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QUAL É O NOME ATUAL DO MAL-ESTAR DOCENTE?1 Marcelo Ricardo Pereira – UFMG A depressão que espreita nossas sociedades, toda vez que se esquecem de fazer guerras, poderia ser menos pesada se nos autorizássemos a ter mais incertezas e mais curiosidades. As certezas deserotizam a psique (Radmila Zygouris).
Introdução: a depreciação do Eu
Mal-estar docente, angústia funcional, estresse, esgotamento emocional, depressão, despersonalização, frustração, sentimentos contraditórios, adoecimento mental e síndrome de Burnout (ESTEVE, 1999; CODO, 1999; PEREIRA, 2011) são algumas das expressões cunhadas por diversos pesquisadores para nomear (e muitas vezes aferir) queixas que docentes vêm revelando em seus discursos. A ideia da existência de transtornos psíquicos em professores é algo amplamente alardeado, não somente por eles mesmos e pelos meios nos quais se encontram, mas também pela sociedade em geral, ou mais propriamente, pela sociedade ocidental. Vivemos em tempos de mal-estar como efeito de uma cultura de excessos generalizados, percebidos no hiperconsumo, na sobrevalorização da intimidade e em formas de segregação. O mal-estar – outro nome da “angústia”, segundo Sigmund Freud (1930/1980) – acomete incondicionalmente o campo da educação. Professores se dizem cada vez mais destituídos, desrespeitados e desautorizados por uma civilização que parece ter posto em declínio o “discurso do mestre” em favor do “discurso do capitalista” (LACAN, 1974/2005). Aderidos a este último discurso, crianças e jovens parecem levar às últimas consequências o confronto de gerações com aqueles que os guiam. Isso – somado à proletarização, ao desprestígio e ao desgaste da profissão – tem resultado, entre outras coisas, numa espécie de queixa uníssona a respeito do desajuste social de professores e seus múltiplos sintomas. Portanto, ao lado das precárias condições de trabalho e da reduzida prática coletiva com colegas e gestores, podemos constatar hoje nos professores um fenômeno crescente de esgotamento, absenteísmo e hipermedicalização, além da ocorrência de licenças médicas e desvio de função, muitas vezes atribuídos ao desinteresse generalizado dos alunos e à banalização da violência dentro da escola. Várias pesquisas 1
O presente escrito é inédito, deriva-se de pesquisa recém concluída (PEREIRA, 2015) que será transformada em livro e substancia o tema que apenas fora introduzido no artigo “Mal-estar docente”, publicado pelo autor em Presença pedagógica, v. 20, p. 62-69, 2014.
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mostram como tal fenômeno ganhou a sala de aula e atualmente se tornou, para muitos docentes, o grande dilema enfrentado no exercício da função. Com efeito, queixam-se de uma certa paralisia profissional e de padecerem de depressão e fenômenos associados como estresse, esgotamento, transtorno bipolar, alimentar, de pânico e consumo de álcool. O “mal-estar docente” não é prerrogativa dos tempos atuais. Existem registros datados do século XIX acerca da insatisfação de professores com a profissão, que viriam a se tornar objetos de pesquisas sistemáticas ao longo do século XX. A exemplo disso, podemos citar o trabalho de Ida Berger (1957), que introduz originalmente a expressão “mal-estar docente” em estudo sociológico realizado com 7500 professores franceses. A autora lança mão de tal expressão para designar o “descontentamento dos professores” daquela época, sobretudo, em consequência de baixos salários, precárias condições de trabalho, poucas oportunidades de promoção e queda do prestígio social da profissão. Foi ao longo da década de 1980 que a expressão se consolidou. Nessa época, José Manuel Esteve desenvolveu na Espanha uma extensa pesquisa, que se tornou uma referência acerca do tema a partir de sua publicação, em 1987, com reedições revisadas até 1999. O autor agrupa as fontes de esgotamento do trabalho dos professores em dois núcleos, classificados como: fatores primários e fatores secundários. Os fatores primários são aqueles que incidem diretamente sobre a ação do professor em sala de aula, gerando tensões associadas a sentimentos e emoções negativas. Os secundários referem-se às condições ambientais, no contexto em que se exerce a docência, e têm ação indireta sobre os educadores, afetando a eficácia docente por promover uma diminuição da motivação do professor no trabalho. Esteve afirma, ainda, que os fatores secundários acumulados influem fundamentalmente sobre a imagem que o professor tem de si mesmo e de seu trabalho profissional, gerando uma crise de identidade que pode chegar à “depreciação do ego”. Diz o autor: Os educadores correm o risco de esgotamento físico e mental sob o efeito de dificuldades materiais e psicológicas associados a seu trabalho. Essas dificuldades, além de chegar a afetar a saúde pessoal, parecem constituir uma razão essencial para os abandonos observados nessa profissão (ESTEVE, 1999, p. 58).
Incompatibilidade entre indivíduo e cultura: a hipótese do Supereu
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Não se pode desconsiderar, no entanto, que o termo “mal-estar” ganhou notoriedade e densidade a partir do célebre livro de Freud, de cunho tanto antropológico como psicanalítico: O mal-estar na civilização, de 1930. Desprezando a diferença entre civilização e cultura, o autor desenvolve no mínimo duas teses sobre a origem ou causa do mal-estar. De acordo com a primeira, existiria uma incompatibilidade estrutural entre as pulsões de cada sujeito – que visam à satisfação imediata do desejo – e as normas civilizatórias – que exigem renúncia pulsional. Assim, em nome da vida em sociedade, o indivíduo recalcaria (reprimiria) suas pulsões ao preço de um contínuo mal-estar ou angústia, por nela não poder realizar plenamente seu desejo. A segunda tese mostra que, como efeito dessa incompatibilidade, o sujeito passaria a ser dividido, de modo que uma parte desse sujeito – mesmo sofrendo – identifica-se com as normas civilizatórias, as internaliza, as defende e, de modo masoquista, cobra de si mesmo ser igual ao modelo moral que imagina que a cultura exige de seus integrantes. Essa parte tópica do sujeito freudiano é o Supereu (Superego), que funciona como uma consciência ou autoridade moral internalizada. Torna-se impossível mascarar do Supereu aquilo que persiste como impulso (pulsão) de satisfação do desejo que reside na outra parte tópica do sujeito: o Eu (Ego). Nota-se que, de maneira sombria, Freud teoriza a tragédia da condição humana ou a miséria do homem, pois a culpa gerada no sujeito pela cultura é representada no inconsciente pelo Supereu e permanentemente vivida sob a forma de mal-estar. Por isso, o sujeito tende a ser angustiado, atormentado, pois sabe de antemão que não é aquilo que a sociedade espera dele, nem mesmo é aquilo que ele espera de si através do julgamento superegoico. Para isso, não há renúncia pulsional suficiente para aplacar a sua angústia. Diz Freud: “A culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da angústia […] que em parte aparece como uma espécie de mal-estar” (1930/1980, p. 159). A hipótese do Supereu e da incompatibilidade entre indivíduo e cultura ajudamnos a aprofundar a análise sobre o mal-estar docente. Diversos trabalhos debruçaram sobre tais hipóteses e ofertaram-nos resultados bastante consistentes e realísticos. É o caso, por exemplo, do trabalho da psicanalista e educadora Anny Cordié (1998), que relembra as demandas frequentemente contraditórias a que os professores devem responder:
Demandas exteriores – proveniente dos organismos governamentais.
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Demandas ocupacionais – como a do cumprimento de programa ou plano de curso.
Demandas relacionais – vinculadas a dirigentes escolares, pais, alunos e sociedade em geral.
O problema é que, por mais que o professor responda a todas essas demandas, seu êxito profissional dependerá do “êxito de todos”, e isso o torna vulnerável. Situando-se no epicentro desse fenômeno, ele sabe que grande parte do sucesso de seu trabalho será julgada, por exemplo, pelo cumprimento de programas ou pelos resultados de seus alunos. Mas a transmissão do saber não é uma atividade neutra. O professor terá de afrontar o outro e não poderá cumprir tal missão sem que seu Eu não seja tão fortemente avaliado pelo Supereu: suas faltas, suas fraquezas, sua pessoalidade. Não obstante, a relação pedagógica se assenta também no dispositivo transferencial. O aluno tende a “depositar” na pessoa do professor tanto uma posição de dominação quanto uma posição de ideal ou, fundamentalmente, de “suposto saber”. Mas isso não se dá sem ambivalências. A todo o momento o professor será checado, interrogado, desafiado para saber se sua pessoa é digna de “suportar” esse ideal a ele transferido. Cordiè nomeia esse fenômeno de “duplo título”: tanto o de uma pessoa real quanto o de um mestre ideal, que evoca a transferência. Seguindo os passos freudianos, a autora analisa entre outras coisas a adolescência. Dada a ambivalência contra as imagos parentais (ou seja, as representações dos pais internalizadas como autoridade no Supereu), o adolescente tende a reportá-la aos professores que, como tal, encarnariam tanto o lugar de mestre quanto o dos imperativos superegoicos. Desse modo, sem que tenham qualquer controle, docentes se veem tomados por uma relação transferencial impregnada de conflitos subjetivos que se originam nas relações primordiais com o aluno. Os efeitos pedagógicos resultantes dessas relações são bastante imprevisíveis e a transmissão – que é sempre uma transmissão de marcas simbólicas – jamais se dá integralmente. Assim como o aluno, o professor também deverá compor essa relação com suas próprias pulsões e seus próprios imperativos superegoicos. O professor avalia o aluno, mas, na verdade, o que se avalia é o seu próprio trabalho. A suspeita reina sobre sua competência. Todas as exigências impossíveis, as demandas, os confrontos, os julgamentos, podem levá-lo ao sentimento de fracasso, à culpa, à impotência, constituindo uma real prova contra seu narcisismo. Acreditando-se responsável pela transmissão do saber, com base nos ideais pedagógicos que a formação e a sociedade 4
ocidental lhe imprimem, e, ao mesmo tempo, sob ameaça contínua de não efetivá-la, o professor tende a viver o fracasso como algo muito próprio. Sabemos que boa parte dos professores de adolescentes consegue driblar minimamente esse cenário trágico imposto pelo Supereu. Muitos buscam alternativas razoáveis que não os fazem padecer mais do que a maioria das pessoas em geral. Nossos estudos apontaram que – ao lado de entidades de classe, cientistas sociais, historiadores da educação, pedagogos e psicólogos – alguns psicanalistas podem estar exagerando seus diagnósticos ao concordarem com a hipótese do padecimento generalizado de professores. Mas sempre há aqueles que, impotentes, parecem não criar outra saída senão produzirem o pior para si mesmos, isto é, algum modo bastante específico de mal-estar laboral. Na pesquisa-intervenção que realizamos (PEREIRA, 2015), registramos as impressões nos espaços de fala de mais de 50 professores de adolescentes de escolas públicas municipais e estaduais de Belo Horizonte; e, de maneira sistemática, o depoimento de 15 deles através da entrevistas de orientação clínica, nos quais disseram padecer eles próprios e colegas de profissão devido à lida com os alunos e com a escola atual como um todo. Muitos denunciaram de maneira dramática e pouco inibida o abuso de psicofármacos (dos citados, a maioria se reduz a ansiolíticos, antidepressivos e hipnóticos), bem como os diagnósticos comuns a muitos, como os vários modos de estados depressivos, de ansiedade, de estresse (largamente, os mais apontados), de transtorno bipolar, de pânico, de TOC, de problemas alimentares e do uso de álcool; resultando em afastamentos ou desvios de função. Não desconhecemos que vivemos numa sociedade sobremedicalizada devido, entre outras coisas, ao avanço das pesquisas e da indústria de psicofármacos, à facilidade de acesso a eles, aos diagnósticos aligeirados feitos à revelia por médicos de várias especialidades clínicas, ao imperativo de satisfação de uma sociedade cada vez mais hedonista, imediatista e intolerante à dor, bem como à sensação sufocante de desamparo e de vazio que a objetificação e mercantilização dos laços sociais imprimem em cada um de nós. Ora, multiplicam-se os medicamentos, multiplicam-se as novas psicopatologias – nessa ordem. Nossa sociedade parece inspirar, sobremaneira, essas novas psicopatologias ou, mais exatamente, essas novas modalidades clínicas do sintoma. Elas talvez fundamentem o próprio estatuto do sujeito contemporâneo ou pós-moderno, pois tal sujeito já não é mais o mesmo desde as utopias contraculturais dos anos 1960 e 1970. 5
Não seria mais a repressão ou a renúncia que o regeria, mas o excesso. O sujeito é levado à obrigação de se satisfazer sob a pena superegoica de achar-se em defasagem. O Supereu mostra assim sua face mais sadiana e mortífera: o sujeito se culpa por não consegui gozar tanto quanto a civilização lhe exige. Nota-se hoje o quanto os interditos simbólicos e os valores da tradição cederam. A angústia viria como consequência insuportável da falta de regulação do prazer; e o estado depressivo, da incapacidade de satisfação com tal desregulação. No campo educacional, essa angústia deriva-se, como vimos, de demandas frequentemente contraditórias a que o professor deve sempre responder: demandas exteriores; demandas ocupacionais; e demandas relacionais. Seu sucesso depende disso e, pior, depende também do sucesso dos outros; fato que pode levá-lo ao sentimento de fracasso, de impotência, de culpa superegoica, constituindo uma real prova contra seu narcisismo. O que quer um docente que se diz em estado depressivo?
Considerando a escuta dos professores com quem estivemos, dificilmente poderemos concluir que os problemas que narraram sejam os alunos, pois não são. De fato, a relação com eles pode até contribuir para disparar alguma morbidade ou padecimento mental. Mas, ao contrário, o que se revelou aqui foi algo de outra natureza; algo, talvez, que diga respeito muito mais a uma certa “covardia moral”, a um “recuo do desejo” ou a uma “fuga para a doença” – expressões freudianas –, que parecem reatualizadas na “miséria neurótica” que esses professores, em geral, apresentam com seus dramas microfísicos e cotidianos. Sabemos que um sujeito, nas condições em que se acham nossos depoentes, parece ser incapaz de “aproveitar a vida e realizar-se” (FREUD, 1917/1980, p. 529). É incapaz de aproveitá-la porque seu investimento não se dirige a nenhum objeto real, mas a uma sucessão de objetos imaginários (“objetos irreais da libido”), de produção empobrecida subjetivamente, que lhe roubam grande quantidade de valiosa energia ao empregá-la no sentido de manter seus assaltos sob controle. Seus sintomas parecem propiciar algo que, mesmo subtraindo-lhes a possibilidade de aproveitar a vida, os faz gozar um pouco dela. Esse caráter bifásico do sintoma – de problema e solução – não deixa de estar presente nas atitudes repetitivas dos docentes ouvidos.
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O sintoma pode representar, por um lado, um ato de “covardia moral” (FREUD, 1893/1980, p. 170), em que se cede de seu desejo em nome de certo apagamento ou demissão subjetiva; e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do Eu; medida essa que não viria a favor do desejo, mas contra ele. Em todo caso, como assinala Freud, “uma dose maior de coragem moral teria sido vantajoso para a pessoa em causa” (ibid, p. 171). Em se tratando dos professores que escutamos, essa covardia moral e essa defesa do Eu têm um nome próprio: o estado depressivo. Situamos este estado muito mais no campo da “miséria neurótica” do que no campo da melancolia e de modalidades fronteiriças dos delírios psicóticos. A depressão – ao lado de fenômenos associados como a ansiedade, a angústia, a irritabilidade e o pânico – protagoniza o quadro sintomático da grande maioria dos docentes que estiveram conosco, seja através de diagnóstico médico, do autodiagnóstico ou da influência discursiva de como este quadro vem se alastrando e se banalizando em nossos tempos. Não se pode dizer, porém, que todos os docentes que se disseram depressivos realmente sejam. A força de generalização desse diagnóstico parece imperar entre eles. Não apuramos rigidamente sua incidência entre os 50 que participaram dos espaços de fala, mas entre aqueles que foram entrevistados pudemos auscultar a pertinência do estado depressivo em pelo menos 12 dos 15 professores ouvidos. Na verdade, parece prevalecer entre eles uma certa nebulosa diagnóstica ou um certo espectro do estado depressivo que se deriva de modos fronteiriços e não bem definidos da estrutura e do sintoma psíquico, mas que não deixa de lhes garantir o benefício do afastamento laboral. Para todos eles, a psicanálise convencional pode se mostrar insuficiente, e vai requer que a tencionemos ao seu limite. Empregamos a expressão “estado depressivo”, em vez de “depressão”, já que “estado” indica essa situação imprecisa, instável e episódica, não sendo propriamente estrutural ou organizada, evitando, assim, o mal-entendido causado pelo empuxo psiquiátrico – uma tendência atual – de nomear, classificar e curar algo que se molda aos manuais diagnósticos e estatísticos dos transtornos mentais. Tais manuais – a exemplo do DSM 5 – parecem dar estabilidade ao que é essencialmente instável. De maneira curiosa, revela Colette Soler (2005), quanto mais se diagnosticam deprimidos, em nome do saber suposto do médico, mais haverá pessoas que se dirão deprimidas. Logo, acreditamos que o problema da consistência dos fenômenos descritos pela psiquiatria clássica está no quanto eles se mimetizam muito rapidamente, pois o que se constata é que os sintomas psíquicos mudam tanto quanto muda a história. E mudam 7
inclusive com o tempo de vida: “os mesmos sintomas aos 15 ou aos 40 anos não possuem o mesmo estatuto, nem o mesmo prognóstico” (LE BRETON, 2012, p. 41). Se o sintoma médico é fixo, dada sua precisão orgânica, o sintoma mental ou psíquico é volátil, sugestionável, contagiante, isto é, discursivo, pois remete às formas de subjetivação que os indivíduos encontram para se inscreverem e lidarem com as exigências sociais de seu tempo. Todos nós somos assim sintomáticos, pois todos nós lidamos com tais exigências. O sintoma é a forma como cada um subjetiva as “demanda do outro social”. O problema é que o professor que apresenta um quadro depressivo, como a maioria daqueles que estiveram conosco, conseguem muito pouco desviar-se do imperativo superegoico de satisfazer o outro com suas demandas. “Quando mais ele se esconde, mais fica à mercê dele” (KEHL, 2009, p. 21). Assombra perceber que vivemos numa sociedade do direito ao gozo, que por isso deveria ser uma sociedade antidepressiva, com a promoção de ideais ligados ao prazer, à alegria, à fruição. No entanto, o que vemos é uma sociedade mais e mais depressiva, chegando ao abuso da prescrição de psicofármacos voltados para reversão do caráter insuportável do prazer não regulado. Nossa hipótese para o estado depressivo relaciona-se a uma posição que o sujeito ocupa de se demitir subjetivamente. O sujeito se deprime justamente por sofrer a culpa do Supereu que a psicanálise lacaniana estabelece como ceder de seu desejo. Ceder dessa dimensão do desejo é equivalente a desistir de ser, a entregar-se à lassidão: “Ou o sujeito trai a sua via, trai a si mesmo, e é sensível para si mesmo [...]. Aqui, podem estar certos de que se reencontra a estrutura que se chama ceder de seu desejo” (LACAN, 1959-60/1988, p. 384-5, grifo do autor). Em um estado depressivo, suspeitamos de que o sujeito que cede de seu desejo é aquele que se deixa cair antes da queda. Essa é a hipótese precisa de Mauro Dias (2004), também lembrada por Rita Kehl (2009), que pode nos mostrar o quanto o sujeito nesse estado se inibe antes de se por à prova. A dimensão de inibição está posta neste cenário, pois “temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a uma compreensão da condição da inibição geral que caracteriza estados depressivos” (FREUD, 1926/1980, p. 110-11). O autor considera que a inibição no trabalho, fato com o qual lidamos como um sintoma isolado dos professores pesquisados, leva o sujeito ou viver uma diminuição do seu prazer nele, ou tornar-se menos capaz de realizá-lo bem, ou ainda experimentar 8
certas reações no tocante à própria atividade laboral, como esgotamento, estresse, irritabilidade etc. Isso ocorreria justamente devido ao sujeito ser obrigado a prosseguir com o mesmo, ainda que em condição de defesa. Uma sensação de desistência parece acompanhar a maioria desses professores, que resultam em prostração, conversões orgânicas, alimentares e funcionais, além de uma tendência à distração, à dissimulação e à perda de tempo com delongas narcísicas e repetições. Aproveita-se pouco a vida desse modo, pois muitos tendem a revelar certa paixão pela ruína ao se aterem ao real a ponto de saberem antecipadamente que o pior sempre vence. Não é de se estranhar que atitudes de pessimismo, de auto-vitimização, de autopunição, com claros sentimentos de impotência e inferioridade, levem esses sujeitos a se inibirem frente ao pior e a se satisfazerem exatamente pelo fato de não se colocarem à prova. Há propriamente uma íntima relação entre o estado depressivo e a inibição. Podemos dizer que a sociedade tende a ver seus indivíduos neste estado como sujeitos inibidos. Isso porque, para dar provas de sua autossuficiência e de sua originalidade, com base na imagem que o outro social oferece a si mesmo, tais sujeitos sentem-se permanentemente convocados a agir. Porém, as identificações com os pares, isto é, com as imagens daqueles que os circulam, mostram-se insuficientes para pautar a sua ação. Ninguém parece digno de ser identificado. Logo, com esta fragilidade identificatória, tais sujeitos não se sentem impelidos à ação. No caso do professor, agir em nome de quê? Por qual motivo? Para esses jovens pobres que nada querem saber? Para essa escola e educação falidas? Para essa sociedade doente? Mover em nome de qual desejo? Os professores que escutamos, em sua maioria, não nos escondem o quanto se demitem subjetivamente. Não há outro que os motive a reagir. Isso parece se intensificar quando se trabalha com pessoas para as quais se tem pouquíssima ou nenhuma expectativa. Esses professores revelam uma menos-valia explicita atribuída aos adolescentes. Em geral, são jovens pobres, moradores de favelas, vilas ou bairros periféricos, atendidos por uma escola que não lhes dá nem perspectiva, nem futuro. Em reflexo,
os
docentes
demonstram
fazer
o
mesmo.
Julgam
suas
“famílias
desestruturadas”, com sérios problemas sociais, que fazem com que seus filhos tenham uma frágil noção de limite e de interdito. Associam facilmente muitos jovens ao mundo ilícito das drogas e da contravenção, como o faz o senso comum. Uma vez nostálgicos, tendem a lamentar a inexistência da figura paterna na vida deles para assegurar-lhes algum vetor da lei. As figuras que hoje ocupam esse lugar não parecem aptas a fazê-lo. Como denunciam, “eles têm mais padrasto do que qualquer coisa!”. 9
Ora, do ponto de vista genealógico, como estar em uma profissão sem cumprir sua função de modificar o outro para poder governá-lo? Como estar nela sem acreditar que o outro possa ser transformado a ponto de fazer parte de outra ordem social e política para a qual são educados? Os professores com quem estivemos demonstram saber, de saída, ainda que não claramente, que são incapazes de cumprir os desígnios genealógicos de sua função; que são incapazes de servir de mola propulsora para catapultar seus “pobres” alunos a outra ordem diferente das suas de origem. Ora, se não podem fazer isso de fato, que se possa ter pelo menos a ilusão de vir a fazê-lo. Mas não é o que acontece. Então, não se deve estranhar que o professor, sem qualquer ilusão de modificação daqueles que guia, não escolha outra coisa senão o ato de “jogar a toalha!”. “Ganho proveniente da doença”
E o que quer afinal o professor que se demite subjetivamente? Desçamos mais aos detalhes, pois está em jogo aqui uma posição de recuo em relação à sua própria potência. Os professores que escutamos demonstram, em sua maioria, retirar-se do jogo antes de serem desmascarados. Amiúde, eles parecem narcisicamente rechaçar qualquer iniciativa de apropriarem-se de sua potência, de sustentá-la, de externá-la e, como tal, colocá-la à prova, com todos os riscos que disso deriva. Esses professores parecem mesmo cair antes da queda. Inibem-se antes de se mostrar. Daí, os desafios do cotidiano, como o desinteresse dos alunos, as afrontas juvenis, as fragilidades da organização escolar; bem como os dramas particulares, os desencontros conjugais, os lutos procrastinados e os secretos crimes privados, são capazes de promover uma inibição generalizada a ponto de paralisá-los com um amargo sentimento mortal de impotência. Mas por que cedem ou por que fazem recuar sua própria potência e evitam o enfrentamento? Porque sabem de antemão que não a tem. Sabem de antemão, como qualquer mortal, que não são capazes de responder às demandas do outro e preferem se evadir. Não parecem aceitar narcisicamente sua condição de mortalidade e de finitude. Ao contrário, presos à necessidade de perfeição, a semblantes de potência e até a falsos selfs, preferem agarrar-se à sua “doença da alma”, à falta de ânimo sacrificial, do que se colocar à prova. Ser professor é admitir uma alta cota de narcisismo; é uma profissão bastante narcísica, de pleno investimento em si, mas é também uma profissão de muita rivalidade, muita afronta, com demasiado risco de deposição. Aceitar essa “profissão de 10
risco” é aceitar um forte componente de incerteza e de conflito que podem ofender esforços de mascaramentos narcísicos. Ora, todo narcisismo trás em si uma aura de infantilismo; não uma aura de criança ou de materialidade infantil, mas de infantilismo. E o sintoma é um modo de fazer isso retornar. O sentimento de impotência é só a maneira final de algo que se inicia neste pathos pela “doença”, isto é, nesta “forma infantil [e narcísica] de satisfação”. Aliás, apresentar-se de saída como impotente, como ocorreu com a grande maioria dos professores, não deixa de revelar-nos uma pretensão de onipotência secreta que esses docentes preservam ao não se colocarem em risco diante de seus desafios pedagógicos cotidianos ou mesmo diante das atribulações de suas vidas particulares. Tendem a apegar-se, lúcida e orgulhosamente, às suas desgraças a ponto de confirmar seus pessimismos em relação ao trabalho, aos alunos, aos pares, à vida. Desse modo, eles se privam ao máximo das demandas sociais e de se medirem com o outro. Suspeitamos de que no temor do desmascaramento de suas onipotências secretas, infantis e narcísicas é que reside boa parte do motivo de caírem antes da queda. O estado depressivo é o sintoma “escolhido” – sim, porque se trata de uma escolha forçada! – como uma defesa inibitória antecipada, uma defesa contra a angústia, mas que, por ser uma escolha malsucedida, deixa o professor à mercê dela. Não se trataria aqui de uma angústia como afeto que não se engana ou como um “afeto típico da relação com o real inassimilável” (SOLER, 2005, p. 76), mas de uma tristeza petrificada, ansiosa e abatida que acomete o sujeito e lhe mostra seu empobrecimento advindo do malsucedido de sua escolha. Ao ampliarmos a lente, percebemos que, na fala dos professores, a exceção de um ou dois, todos demonstram ter conhecimentos muito primários do que seja a sociedade contemporânea, a educação moderna e pós-moderna, a política pública que os rege, a escola de nossos tempos e muito menos do que seja a adolescência e a juventude atuais, nem as novas formas de subjetividade e de diversidade cultural. Por mais que se dizem submeter a infindáveis cursos de formação para tal, algo lhes parece impermeável, pois seus estudos não os levam a ultrapassar o repetido conteúdo que ministram com rotineiros recursos pedagógicos. Aqueles que ultrapassam essa fronteira tendem a reduzir suas incursões culturais a mantras, mapas astrais, leituras religiosas, orientalismos e notícias do dia. Assim, não deixamos de entender e dar crédito à fala de uma delas, ao assim dizer em nossa intervenção: “acho que vocês vão descobrir isso: quanto mais estudo mais livre, melhor trabalha!” 11
No que concerne à educação, os professores da pesquisa-intervenção, em geral, não parecem saber muita coisa além do senso comum sobre o sujeito com o qual lidam – os adolescentes –, tampouco sobre o aparelho político-social em que estão inseridos – a escola. É certo que o saber e a formação em si não são garantias de um trabalho cotidiano melhor, mas, sem eles, fica muito restrita a possibilidade de manejá-lo. Um docente deve ser capaz de subjetivar o saber e a formação a ponto deles fazerem parte de sua própria pessoalidade. Mas, ao inquirir os pesquisados, notamos o quanto amiúde eles não dizem mais do que a maioria das pessoas comuns diriam sobre a escola e os adolescentes. E isso sob um tom nostálgico, desistente, queixoso e sacrificial. Tal fato pode ser um problema agudo para uma profissão narcísica como a docência. Como realizá-la sem mostrar para o outro social, que tanto lhes demanda ação e uma imagem potente para exercê-la, que eles são ineptos em temas que se situam no epicentro fundacional de sua profissão? Quiçá muitos professores tenham se tornado exímios dissimuladores de suas fragilidades conceituais, políticas, sociais e subjetivas. Boa parte, além de queixar-se de forma uníssona do desinteresse generalizado dos alunos, delata as condições precárias, a reduzida infra-estrutura escolar e a organização problemática do trabalho docente, fazendo coro com as pesquisas mais ou menos militantes da área. A maioria dos professores, em geral, parece aceitar certo rebaixamento narcísico do ofício, e conduzir seus cotidianos como pode fazê-lo, ou seja, com algum empobrecimento subjetivo e pedagógico, escondido por detrás de rotinas standars. Mas há outros, como aqueles com quem lidamos em nossa pesquisa-intervenção, que por razões ainda desconhecidas por nós demonstram não admitir esse rebaixamento narcísico, essa deposição de si, e convertem para seus corpos os efeitos malsucedidos dessa escolha. Fixados a objetos imaginários, tentam a duras penas mascarar suas debilidades pessoais, suas fragilidades conceituais, sua má formação e suas ações despolitizadas, “elegendo” para si o sintoma social de uma época: o estado depressivo. Nesse sentido, parece estratégico cair antes da queda: “cair atirando para todos os lados” – diria a máxima. Deprime-se justamente antes de o outro social saber da falha de sua pretensa e secreta onipotência, de seu narcisismo sem fundamento, de evitar agir em conformidade com o seu desejo. O estado depressivo não seria assim apenas padecimento, mas gozo. Se podemos dizer que sempre que um neurótico enfrenta um conflito ele empreende uma fuga para a doença, assim mesmo devemos
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admitir que em determinados casos, tal fuga se justifica plenamente [...]. Em circunstancias comuns, reconhecemos que, refugiando-se na neurose, o Eu obtém internamente um certo ganho proveniente da doença; uma vantagem externa que se converte em uma arma na batalha contra o dominador – arma que pode usar para sua defesa e da qual pode abusar para sua vingança (FREUD, 1917/1980, p. 446 – grifos do autor).
A notável observação freudiana para as neuroses, com suas fugas, ganhos e armas, pode muito bem ser estendida para os estados depressivos de que tratamos em nossa pesquisa-intervenção. O professor tolera este estado que, afinal, não pode evitar. Refugia-se na “doença”, mas paga caro demais por essa fuga. Com seus depoimentos espontâneos e verdadeiros, os docentes exibem, contra isso, as maiores lamentações e queixas acerca de seus sofrimentos, demonstrando decisão de cooperarem e de se exporem a fim de se ter alguma chance de sair dessa condição mórbida. Mas é bem o inverso disso. Estabelece-se “uma espécie de modus vivendi” – diz Freud (ibid., p. 448) –, pois o “ganho proveniente da doença” já lhes subtraiu alguma coragem moral para fazê-lo, ao se ter cedido de seu desejo. A diferença do neurótico comum, de que fala Freud, para o neurótico em estado depressivo, como aqui o expomos, reside no fato de que o primeiro, mediante o vazio de ter cedido de seu desejo, preencherá seu mundo com coisas, atuações e dramas a fim de obter algum tipo de reconhecimento do outro, lutando intimamente contra o fracasso; ao passo que o segundo, fugindo da culpa (lê-se angústia) de não agir conforme seu desejo, inibir-se-á a ponto de evitar-se colocar à prova, eximindo-se, inclusive, da necessidade de buscar esse reconhecimento do outro. Sabe de antemão que tal reconhecimento não viria sem o excesso opressivo da presença dele. Assim, estamos em melhores chances de entender o estado depressivo dos docentes ouvidos como inibição e fuga. É inibição, pois, como vimos, se evita o enfretamento do conflito, tentando permanentemente anulá-lo. Daí sua queda precoce. E é fuga, pois, diferentemente do mecanismo de defesa típico dos neuróticos, que tenderia a garantir algum êxito ao Eu, os docentes parecem evadir-se da demanda do outro social. Por isso, o sujeito deprimido defende-se mal. O máximo que ele faz é fugir para esse estado da alma – desanimado e sacrificial – por não dispor de recursos simbólicos suficientes para defender-se da voracidade do outro que o demanda a agir. Eis a sua arma contra o dominador!
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A medicalização dos professores em estado depressivo, através de múltiplos rótulos de psicofármacos cujos usos detectamos maciçamente em nossos pesquisados, pode acentuar a covardia moral de refugiar-se em relação ao conflito. Em vez de ajudarem o sujeito a enfrentá-lo, os antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e estabilizadores de humor, prescritos a catorze dos quinze entrevistados, bem como a inúmeros que participaram dos espaços de fala, podem produzir não uma coragem de viver, mas um apaziguamento de si que corresponderia a um apagamento da dimensão conflitiva e a um empobrecimento da vida subjetiva e do laço social de cada um. Isso apenas mostra, como afirma Kehl (2009), uma falência teórica da psiquiatria que já não conta com hipóteses etiológicas para a compreensão de padecimentos mentais. Diríamos que, ao se alinhar a bases neurocientíficas da medicina e se distanciar de bases mais etiológicas e clínicas de fenômenos psicológicos, como se deu em seu passado recente, a psiquiatria corre o risco de ser reduzida a um ramo da neurologia, como especialidade médica, ou a ela ser sucumbida. Uma vez não se situando mais na turva área na qual se mesclam o somático e o psíquico, e fundamentando-se tão-somente na biomedicina, a psiquiatria contemporânea abandona sua associação histórica à psicanálise, senão sua dependência, e se entrega aos desígnios discursivos de estudos sobre a química e o funcionamento do sistema nervoso central. As descobertas psicofarmacológicas, sobretudo dos últimos decênios, aceleraram bastante esse processo. Mas se do ponto de vista biológico isso pode ter sido um avanço, do ponto de vista subjetivo pode ter se tornado um desastre. Medicam-se, agora, tristezas, humores e comportamentos sem se dar a chance mínima ao sujeito de poder ter o tempo suficiente para elaborá-los por meio de seus próprios dispositivos simbólicos e, assim, poder sair deles mais fortalecido. Em um mundo em que se rechaça todo e qualquer nível de dor, tenta-se a todo custo sedar a angústia e eliminar as excitações e as paixões que a causam. A menos que essa dor seja suficientemente desorganizadora do sujeito, a ponto de ameaçar sua inserção social, não vemos porque – e aqui reside nossa defesa – não se promover alguma forma que o leve a ser clinicamente acolhido antes de classificado ou de ser devidamente escutado antes de medicado.
Conclusão: a escuta de professores
Longe de culpabilizações inconsequentes, que só penalizariam o lado da balança em que se encontram os professores (PEREIRA, 2003), o que especulamos aqui é a 14
possível existência de elementos de mal-estar relacionados a certo grupo formado por aqueles que não conseguem driblar os reveses laborais, os avatares pedagógicos e, sobremaneira, as atribulações de suas vidas privadas. Logo, julgamos ser fundamental que formadores e gestores entendam que dificilmente conseguiremos avançar sem que algo específico da prática do professor seja recolocado no epicentro do debate: repensar suas condições de trabalho, sua remuneração, suas relações com o saber e com a formação, como preconiza Esteves (1999), são essenciais, mas, sobremaneira, precisamos auxiliar o professor a recuperar sua coragem moral para atuar em situações de incerteza e descontinuidades, para dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais situações, para lidar com a apatia do alunado sem se tornar também apático e para entender as formas de “mal-estar na civilização” que continuam a assolar o mundo de maneira geral, inclusive o mundo pedagógico. Tal mundo cuidou para que, hoje, tenhamos um sem número de políticas de formação e de trabalho docente voltadas para um educador genérico, abstrato e teórico. Apela-se, desse modo, à inflação de saberes que são amiúde sustentados ou pelas referências às obras clássicas e seus mestres ou por modismos de teorias passageiras, que de tempos em tempos afligem o universo educativo. Mas, em oposição a isso, parece estar havendo em nossos dias uma espécie de sobrelevação daquilo que o sujeito julga como mais genuíno e digno de ser narrado: sua experiência, seus impasses e seus próprios modos de subjetivação – fato que não é mais do que consequência de um século, o passado, que veio a propagar disseminadamente as vozes de seus sujeitos por meio dos mais diversos campos de saber, como a psicologia, a psiquiatria, a sociologia, a comunicação social e a própria pedagogia. Enquanto a grande maioria de ações educativas, de políticas públicas, de propostas escolares de intervenção etc. demonstra estar muito mais direcionada a modelos superegoicos de formação e de exercício docente, as respostas dos sujeitos vão à contramão disso. Para além de simples inchaço do Eu ou de individualismos acéfalos, muitas vezes propiciados pelos diversos campos de saber que ora sublinhamos, as respostas dos sujeitos revelam o quanto as políticas assentadas em modelos superegoicos não alcançam àqueles que majoritariamente se assentam no dizer de sua própria experiência sem que tenham espaços institucionais para fazê-lo; espaços verdadeiros, sem simulacros, sem demagogias. O que essas respostas revelam, na realidade, é a décalage que há entre experiência e política.
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Talvez seja necessário aos agentes formadores, aos gestores pedagógicos e aos sistemas educativos em geral proporem ações mais efetivas que venham a aproximar, sem nunca extinguir, a distancia entre o que se busca – a política – e o que se faz – a experiência. Seria uma política que passe a levar em conta também a escuta e a “fala plena” (LACAN, 1953/1998) daqueles que realizam cotidianamente o ato de ensinar. Sabemos que, para isso, “nosso trabalho sempre terá de desenvolver-se por caminhos diferentes dos comuns” (AICHHORN, 1925, p. 114). A orientação clínica e a escuta de professores foram a única maneira possível divisada por nós para que se possa proceder tal política. Acreditamos que seja plausível aos formadores e aos gestores de professores que admitem a orientação psicanalítica instituírem fóruns ou espaços de fala individuais e coletivos nos quais os docentes possam expor livremente seus impasses, experiências e subjetividades; que tenham, com isso, a chance de destravar formas fixas de sintoma, movendo-o e elaborando-o. A fala – e, em especial, a “fala plena” – alcançaria o estatuto fundante de uma outra política para o exercício docente capaz de admitir algo da ordem clínica, ou seja, algo que, fazendo vacilar o sintoma, propicie desidentificações ou deslocamentos subjetivos. Da mesma forma que conduzimos nossa pesquisa-intervenção, ofertando a palavra para que ela possa produzir efeitos de elaboração, pensamos ser vital que haja nas escolas um profissional, na pessoa do pedagogo, do coordenador dessa área ou do formador de professores, que opere inspirado na técnica freudiana “recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1980). Para isso, como já assinalamos, deverá ter sido ele escutado subjetivamente, ter interrogado seus próprios sintomas, consentir com o inconsciente e oferecer-se como suporte transferencial de suposto saber para os que lhe procuram. Esse profissional deverá ser aquele que promova uma escuta apurada e, igualmente, faça intervenções mínimas – nunca longas –, sempre um pouco atrás, de modo a fazer a palavra circular em francos espaços de fala coletivos e individuais. Lembremos de que a clínica trabalha com a palavra, mas esta palavra é, sobretudo, a do sujeito, e não de quem o dirige. Assim achamos possível operar aquilo que Claudine Blanchard-Laville (2005) chama “clínica profissional do laço” ou “clínica de acompanhamento de profissionais do campo da educação e da formação” – títulos que já explicam a si mesmos. E acrescentamos o que temos aqui preconizado: será vital que essa clínica opere pela via do sintoma, fazendo-o ser falado e elaborado, heuristicamente, de modo a permitir a inscrição do sujeito no laço social de forma menos destrutiva, sem tanto fugir 16
para a doença, e manejando a si a ponto de saber-fazer algo próprio com sua inscrição sintomática. Há para isso que se dispor a escutá-la, e estamos seguros de que, no que concerne à investigação, a pesquisa-intervenção e a orientação clínica são operadores formidáveis para fazer circular a palavra e permitir novos modos de subjetivação de professores. Quem sabe, assim, se possa esperar que eles venham a fazer laços menos destrutivos com o real e reverter esse que parece ser o nome atual do mal-estar docente: o estado depressivo.
Referências AICHHORN, Aichhorn. Juventud desamparada. Barcelona: Gedisa, 2006 (publicação original de 1925). BERGER, Ida. Le malaise socioprofessionnel des instituteurs français. In: Revue Internationale de Pédagogie, 3, p. 335-346, 1957. BLANCHARD-LAVILLE, Claudine. Os professores entre o saber e o sofrimento. São Paulo: Loyola, 2005. CODO, Wanderley (org.). Burnout, a síndrome da desistência do educador que pode levar à falência da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. CORDIÉ, Anny. Malaise chez l’enseignant: l’éducation confrontée à la psychanalyse. Paris: Seuil, 1998. DIAS, Mário. Cadernos de seminário: neurose e depressão. Campinas: EPC, 2004. ESTEVE, José M. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. Bauru: EDUSC, 1999 (publicação original de 1987). FREUD, Sigmund. Casos clínicos: miss Lucy R. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. II, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de 1893). FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. XII, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de 1914) FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias de psicanálise. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de 1917). FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e ansiedade. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. XX, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de 1926). FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de 1930).
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KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão – a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 (publicação original de 1953). LACAN, Jacques. O seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 (originalmente proferido em 1959-60). LACAN, Jacques. Televisão. Outros Escritos, 2003 (publicação original de 1974). PEREIRA, Marcelo Ricardo. O avesso do modelo: bons professores e a psicanálise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. PEREIRA, Marcelo Ricardo. Acabou a autoridade? Professor, subjetividade e sintoma. Belo Horizonte: FinoTraço/Fapemig, 2011. PEREIRA, Marcelo Ricardo. Mal-estar docente. Revista Presença Pedagógica, v. 20, 2014. PEREIRA, Marcelo Ricardo. Padecem mais os que ensinam? – Estudo Psicanalítico sobre a Saúde Mental de Professores de Adolescentes, Belo Horizonte: UFMG, 2015 (Relatório de Pesquisa ao CNPq e à Fapemig). SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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