem a linguagem como medium de toda discussão, de caráter pragmáticotranscendental, portadora de consenso entre os interlocutores de direitos iguais numa comunidade ilimitada de comunicação, regida pelo princípio de universalização e corresponsabilidade; depois, explicitou a estrutura da ética apeliana, compreendida por uma 118 parte “A” (ideal), contrafaticamente antecipada e de fundamentação racional das normas éticas, e por uma parte “B” (real), referida à história, de responsabilidade solidária e de efetivação das normas tomadas em consenso; e com isso, demonstrou a dialogicidade entre a comunidade ideal e real da Ética do Discurso, ao entender que todo argumentante já pressupõe a comunidade ideal na comunidade real; depois, apresentou a reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia, o que caracteriza o modo próprio da racionalidade filosófica, como autorreflexão linguisticamente mediada, dada por enunciados performativos (contraditórios), de possibilidade e validade de conhecimento e de um a priori situacional, de explicação do feito da razão, derivado de uma condição normativa da possibilidade da argumentação, que também é fundamento normativo da derivação de todas as normas éticas; e, nesta perspectiva, também explicitou a contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva, ao apresentar os estágios da compreensão do juízo moral em Kohlberg e sua correspondência, ainda que limitada, com os pressupostos da Ética do Discurso; e, por fim, traçou alguns elementos que apontam a relevância da Ética do Discurso, como uma proposta ética racional, regida pelo princípio de universalidade, capaz de superar o relativismo, o solipsismo e a neutralidade axiológica das ciências particulares e discutir, na pretensão de encontrar soluções efetivas, os problemas mais urgentes da humanidade, em âmbito global. Fundamentalmente, a Ética do Discurso é uma ética pós-convencional, de caráter a priori pragmático-transcendental que, pela mediação do discurso – como médium de todo entendimento – postula normas, a partir do princípio de universalidade, justiça, igualdade de direito de fala e responsabilidade, para toda a humanidade, na pretensão que essas normas sejam, de fato, efetivadas no mudo real. Ela, a Ética do Discurso, representa uma autêntica transformação da ética kantiana, como analisada pelo princípio de universalização, mediado pela linguagem, na parte “A”, e pelo princípio da corresponsabilidade, referida à história e concretização das normas consensuais, na parte “B”. E, por isso, a Ética do Discurso é uma ética pós-convencional, de extrema repugnância ao solipsismo, ao relativismo e ao deducionismo moral. Desafios não poucos acompanharam e amedrontaram a elaboração desta dissertação. O primeiro deles refere-se à compreensão legítima do pensamento de Apel, às vezes colocada em xeque devido à maneira como o autor apresenta o seu pensamento, nas suas diversas obras: ora marcado por um diálogo profundo e constante com vários filósofos clássicos, numa perspectiva histórica; ora pela sua capacidade hermenêutica em adentrar e interpretar tais 119 autores; ora pela sua crítica veraz às variadas concepções filosóficas; ora pela sua tentativa de superar e absorver os elementos filosóficos relevantes para a construção do seu postulado ético. Junto a este desafio, outro, logo em seguida, se apresentava: o de conhecer, ainda que parcialmente, os vários pensadores e perspectivas filosóficas que Apel se propõe a discutir, o que gerou um profundo desconforto, porém, ao mesmo tempo, motivação para investigar os mais renomados pensadores em discussão nas obras apelianas. Não mais que isso, outro desafio constantemente se apresentava, como o de, a partir do estilo particular do autor, fazer uma síntese precisa dos problemas e perspectivas filosóficas assumidas por ele, no interior da sua proposta ética. Por isso, a presente dissertação contou com inúmeros comentadores, na tentativa de melhor refletir e interpretar o pensamento filosófico de Apel. Ora, este trabalho não apresentou nenhuma novidade naquilo que constitui o pensamento filosófico moral de Apel. Nada mais procurou que, a partir de uma análise crítica, explicitar os principais elementos do pensamento ético de Apel, o seu itinerário em busca de uma ética racional. Não obstante, ao tomar em consideração os desafios já apresentados para a elaboração desta dissertação, é possível aqui, hipoteticamente, afirmar a originalidade desta dissertação, que se deve ao seu aspecto metodológico. Apel, na maioria das suas obras, procura desenvolver um assunto ao mesmo tempo em diálogo com vários filósofos e sistemas filosóficos, o que torna sua obra árdua, porém profunda. Esta dissertação procurou, a partir de uma síntese precisa dos conteúdos tratados nas obras de Apel – daquilo que se refere ao seu postulado ético, o que não está em dissonância com qualquer outra questão que ele se propõe a resolver – apresentar ou crivar o particular de cada discussão. Por isso, percorreu várias obras de Apel para absorver e registrar, num único tópico, o particular de cada discussão, aquilo que Apel trata ao mesmo tempo em várias obras e sempre em profundo diálogo com outros pensadores. Por isso, o caminho aqui traçado para apresentar o itinerário formativo da ética de Apel é de particular escolha, o que não se encontra em qualquer obra ou comentário acerca do pensamento moral apeliano. Não há dúvida que esta dissertação traz muitas lacunas e imprecisões. Mas procurou atender seu objetivo, de explicitar, por via interpretativa e crítica, o itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. E, por isso, abre inúmeras questões que merecem aprofundamento, ou que suscitam novas problemáticas, em trabalhos seguintes, como: a relevância do segundo Wittgenstein e/ou da ética da responsabilidade de Weber para a Ética do Discurso; a relação crítica entre o a priori transcendental kantiano e o a priori transcendental apeliano (fronteiras e simetrias); uma análise crítica sobre a perspectiva crítica 120 de Apel ao cientificismo de Peirce; limites da fundamentação última proposta por Apel, assim como os limites da sua proposta ética e muitas outras questões. A proposta ética de Apel não está livre de polêmicas e críticas que afligem sua fundamentação e estrutura. E isso não seria novidade para um autor que ousa mudar os rumos do pensamento filosófico e, ao mesmo tempo, tecer inúmeras críticas ao pensamento clássico da filosofia. Por sua vez, em nenhum momento esta dissertação quis desenvolver qualquer argumentação crítica em relação ao pensamento de Apel, pelo simples fato de não postular tal objetivo. Por isso, procurou ser fiel ao pensamento de Apel, na tentativa de interpretá-lo e, por uma análise crítica, explicitar o seu itinerário formativo na construção de uma ética filosófica para o mundo da ciência e da técnica. 121 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva? ANTHROPOS 183 (1999). APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce. Trad. Madrid: Gráficas Rogar, S. A., 1997. ______. Estudios Éticos. Trad. Carlos de Santiago. México, D. F.: Ediciones Coyocán, S. A., 2004. ______. Estudos de moral moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994. ______. Ética do Discurso. In VILLLA, Mariano Moreno. Dicionário de pensamento contemporâneo. Trad. Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2000. ______. 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